Os pedidos de restituição em dinheiro na falência consoante lei 14.112/20
A nova redação imposta à lei 11.101, de 2005, especialmente no tocante aos tributos passíveis de restituição em dinheiro, prevê uma gama de possibilidades para aplicação da restituição que não se via nos regramentos precedentes à mudança normativa.
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Atualizado às 14:49
É cediço que a lei 11.101, de 2005 sofreu contundentes modificações quando da promulgação da lei 14.112, de 2020, principalmente no que tange as questões de cunho tributário e dentro do procedimento falimentar. Dentre as modificações, talvez a mais comentada na seara falimentar seja a possibilidade de que o fisco requeira a convolação da Recuperação Judicial em Falência, mediante descumprimento dos parcelamentos referidos no art. 68 da LRF, ou das transações previstas no art. 10-C da lei 10.522, de 2002.
Todavia, outras modificações e neste caso inserções também constam do novo regramento de insolvência e abarcam a questão tributária de modo categórico, é o caso do recém inserto inciso IV do art. 86 da LRF, tópico do presente artigo, que trata da possibilidade de restituição em dinheiro no que tange à tributos passíveis de retenção na fonte, de descontos de terceiros ou de sub-rogação e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos.
Imperioso reconhecer que as diversas alterações no texto normativo, bem como exclusões e inclusões de artigos visam adequar a legislação especial ao cenário socioeconômico do país. Cumpre asseverar que tal prática é realizada desde os primórdios da legislação de insolvência1, que por vezes se observa datada com o transcorrer de poucos anos, cumprindo ao legislador observar as mudanças sociais e econômicas no âmbito nacional e, assim, moldar a lei à realidade fática daqueles que a ela se submetem.
Neste sentido, sem maiores abstrações históricas, forçoso trazer à baila o recém inserto inciso IV do art. 86 da lei 11.101, de 2005, que trata da restituição em dinheiro relativo a tributos passíveis de retenção na fonte, vejamos a redação do referido inciso IV e caput do art. 86:
Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:
IV - às Fazendas Públicas, relativamente a tributos passíveis de retenção na fonte, de descontos de terceiros ou de sub-rogação e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos. (Incluído pela lei 14.112, de 2020) (Vigência).
É dizer, portanto, que a legislação especial aumentou o escopo do instituto da restituição em dinheiro, que anteriormente permitia a indigitada restituição nos termos da Súmula 417 do STF, ou seja, referente à importes em poder do falido, porém recebidos em nome de outrem.
Nos termos da legislação vigente, porém, é cabível a restituição em dinheiro às Fazendas Públicas relativamente aos tributos passíveis de retenção na fonte, como é o caso de retenções oriundas de imposto de renda retido na fonte descontado dos empregados/prestadores de serviço e imposto de renda retido na fonte sobre pagamento de aluguéis ou até mesmo royalties pelas empresas falidas.
Interessante neste tempo traçar um paralelo à realidade dos processos de falência, cujo pedido de restituição em dinheiro, nos moldes do inciso supracitado se dará, por consectário lógico, por alguma procuradoria das Fazendas Públicas mediante ação de restituição distribuída em apartado ao processo principal de falência.
Indispensável reconhecer, apenas a título informativo, que dentre os princípios norteadores da falência, bem como das recuperações judiciais e extrajudiciais, está o da celeridade processual, inadiável em se tratando do direito de insolvência, que envolve multiplicidade de partes e urgência nas soluções aplicáveis, sob risco de prejuízo aos credores, tanto na falência, quanto nas recuperações.
Talvez por isso o legislador tenha optado por não tumultuar os autos principais de cada processo com questões que urgem pronunciamento judicial, contudo, também requerem tratamento diferenciado, mediante contraditório e instrução probatória, como é o caso das habilitações de crédito retardatárias e impugnações, nunca realizadas no bojo dos autos principais e sim em apartado, dando certa agilidade ao procedimento, tanto individual de cada ação, quanto principal.
Pois bem, delimitado o procedimento adequado para que a restituição em dinheiro seja efetivada, ou seja, deferida, outra questão desponta como passível de discussão, qual seja a documentação comprobatória a ser colacionada nos autos, que dê azo ao deferimento do pleito.
Entendo que, sob a espeque principiológica da legislação de insolvência, as matérias inerentes à créditos e à formação do quadro geral de credores consolidado devem ser resolvidas de maneira expedita, de modo que seja possibilitada a formação do mencionado quadro e, a partir de então, seja possível aferir se o ativo patrimonial da massa falida comportará o pagamento da massa falida subjetiva, em todo ou em parte.
Para tanto, muito se vê neste tipo de ação de restituição a juntada pelos entes públicos de certidões de dívida ativa e processos administrativos, com vias em demonstrar a retenção dos importes passíveis de restituição em dinheiro, consoante inteligência do inciso IV do art. 86 da LRF.
A doutrina e jurisprudência ainda devem ser consolidadas quanto a este respeito, todavia, consinto da percepção emanada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em recente decisum, no qual consignou que as CDA's apresentadas pela União revelam os valores retidos a título de imposto de renda e não repassados ao ente, configurando hipótese de aplicação do inciso IV do art. 86 da lei de Falência.
Vejamos para posterior interpretação:
Contrarrazões - Preliminar de inadmissibilidade por inadequação da via eleita - Rejeição - Ação que compreendeu pedidos de restituição e de habilitação de crédito em falência - Inconformismo da autora limitado ao julgamento de improcedência do pedido de restituição - Cabimento de recurso de apelação contra a sentença que julgar o pedido de restituição (lei 11.101/05, art. 90) - Recurso conhecido. Apelação - Falência - Pedido de restituição de bens c/c habilitação de crédito - Sentença de parcial procedência, apenas quanto aos pedidos de habilitação de crédito - Inconformismo da autora (União Federal) - Certidões de Dívida Ativa que revelam que a falida reteve valores a título de imposto de renda e contribuição previdenciária, mas deixou de repassá-los ao Fisco - Restituição devida independentemente de os valores terem sido arrecadados pela massa falida ou estarem em poder da falida ao tempo da quebra (lei 11.101/05, art. 86; STF, Súmula 417) - Juros de mora que, por sua vez, não integram os valores retidos na fonte, mas decorrem do inadimplemento da falida, não podendo ser objeto de restituição - Sentença reformada para julgar-se parcialmente procedente o pedido de restituição - Sem honorários recursais - Recurso parcialmente provido2.
Neste toar de ideias, resta claro como sol de estio que as certidões de dívida ativa possuem o condão de demonstrar a retenção de valores a título de imposto de renda e contribuições. Para além disso, do acórdão acima se infere uma questão que também não merece maiores digressões, quanto ao fato de que os juros de mora não podem ser incluídos no montante a ser restituído, aplicando-se a mesma lógica às multas administrativas, devendo, portanto, ser habilitados na falência para pagamento em classe específica, respeitando os parâmetros de pagamento dos artigos 83 e 84 da LRF.
Sob análise da doutrina, por seu turno, é fácil compreender que a alteração legislativa permite que todos os tributos passíveis de retenção na fonte, de descontos de terceiro ou de sub-rogação e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos sejam restituídos em dinheiro, nos termos do art. 86 da lei de Falências.
Contudo, é de se ponderar que a classificação dos pagamentos, consoante inteligência dos artigos 83 e 84 da lei 11.101, de 2005 acima mencionados deve ser respeitada, no sentido que, como consta do art. 84, em especial no inciso I-C, aos créditos em dinheiro objeto de restituição serão pagos após às quantias referidas nos artigos 150 e 151 deste mesmo diploma legal, ou seja, após os créditos trabalhistas em condições especiais e as despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência.
Nas palavras do recorrente mencionado professor Marcelo Sacramone quanto à restituição em dinheiro:
Referidos credores serão satisfeitos conforme a igualdade de tratamento entre todos os demais credores dessa classe de restituição de dinheiro3.
Em resumo, os créditos passíveis de restituição em dinheiro são aqueles constantes da redação do inciso IV do art. 86 da lei 11.101, de 2005. No que concerne aos juros e multas que englobam o montante devido, é imperioso consignar que estes serão insertos no quadro geral de credores nos termos do art. 83 c/c art. 124 da lei 11.101, de 2005, não devendo compor o quantum debentur relativo à restituição em dinheiro.
Conclui-se, então, que a nova redação imposta à lei 11.101, de 2005, especialmente no tocante aos tributos passíveis de restituição em dinheiro, prevê uma gama de possibilidades para aplicação da restituição que não se via nos regramentos precedentes à mudança normativa.
Não obstante, não se deve perder de vista o fato que, uma vez deferido o pleito nos termos do inciso IV do art. 86 da LRF, ainda impende respeitar a ordem de preferência ao pagamento, conforme artigos 83 e 84, que por sua vez nos remete aos artigos 150 e 151, para que então seja possível a compreensão plena do instituto, da forma de pagamento e critérios de paridade entre credores, basilares à insolvência empresarial.
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1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. História do direito falimentar: da execução pessoal à preservação da empresa. São Paulo: Almedina, 2018.
2 TJSP; Apelação Cível 1020900-76.2020.8.26.0554; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Santo André - 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/03/2023; Data de Registro: 09/03/2023.
3 SACRAMONE, Marcelo. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2023.