A pirâmide de Kelsen: verdade ou mito?
Este artigo tem como objetivo contribuir para o esclarecimento de um conceito bastante divulgado nas faculdades de direito, que é a pirâmide de Kelsen.
quinta-feira, 8 de junho de 2023
Atualizado em 7 de junho de 2023 14:35
Para quem nunca leu Hans Kelsen, só ouviu falar, esse cientista político pode parecer um reacionário, e suas teorias equivocadas. O objetivo desse texto é esclarecer um conceito atribuído a ele, amplamente divulgado nas faculdades de direito. Trata-se da pirâmide de Kelsen.
Quem frequentou uma faculdade de Direito já deve ter ouvido falar de tal figura, citada e desenhada em quadros negros. Bom, que se esclareça desde já: se você ler qualquer livro de Kelsen, seja ele a Teoria Pura do Direito, a Teoria do Direito e Estado, O que é Justiça, A Democracia, a Autobiografia, Jurisdição Constitucional e outros, não encontrará menção alguma a essa pirâmide. Se nos seus livros mais importantes isso não aparece, de onde saiu isso? Se ele nada falou a respeito, seria possível depreender essa tal figura geométrica? Para isso, é preciso relembrar antes a definição dessa pirâmide por aqueles que a citam.
Para os que acreditam na pirâmide, ela assim poderia ser definida: a ordem jurídica é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. Existe entre elas uma conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até se chegar finalmente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental - hipotética, nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.
Geometricamente, parece haver algumas dúvidas entre os construtores de tal pirâmide (basta ver os diversos modelos observáveis em pesquisa no Google), mas ela poderia ser, por exemplo, assim construída:
Figura 1- A suposta pirâmide de Kelsen
Essa construção de validade de uma norma com base em outra parece funcionar no seguinte exemplo: o processo licitatório na Petrobras. De acordo com a Constituição Federal (CF), art. 173, §1º, III, a lei disporá sobre o processo licitatório em sociedades de economia mista. A lei 9478/97, em seu art. 67, diz que os contratos da Petrobrás para aquisição de bens e serviços serão precedidos de processo licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República. Por meio do decreto 2745/98, a Presidência da República estabeleceu o Regulamento de procedimento licitatório simplificado da Petrobrás. Portanto, essa pirâmide parece funcionar. Cada uma dessas normas fez referência à anterior, e existe, de fato, uma escala entre CF, lei e decreto.
Mas, então, quais os problemas dessa construção?
Kelsen não fez menção alguma a essa pirâmide e sequer a desenhou. Se vamos admitir que a CF é o fundamento das demais normas, então ela deveria estar na base da pirâmide, e não no topo. Não se constrói uma pirâmide de cima para baixo, mas de baixo para cima. Kelsen era um homem com vasta cultura, e antes de seguir carreira no Direito, pensou em fazer a faculdade de Física ou Matemática1.
Para ele, o direito regula a sua própria criação. Uma norma jurídica determina o modo como outra é criada e, de certo modo, seu conteúdo2. Quando fala em hierarquia de normas, Kelsen diz que a relação entre a norma que regula a criação de outra norma pode ser apresentada como uma relação de supra e infra-ordenação. A primeira é a norma superior, a segunda a inferior3. Toda norma jurídica é fonte de outra norma cuja relação ela regula4.
Portanto a hierarquia entre uma norma e outra é temporal, não diz respeito a um tipo específico de norma criando outro tipo.
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