STJ flexibiliza regra de impenhorabilidade de salário de executados
As próximas decisões do STJ sobre o tema serão críticas para uma maior segurança jurídica e para melhor definir o limite passível de penhora, já que os diferentes critérios hoje adotados fazem com que a análise seja puramente casuística.
sexta-feira, 2 de junho de 2023
Atualizado às 10:04
Sendo considerado um bem essencial para o sustento do indivíduo e de sua família, o salário foi historicamente protegido contra penhora e outros tipos de execução forçada. A chamada "impenhorabilidade do salário" era vista como um princípio do Direito do Trabalho1 e uma garantia constitucional.
No âmbito do Direito Civil, a impenhorabilidade do salário está prevista no artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC), que prevê como impenhoráveis "os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal", ressalvadas hipóteses previstas em lei.
O parágrafo 4º do referido artigo 833 do CPC elenca duas exceções permitindo a penhora se ela tiver por objetivo: o pagamento de dívida de alimentos, independente da sua origem; e pagamentos de outras dívidas não alimentícias, na medida que a remuneração exceder 50 salários-mínimos mensais (atualmente R$ 66 mil2).
Nota-se que uma interpretação meramente literal reduziria severamente a aplicação do parágrafo 4º do artigo 833 do CPC, afinal, a média salarial do brasileiro é de R$ 2.787,003. Em harmonia com essa visão, a jurisprudência pátria já vinha indicando que essa regra não traduziria a verdadeira mens legis que seria a manutenção de uma reserva digna para sustento do devedor e da sua família4.
Recentemente, a Corte Especial do STJ enfrentou justamente essa questão: seria possível relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e para sua família?
A discussão jurídica examinou um acórdão da Quarta Turma do STJ, que indeferiu pedido de penhora de 30% do salário do executado, que girava em torno de R$ 8.500,00 para satisfação de uma dívida de aproximadamente R$ 110 mil, em razão da regra prevista no artigo 833, inciso IV, do CPC.
Após a oposição recurso pelo credor, a Corte Especial do STJ, ao julgar os embargos de divergência 1.874.222/DF, concluiu, por maioria de votos, ser possível, em caráter excepcional, relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado o montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.
Em relação aos argumentos de mérito, os ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Og Fernandes, Ricardo Villas Bôas Cueva, Francisco Falcão, Nancy Andrighi e Laurita Vaz, acompanharam o voto do relator, ministro João Otávio de Noronha, que concluiu que essa relativização somente deve ser aplicada "quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução", e desde que "avaliado concretamente o impacto da constrição sobre os rendimentos do executado".
Em julgamento acirrado, foram vencidos os ministros Raul Araújo, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Maria Isabel Gallotti e Antônio Carlos Ferreira. As declarações de voto dos ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti, inclusive, chamam atenção. Enquanto o ministro Raul Araújo se ateve a um argumento finalístico, de que a penhora de praticamente R$ 2 mil de um executado que tem salário de R$ 8.500,00 seria inefetiva para satisfação de uma dívida em valor elevado mensalmente acrescida de juros e correção monetária. A ministra Maria Isabel Gallotti, se ateve ao argumento formalista de que o limite de 50 salários-mínimos é de "parâmetro. objetivo, ditado pela lei" e que não deve ser ignorado.
Mesmo assim, com acórdão publicado em 25 de maio de 2023,5 o STJ deu um passo importante no sentido de flexibilizar a regra prevista no parágrafo 4º, do artigo 833 do Código de Processo Civil. Há, porém, um segundo passo relevantíssimo a ser dado na uniformização de entendimento no tema. Afinal, quanto seria necessário para garantir a dignidade do devedor e de sua família?
As próximas decisões do STJ sobre o tema serão críticas para uma maior segurança jurídica e para melhor definir o limite passível de penhora, já que os diferentes critérios hoje adotados6 fazem com que a análise seja puramente casuística. Essa contribuição do STJ para o tema, por certo, será crucial para a definição do "mínimo existencial" previsto na lei 14.781/21, a chamada Lei do Superendividamento.
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1 Nesse sentido: TST, RO-280-25.2011.5.05.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 07/06/2013; TST, RO-10074-42.2015.5.01.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 19/12/2017.
2 O salário-mínimo no ano de 2023 é de R$ 1.320,00 (Medida Provisória 1172/2023).
3 https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2023/01/19/quanto-o-trabalhador-brasileiro-ganha-em-media-remuneracao-subiu-7percent-em-12-meses.ghtml
4 STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1808430 / SP, Quarta Turma, Rel. Des. Marco Buzzi, J. 14.06.2021, STJ, AgInt no AREsp 1897103/SE, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, J. 29.08.2022.
5 https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202001121948&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea
6 Entendimento de que penhora de 10% de rendimentos de R$ 1.999,26 seria irrazoável (STJ, AgInt no REsp 1990171 / DF, Quarta Turma, Rel. Des. Marco Buzzi, J. 26.10.2022), mas que penhora de 15% de rendimento de R$ 33.153,04 (STJ, AgInt no AREsp 1897103/SE, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, J. 29.08.2022) ou de 30% de aposentadoria de R$ 6.787,08 (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1808430 / SP, Quarta Turma, Rel. Des. Marco Buzzi, J. 14.06.2021) seriam razoáveis.
Alex Hatanaka
Sócio do escritório Mattos Filho. Bacharel em Direito pela USP. Bacharel em Administração de Empresas pela FGV. Mestre em Direito (LL.M.) pela London School of Economics and Political Science (LSE).
Priscila Hirschheimer
Advogada do escritório Mattos Filho.