A dignidade da pessoa humana e a crise habitacional
No Brasil observa-se uma notável carência tanto de políticas públicas quanto de disposições orçamentárias dirigidas à concretização do direito à moradia, tornando-se necessário estudar as suas relações com o conceito de mínimo existencial e suas relações com a dignidade da pessoa humana.
segunda-feira, 12 de junho de 2023
Atualizado às 13:55
Uma das principais situações de crise no contexto urbano é a falta ou demora na concretização do direito humano fundamental à moradia, previsto no caput do artigo 6º da Carta Magna e que é um dos pilares mais relevantes para a dignidade da pessoa humana, compondo, inclusive, o conceito de mínimo existencial.
A moradia é um dos pressupostos jurídicos e fáticos mais basilares para uma existência digna, de maneira que sua obtenção corrobora para a dignidade da pessoa humana, da mesma forma que uma habitação precária entra em conflito direto com a referida cláusula.
No Brasil observa-se uma notável carência tanto de políticas públicas quanto de disposições orçamentárias dirigidas à concretização do direito à moradia, tornando-se necessário estudar as suas relações com o conceito de mínimo existencial e suas relações com a dignidade da pessoa humana.
Uma das definições doutrinárias mais relevantes, inclusive corroborada pela jurisprudência e pela prática jurídica em geral, é a dignidade da pessoa humana, da qual resulta um conceito constantemente empregado no tratamento da teoria dos direitos fundamentais, qual seja, o mínimo existencial.
A coexistência harmônica entre a eficácia positiva da dignidade e a separação entre os poderes e, consequentemente, o princípio majoritário, depende da atribuição de eficácia jurídica positiva apenas ao núcleo da dignidade, chamado de denominado mínimo existencial. Reconhece-se legitimidade ao Judiciário para determinar as prestações correspondentes à sua satisfação.
O mínimo existencial, como paradigma essencial do ser humano, termina por definir uma limitação às atividades institucionais do Estado, vinculando, portanto, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário à sua concretização plena e, especialmente, ao seu asseguramento.
A forma natural de obtenção dos denominados direitos sociais, em seu sentido máximo, é o seu reconhecimento concreto pelos Poderes Legislativo e Judiciário. Ocorre que existem entendimentos no sentido da possibilidade de reivindicação judicial dos direitos componentes do mínimo existencial. Em que pese a concretização dos direitos socais em seu sentido máximo se encontrar restrita às possibilidades político-orçamentárias, o asseguramento do mínimo existencial pode ser obtido judicialmente, tendo em vista sua essencialidade no que se relaciona à dignidade da pessoa humana.
A permanente omissão da União, Estados, DF e municípios acerca do asseguramento do mínimo existencial em relação a fatores intrínsecos à condição do ser humano, intensifica a necessidade de que o Poder Judiciário possa entrar em cena, para fins de garantia dos direitos constitucionais.
O fato é que o direito à moradia ainda carece de maior efetivação por parte do Poder Judiciário, dado que são muito raros os casos em que a Justiça garante tais circunstâncias, diferentemente de outras searas, como a saúde pública, em que o judiciário tem garantido, em maior extensão, tal efetividade.
A reserva do possível reconhece que o Estado possui recursos financeiros limitados em seu orçamento, de maneira que não pode garantir a realização de todos os direitos sociais, econômicos e culturais de forma imediata. Deveras, a referida tese se baseia na ideia de que o Estado deve priorizar a alocação de recursos disponíveis de acordo com as necessidades mais urgentes da sociedade, garantindo uma distribuição justa e equilibrada dos recursos.
Em algumas situações o Estado pode alegar a falta de recursos financeiros para justificar a não realização de determinados direitos, como saúde, educação e moradia, ou mesmo a compra de medicamentos para pessoas com determinada patologia.
Ocorre que tal justificativa não pode ser usada de forma totalmente discricionária, pois o Estado deve sempre buscar alternativas para garantir o máximo de direitos possíveis, considerando a realidade econômica do país, conquanto a reserva do possível busque o equilíbrio entre o orçamento público e as necessidades da população.
Certos direitos sociais compõem diretamente a própria dignidade da pessoa humana em sua dimensão prática, tendo em vista serem indispensáveis à própria sobrevivência, minimamente em acordo com aquilo que determina a Constituição de 1988.
No que tange à ordenação e ao controle do uso do solo, a lei estabelece determinados objetivos, sendo preciso evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos, bem como a necessidade de se distribuir, de maneira justa, os benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização (SANTOS, 2020).
Um dos componentes mais evidentes do mínimo existencial é a moradia, tendo em vista sua relação direta com uma infinidade de direitos fundamentais consagrados constitucionalmente e que não podem ser concretizados sem que a pessoa tenha alguma possibilidade de abrigamento digno, correspondente a um lugar para estar.
Conquanto tenha sido inserida como direito social na Constituição Federal apenas no ano 2000, ou seja, com a Emenda Constitucional n. 26, verifica-se que tal direito é inerente à própria condição de ser humano, na medida em que pode efetivar a sociabilidade da pessoa, garantindo a paz e tranquilidade no seio familiar.
Em nosso país existe certo consenso no sentido da possibilidade de proteção judicial do mínimo existencial. Algumas controvérsias, porém, subsistem na matéria, inclusive a possibilidade de utilização de técnicas mais flexíveis, baseadas no diálogo institucional para proteger o mínimo existencial.
Existem determinadas situações de exclusão que são agravadas em decorrência da falta de moradia, de maneira que não podem simplesmente esperar pela formulação e implementação de políticas públicas, sob pena de arriscar a própria sobrevivência de pessoas que se encontram em situações extremas.
O direito à moradia, no que se relaciona aos indigentes e às pessoas sem teto, configura um direito fundamental em toda a sua expressão, tendo em vista se encontrar integrado ao mínimo existencial, tornando, desse modo, obrigatória a prestação do Estado.
Tais políticas públicas não podem ignorar os conceitos basilares concernentes ao direito à moradia, especialmente a necessidade de que sua concretização se dê em conformidade com a dignidade da pessoa humana, assegurando, portanto, o mínimo existencial.
A concretização do direito fundamental à moradia depende, necessariamente, de uma definição concreta acerca de seu conteúdo, sob pena de reduzi-lo a um patamar inferior ao próprio mínimo existencial, comprometendo, dessa mesma forma, a própria efetivação da dignidade da pessoa humana.
Denota-se, de tal maneira, que a moradia digna é algo muito mais importante do que um simples local voltado à salvaguarda de alguém. A moradia simples, porém, digna, é pressuposto fático do exercício de outros direitos fundamentais, esperando-se que os entes federados se desapeguem de uma natureza inércia e comecem a efetivamente cumprir o direito fundamental à moradia para todos, especialmente os mais carentes, diminuindo o déficit habitacional existente, com planos especiais voltados ao financiamento de moradias com baixo custo, bem como o progressivo implemento de regularizações fundiárias em todo o país.
Robson Martins
Pós-Doutorando, Doutor e Mestre em Direito. Professor universitário. Escritor de Livros e Artigos. Pesquisador políticas públicas urbanas e REURB.