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Artigo 23, III da lei Maria da Penha: para que serve tal dispositivo?

A determinação judicial prevista no artigo 23, III da lei Maria da Penha não permitiria que o acusado de violência doméstica viesse a causar novo trauma a mulher em situação de violência, pois além de agredi-la poderia ainda afetar profundamente sua dignidade, lhe retirando a casa, talvez, os filhos. Muitas mulheres inclusive, por não possuírem tal instrução talvez estejam vivendo sob o mesmo teto do acusado devido ao que pensam ser um risco em saírem da casa e serem acusadas de abandono do lar.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Atualizado às 13:32

Mesmo após dezessete anos após a sanção da lei Maria da Penha alguns artigos de tal legislação deixam muitas dúvidas, dentre elas a utilidade do artigo 23, III de tal lei. Decidi escrever este artigo pois tal tema não é encontrado em livros sobre a lei Maria da Penha. Vamos ver o que diz tal texto legal:

Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

Mas afinal, qual a finalidade do inciso III de tal artigo? Bem, divulgo aqui duas interpretações:

A primeira é a de que uma mulher possa ser retirada do lar, por determinação judicial, após ser comprovada a denunciação caluniosa. Por exemplo, uma mulher que não aceita o fim de um relacionamento e vai até a delegacia e falsamente diz que foi ameaçada de morte pelo companheiro, solicitando o afastamento do lar de tal, sendo posteriormente comprovado que tal acusado nem mesmo estava em casa no dia em que tal mulher disse ter sido ameaçada presencialmente, ou mesmo por falta de provas da parte acusadora. O Magistrado poderia em tais casos afastar do lar a mulher que outrora se disse ofendida, para que o que antes era o acusado possa voltar a residir em tal local, especialmente se não há direito de tal mulher sobre o imóvel.

Faço questão de dizer que casos de denunciação caluniosa em termos de Maria da Penha tem incidência mínima, para não dizer insignificante, pois a maioria das mulheres que procuram a proteção do Estado, verdadeiramente, passam por situações nas quais são vítimas de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto.

A segunda interpretação é a de que o Magistrado concederia tal medida protetiva de urgência para que a mulher não perca direitos relativos ao imóvel, guarda dos filhos e pensão alimentícia, tendo preservada a segurança, afinal o artigo 1º da lei Maria da Penha diz que tal normatização é voltada em prol da mulher em situação de violência.

Reforça tal interpretação o fato de o próprio inciso III dizer "sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos."

Mas se não fosse tal dispositivo, poderia a mulher correr risco de perder o direito aos bens, guarda dos filhos e alimentos?

O Código Civil prevê que em caso de abandono do lar aquele que aquele que por dois anos exercer a posse direta de imóvel até 250 metros quadrados, tendo dividido a posse com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, sendo tal imóvel o único de quem permaneceu residindo, irá tal pessoa adquirir o domínio total do imóvel.

O que diz o artigo 1.240-A do Código Civil:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o  O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

De tal forma, a determinação judicial prevista no artigo 23, III da lei Maria da Penha não permitiria que o acusado de violência doméstica viesse a causar novo trauma a mulher em situação de violência, pois além de agredi-la poderia ainda afetar profundamente sua dignidade, lhe retirando a casa, talvez, os filhos. Muitas mulheres inclusive, por não possuírem tal instrução talvez estejam vivendo sob o mesmo teto do acusado devido ao que pensam ser um risco em saírem da casa e serem acusadas de abandono do lar.

E para imóveis com mais de 250 metros quadrados? Nesse caso o agressor de mulheres poderia utilizar o artigo 1.250, III também do Código Civil:

Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a propriedade:

III - por abandono;

No caso do artigo 1.275 do Código Civil, imóveis com mais de 250 metros quadrados, o tempo mínimo de abandono do lar pode ser interpretado como sendo o de um ano, diante do que prevê o artigo 1.573, IV também de tal Código:

Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:

IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;

Nesse caso fica claro que o abandono deve ser voluntário, entretanto uma mulher que é ameaçada, machucada ou até que sofre o crime de feminicídio tentado não sai de casa de forma voluntária, mas sim busca a própria sobrevivência.

Mas e quanto a guarda dos filhos? Bem, o artigo 23, III demonstra-se ainda mais importante, pois não permite que haja a interpretação de que os filhos teriam sido abandonados e, por isso, a mãe perca a guarda de tais absolutamente ou relativamente incapazes, pois segundo o artigo 1.638, II do Código Civil, o pai ou a mãe perderá o poder de família se deixar o filho em abandono. É importante ressaltar que a perda do poder familiar nesse caso não se dá automaticamente, mas sim por ato judicial.

Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:

II - deixar o filho em abandono;

Espero que este artigo possa, de alguma forma, ajudar mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade e temem perder o direito aos bens e a guarda dos filhos.

Wagner Luís da Fonseca e Silva

Wagner Luís da Fonseca e Silva

Bacharel em Direito, aprovado no XXIII exame de habilitação da OAB. Pós-graduado em Direito Militar pelo Instituto Venturo. Pós-graduado em Gênero e Direito pela EMERJ. Policial Militar.

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