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A necessidade de cooperação para o efetivo combate às fraudes na saúde suplementar

As fraudes custam às operadoras de planos de saúde no Brasil quase R$ 20 bilhões e aumentam em cerca de um terço o custo dos procedimentos médicos para os pacientes.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Atualizado às 08:08

A saúde é direito de todos e dever do Estado, que conta ainda com a responsabilidade de sua fiscalização. Fazem parte desse setor o Sistema Único de Saúde, instituído pela lei 8.080/90 e a Saúde Suplementar, regulamentada pela lei 9.656/98, ordenada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Porém, a legislação brasileira apresenta deficiências na regulamentação de mecanismos de controle, prevenção e combate à fraude e corrupção no setor de saúde privado, o material do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar e da PwC Brasil1 propõem uma agenda a ser conduzida pelo Poder Público (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público, entre outros) a partir da identificação das principais práticas fraudulentas. Além disso, dos impactos sobre a cadeia de valor da saúde e quais leis e projetos de leis em trâmite no Brasil podem contribuir para solucionar o problema. Entre elas, destaca o PL 221/15 que prevê a criminalização de condutas como a corrupção privada entre o profissional de saúde em atividade e o fornecedor.

O projeto de lei 221/15 tipifica como crime a prática de obtenção de vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza. Para que haja sucesso na detecção de fraudes é necessária, portanto, atuação conjunta dos players da saúde e do Poder Judiciário, entre outros.

O desembargador Ney Wiedemann Neto2 trouxe reflexões sobre o assunto, detalhando a necessidade da análise cuidadosa de casos que envolvem a saúde, pública e privada, conforme segue, na íntegra:

Todos os dias chegam ao Poder Judiciário muitas ações tratando sobre questões relacionadas ao direito à saúde, tanto a saúde pública, que envolve o SUS (Sistema Único de Saúde), como a saúde suplementar, que envolve os planos de saúde. São frequentes os pedidos de medicamentos ou tratamentos de custos bastante elevados, onde se incluem as chamadas Opmes (órteses, próteses e medicamentos especiais).

Quando o conflito pela negativa de fornecimento ou cobertura é levado ao Poder Judiciário, ao juiz são apresentados dados e argumentos técnicos e médicos diversos e, muitas vezes, conflitantes. Há oposição entre a prerrogativa de cada agente decidir. Existe a prerrogativa do médico do paciente, que busca o atendimento, a do gestor da saúde, pública ou suplementar, e a do Juízo, que personifica o Estado-Juiz, com o poder-dever de decidir a questão.

A prescrição do médico é inquestionável? O pedido feito é essencial, tem base racional, científica, devidamente estabelecida e suficiente? E o argumento de urgência, que muitas vezes dificulta o Poder Judiciário de esclarecer essas premissas? O Juízo não tem conhecimento técnico próprio e experiência necessária ao julgamento, precisando valer-se de perito técnico para assessorá-lo. Ou decidirá sem evidências científicas que justifiquem sua posição.

Ademais, não se pode desconhecer que nesse tipo de demanda há muitos atores da cena judiciária (partes interessadas) ocultos, como a indústria de medicamentos ou de órteses e próteses, associações de doentes, médicos e fornecedores. Às vezes, isso pode levar a distorções e práticas que se prestam a desvios, com a utilização da Justiça como um meio operacional de incorporação de tecnologias e disseminação do seu uso em escala comercial, muitas vezes de medicamentos não essenciais ou não garantidos em termos de eficácia e segurança.

Pode haver, de modo antiético, a atuação dirigida da indústria farmacêutica e de órteses e próteses, por exemplo, sobre médicos, com modos de agir que podem influenciar as prescrições médicas e de tratamentos. Há médicos que podem induzir ações e influenciar decisões judiciais. Tanto isso ocorre, que a imprensa, desde dezembro de 2014, vem divulgando uma série de reportagens a respeito de investigações de fraudes envolvendo a Máfia das Órteses e Próteses.

Isso traz à baila a questão da autonomia prescritiva do médico. Não pode haver prioridade à total e livre escolha de qualquer prescrição para qualquer um, pautada na prerrogativa da autonomia médica e de direito do doente. O Poder Judiciário não pode considerar incontestável a prescrição médica. Deve equilibrar os interesses antagônicos derivados da tentativa de incorporação acrítica de novas tecnologias e da racionalidade científica que deve ter a sua incorporação.

Ainda, há a questão da urgência alegada no pedido de liminar ao Juízo, para a ordem de atendimento do paciente autor da ação judicial. É uma condição que obriga ao atendimento médico imediato, independentemente de condições de direito ou garantia de ressarcimento. Isso nem sempre é devidamente caracterizado nos processos judiciais. Sói haver interpretação equivocada de conceitos para premir a decisão dos juízes, dificultar o contraditório e criar um fato consumado. Como alterar uma decisão liminar de liberação de um tratamento já iniciado ou concluído?

Por tudo isso, são importantes as Recomendações 31/10 e 36/11, do Conselho Nacional de Justiça, no sentido de os tribunais contarem com núcleos de consultoria e assessoramento técnico (médicos e farmacêuticos) para apreciar pedidos de concessão de liminares em ações judiciais. Isso permite ao magistrado avaliar a respeito da necessidade, adequação e urgência do procedimento solicitado. Ainda, que os juízes ouçam (até por meio eletrônico) os gestores de saúde, antes da apreciação de medidas de urgência.

Desta feita, conforme reflexão trazida pelo nobre desembargador, há que se falar seriamente sobre a judicialização da saúde e as consequências advindas disto, bem como sobre a ausência de conhecimento técnico sobre as questões médicas e necessidade de, não apenas perícias, mas também assessoramento para resolução das complexas demandas com esse objeto, para auxiliar na detecção de atitudes fraudulentas.

A Federação Nacional de Saúde Suplementar noticiou3 acerca da Máfia das OPME, cujo trecho se extrai abaixo:

(...) O ano de 2016 foi marcado por tragédias, crises e também escândalos nos mais diversos setores. No setor de saúde, mais uma vez, chamou a atenção a atuação da chamada máfia das próteses. Um dos mais prestigiados hospitais do Brasil, por exemplo, viu integrantes do serviço de cardiologia intervencionista envolvidos em fraudes e recebimento de propina de empresa fornecedora de órteses e próteses em troca de sua escolha para o fornecimento de materiais usados em tratamentos médicos. Na maioria desses casos, quem paga a conta desses esquemas é o plano de saúde e, portanto, todos os seus beneficiários. Esses escândalos trazem à tona uma das grandes e mais complexas caixas-pretas do sistema de saúde: a das órteses, próteses e materiais especiais (OPME). O custo anual ao sistema de saúde público e privado com as OPME foi de R$ 20 bilhões em 2014, sendo que os planos de saúde arcaram com R$ 12 bilhões desse montante.

Levantamento realizado pelo Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS) mostra que, entre 2007 e 2012, os gastos de uma operadora de plano de autogestão com as OPME aumentaram 120,4%, enquanto a variação de custos médico-hospitalares foi de 88,1% e o IPCA, 31,9% - ambas no mesmo intervalo de tempo. Em razão desse aumento desproporcional, a fatia dos custos referentes às OPME no total de despesas assistenciais cresceu de 30% para 38,6%. O peso desses itens nos gastos das operadoras de saúde vem crescendo 15% ao ano e decorre de alguns fatores: tecnologia avançada desses materiais; crescente utilização; patentes exclusivas de muitos produtos, o que gera monopólios; baixa concorrência entre fabricantes; e maior inclusão de uso desse tipo de material no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde (ANS).

Os problemas, ainda, se acentuam devido à desregulamentação da comercialização desses itens, que, aliada à baixa concorrência de mercado, inflaciona os preços. A falta de diretrizes médico-hospitalares na utilização das OPME e a dificuldade das operadoras em contestar tecnicamente o uso específico, por exemplo, de material A ou B, deixam os gestores praticamente reféns dos preços aplicados no mercado. Outra questão, seriíssima, é o comportamento de alguns maus profissionais, que se dispõem a receber pagamentos de fabricantes ou distribuidores em troca da prescrição de determinados produtos ou marcas, a chamada "comissão". Ao se combinar essas "comissões" com preços artificiais de um mercado de baixa concorrência, ausência de diretrizes sobre uso adequado, falta de conhecimento sobre tais práticas por parte dos consumidores e a extrema dificuldade em questionar determinada indicação médica, o resultado é explosivo: custos mais elevados e operadores de saúde sendo encurralados, com a crise batendo na porta.

Dados fornecidos pelos planos de saúde mostram diferenças nos valores cobrados pelo mesmo material -- preços de stents cardiológicos, com droga de R$ 4 mil a R$ 22 mil; marca-passo CDI variando entre R$ 29 mil a R$ 90 mil, sendo cinco vezes mais caro do que na Alemanha, por exemplo. Segundo o Ministério da Saúde, o custo dos itens médicos -- ao agregar taxas de importação, tributos, atravessadores, revendedores, "comissões" a médicos e a hospitais -- é encarecido em até nove vezes, em relação aos preços originais de fábrica.

É crescente o índice de fraudes na Saúde Suplementar e é mais cuidadosa a análise regulatória frente aos novos mecanismos para causar prejuízo às empresas do setor e após o famoso episódio acima narrado.

Para ilustrar o entendimento de fraude dentro do campo da Saúde Suplementar, conforme levantamento do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar4, vamos considerar o caso de um profissional de saúde que realiza uma cirurgia ortopédica desnecessária em determinado paciente para receber comissão do distribuidor da prótese, sendo que o procedimento é coberto pelo plano de saúde. A cirurgia realizada sem a indicação clínica para o caso é deturpação evidente da necessidade de essencialidade do procedimento, tanto para o paciente quanto para a operadora/seguradora de saúde. A conduta acarreta danos financeiros para aquele que custeia o procedimento e em potenciais danos à saúde de quem passou pelo procedimento cirúrgico sem necessidade.

Assim, atualmente as atenções estão voltadas ao universo dos reembolsos, em razão da alta movimentação de reembolsos fraudulentos. Nesse caso, é preciso haver uma análise minuciosa para os reembolsos sem desembolsos, os reembolsos assistidos, à divisão de recibos e à adulteração de recibos.

Em outras palavras, as práticas fraudulentas prejudicam à subsistência do setor e prejudicam os consumidores, uma vez que arcarão com custos de mensalidade mais altos em razão da oneração da operação. A sociedade inteira perde com essa prática.

Conforme levantamento realizado pela Juris Health5, a experiência global mostra que as fraudes na saúde podem ser divididas e combatidas em frentes específicas, tendo em vista áreas e processos. É possível afunilar quais são os tipos de corrupção em cada, categorizá-las e traçar estratégias para combatê-las. As ações ilícitas são elencadas nos seguintes recortes:

  • Regulação: (a) Políticas de saúde: influência na definição da política de saúde; pacotes de benefícios para apenas um determinado setor; políticas públicas voltadas apenas para certas áreas e agentes; subornos para a criação de leis beneficiando setores específicos; (b) Financiamento de saúde: influência política e subornos na regulação de mercado.
  • Orçamento e gestão de recursos: (a) Faturamento de serviços: cobrança fraudulenta de serviços não fornecidas durante o processo; (b) Gestão de folha de pagamento: funcionários fantasmas e pagamentos indevidos; (c) Utilização de recursos: roubo ou uso ilegal de equipamentos* (ex.: veículos ou outros insumos).
  • Aquisição: (a) Construção e reforma de instalações de saúde: suborno para influenciar o processo de licitação de contratação; suborno para influenciar o acompanhamento e controle de instalações; cartel de empreiteiras.
  • Gerenciamento de medicamento: (a) Registro de medicamento: suborno para acelerar o registro de medicamento ou aprovar autorização para a fabricação; fraudes na inspeção de qualidades de medicamentos ou da certificação de boas práticas na fabricação; (b) Distribuição de medicamentos: roubo, desvio e venda de fármacos ao longo da cadeia de distribuição.
  • Hospitais: (a) Processos hospitalares: faturas superestimadas e superfaturadas; não aprimorar a administração hospitalar a fim de conter custo.
  • Paciente: (a) Conduta do paciente: fraude no uso de plano de saúde; pagamentos informais de tratamentos (como utilizar o benefício do convênio para cobrir um tratamento não estipulado no Rol mediante declaração falsa).

A falta de transparência na informação somada à carência de legislação específica são alguns dos fatores que facilitam a existência de fraudes no setor.

Ainda de acordo com o Instituto de Estudo em Saúde Suplementar (IESS), as fraudes custam às operadoras de planos de saúde no Brasil quase R$ 20 bilhões e aumentam em cerca de um terço o custo dos procedimentos médicos para os pacientes.

E, segundo o estudo "Impacto das fraudes e dos desperdícios sobre gastos da Saúde Suplementar" realizado pelo Instituto, em 2017, quase R$ 28 bilhões dos gastos das operadoras médico-hospitalares do país  foram com contas e exames consumidos indevidamente por fraudes e desperdícios com procedimentos desnecessários.

A Escola de Negócios e Seguros, antiga FUNENSEG e Escola Nacional de Seguros também identificou que de 10% a 15% dos reembolsos solicitados pelos segurados foram indevidos; de 12% a 18% das contas hospitalares apresentavam itens indevidos; e de 25% a 40% dos exames laboratoriais não eram necessários.

Recente estudo, desenvolvido pelo Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) apontou que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) bateu recorde de ações em 2017. O total de 30.117 ações representaram uma média de 119,5 decisões por dia, levando em conta os 252 dias úteis daquele ano. Para se ter uma ideia, em 2011 foram julgadas 7.019 ações, ou seja, um crescimento de 329% em seis anos.

Assim, em observância ao princípio da cooperação das partes, inclusive para a subsistência do setor de Saúde Suplementar, é necessário que o Poder Judiciário esteja atento, utilizando-se dos mecanismos existentes para verificar se as indicações médicas são realmente necessárias, se os pacientes estão realmente recebendo o tratamento que é prescrito, se as empresas acionadas são exclusivamente rés ou parte de um esquema de corrupção em que são as mais prejudicadas, o que acaba por ocasionar uma perda para toda a sociedade.

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1 Disponível em: https://www.pwc.com.br/pt/sala-de-imprensa/artigos/fraudes-no-sistema-privado-de-saude-do-brasil.html. Acesso em: 11 de março de 2023.

2 NETO, Ney Wiedemann. O direito à saúde e o Poder Judiciário. Disponível em: http://www.ajuris.org.br/2015/07/20/o-direito-a-saude-e-o-poder-judiciario/. Acesso em: 27 de julho de 2021.

3 Disponível em: https://fenasaude.org.br/noticias/a-mafia-das-orteses-e-proteses.html/. Acesso em: 27 de julho de 2021.

4 Arcabouço normativo para prevenção e combate à fraude na saúde suplementar no Brasil. Fonte: IESS e PwC.

5 Juris Health - Fraudes na Saúde Suplementar.

Manoela Jung Ogando dos Santos

Manoela Jung Ogando dos Santos

Advogada do escritório Mascarenhas Barbosa Advogados.

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