Histórias do Direito Comercial: as corporações de ofício, e a curiosa situação atual da "city of london corporation"
As origens do Direito Comercial, ou Empresarial, remontam às antigas ¨corporações de ofício¨, poderosas entidades de classe que, no passado, criaram regras para o comércio, bem como formas de solução de conflitos entre comerciantes.
sexta-feira, 26 de maio de 2023
Atualizado às 07:33
Fato curioso é que, em pleno ano de 2023, ainda existe, na Inglaterra, uma situação incomum, que remete a séculos. Trata-se do fato de que a ¨City of London¨, região que corresponde ao centro financeiro que fica encravado dentro da grande Londres, é uma corporação, detentora de autonomia e regras políticas distintas em relação à Inglaterra. Apresenta-se, inclusive, com a nomenclatura ¨City of London Corporation¨. Dessa forma, trata-se de uma entidade que administra um território (não muito extenso, inferior a três quilômetros quadrados, mas estrategicamente localizado e de enorme poderio financeiro), submetida a uma situação diferenciada em relação ao restante da Inglaterra, inclusive sendo dirigida por um Prefeito (Lord Mayor - o atual seria o de número 694, tamanho o tempo de existência da corporação), e possuindo leis que datam de muitos séculos. Outro fator que surpreende também é que, no processo político de tal corporação, as companhias também têm voto, exercendo influência política muito grande em tal entidade.
Essa situação, bastante estranha em tempos atuais, nos remete a uma figura do passado, que se relaciona às próprias origens do Direito Comercial/Empresarial: as corporações de ofício, ou também chamadas corporações de mercadores.
Costuma-se apontar, em relatos históricos, que o Direito Comercial teria nascido no contexto de tais corporações. É a observação de Rubens Requião, ao mencionar que ¨os comerciantes, organizados em suas poderosas ligas e corporações, adquirem tal poderio político e militar que vão tornando autônomas as cidades mercantis a ponto de, em muitos casos, os estatutos de suas corporações se confundirem com os estatutos da própria cidade. É nessa fase histórica que começa a se cristalizar o direito comercial, deduzido das regras corporativas e, sobretudo, dos assentos jurisprudenciais das decisões dos cônsules, juízes designados pela corporação, para, em seu âmbito, dirimirem as disputas entre comerciantes¨ (conforme REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial - 1º volume. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 34).
Quanto ao contexto histórico do surgimento de tais corporações, José Xavier Carvalho de Mendonça ensinou que ¨com a queda do Império Romano, dominou a insegurança numa Europa presa da anarquia. Faltou um poder político nas condições de manter a paz interna e a realização do direito. Daí a constituição das corporações de classe, entre elas as corporações de mercadores, para a proteção e assistência dos comerciantes, tanto no interior como no exterior. Cada corporação formava como que um pequeno Estado (...)¨ (MENDONÇA, J.X. Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Atualizado por Ricardo Negrão. Campinas: Bookseller, 2001, vol. I, p. 68).
Esse cenário histórico foi também explicado por Waldemar Ferreira, que relatou que o vácuo de poder deixado após a queda do império romano acarretou em instabilidades sociais e políticas, fator que estimulou o surgimento de associações diversas, destinadas a proteger seus integrantes, bem como exercer um papel que as antigas autoridades não mais cumpriam. Surgiriam, assim, tais entidades de classe, que passaram a ganhar substancial poderio e influência. Nas palavras do próprio mestre, ¨negociantes, banqueiros, industriais, artejanos, quantos se sentiram atraídos por interesses comuns, reuniram-se em corporações, vastas e organizadas, sujeitas a rigorosa disciplina, em que residia o segredo de sua força. Tornaram-se poderosas. Investiram-se do direito de regular por si mesmas seu interesse próprio e o de seus componentes. Passaram, assim, a exercitar poderes que eram, normalmente, do Estado. Presidiam, por via de seus oficiais, as feiras e mercados, organizando-os e neles mantendo a ordem. Protegiam seus membros no estrangeiro. Prestavam assistência religiosa e caritativa. Tinham patrimônio e arca suprida com as contribuições dos sócios. Taxas. Impostos. Pedágios. Donativos. Multas. Rendas dos seus bens dominiais. Eram, a bem dizer, organismos estatais, tanto se imiscuiam no privado, como no público¨ (conforme FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de direito comercial. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1954, vol I, p.19).
Assim, diante de tamanho poderio arregimentado por tais entidades, é natural que um aspecto que se destacou foi o exercício da função legislativa, de criar regras para dirimir litígios comerciais, levando à própria criação do Direito Comercial. Tal decorrência foi observada também por Octávio Mendes, que relatou que: ¨um elemento que concorreu muito poderosamente na idade média para a formação do Direito Comercial foi a organização das corporações de mercadores. Os indivíduos que as formavam constituíam uma classe separada, com direito a uma jurisdição especial, perante a qual regulavam, com normas autônomas, as suas relações. Dessa faculdade fizeram larguíssimo uso, e assim surgiram, com os usos e costumes dos negociantes, com a jurisprudência dos seus estatutos, normas e institutos de direitos especiais, que só se aplicavam às pessoas da classe, e por isso formavam um direito singular, que foi o jus mercatorum, o direito dos mercadores¨ (conforme MENDES, Octávio. Direito commercial terrestre. São Paulo: Saraiva, 1930, p. 58).
O relato dos mestres acima, que se aproveita o espaço aqui para homenagear, demonstra a importância das corporações de ofício para a construção histórica do atual Direito Empresarial. É certo que, com o passar dos séculos, ocorreram deslocamentos de poder na Europa, com o consequente fortalecimento de nações, em detrimento das corporações de ofício. Mas, como se observa do relato inicial do texto, quanto à corporação londrina, ainda existem reminiscências de tal realidade em tempos atuais.
Fernando Schwarz Gaggini
Advogado. Pós-graduado em Direito Mobiliário e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da USP. Professor titular de Direito Empresarial na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.