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O avesso da democracia digital: Os espaços com ares de públicos, mas que se revelam privados no debate das ideias

A suposta liberdade de expressão, da forma como se pretendeu exercer, representou, em verdade, opressão a outros possíveis pontos de vista.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Atualizado às 07:48

Um dos mais sagrados valores da democracia é a liberdade de expressão. E vale o seu oposto: um dos valores a serem mais combatidos na democracia é a opressão de ideias e a falta de espaço para debatê-las. A internet chegou com a promessa de ofertar lugar de fala e de pensamento para todos, e, desde seu surgimento e maior uso, tem trazido esperanças e desafios democráticos imprevisíveis.

Governos dos mais diversos países e a comunidade internacional1 vêm pensando caminhos para que o ambiente digital cumpra sua promessa democrática. No Brasil, o tema vem sendo debatido em torno do projeto de lei 2.630/20 que, como todo esboço legislativo, precisa ser amadurecido, criticado, transformado até chegar ao texto final, sujeito ainda ao crivo posterior do Poder Judiciário.

Por alguns dias no mês de abril deste ano, tomando partido na questão, o Google deixou destacado em sua página de acesso o link "O PL das fake news pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil" que direcionava o usuário para um texto contra o projeto de lei.  

Trata-se de uma manifestação de opinião da empresa e, portanto, de aparente exercício democrático da liberdade de expressão por uma plataforma digital.

Os mecanismos de busca, porém, não são meras empresas privadas de procura de dados que ofertam informação da maneira que lhes convém. Assumem, pela própria natureza do que disponibilizam, um compromisso com a verdade em seus múltiplos significados (verdade como correspondência, verdade como fruto da dialética e verdade como consenso). Apesar de serem empresas privadas, as plataformas e os espaços na internet desempenham uma função relevante para a democracia, como veículos capazes de impactar na comunicação e na formação da vontade dos indivíduos.

O anúncio não continha qualquer ressalva de que a crítica ao projeto de lei era um posicionamento da empresa. Estava escrito logo abaixo do espaço de busca, no qual se costuma receber informações amplas sobre os mais diversos assuntos, quase a confundir visualmente o usuário. 

A empresa podia defender sua opinião, mas não da forma como o fez. Além de haver confusão visual entre seu ponto de vista e o resultado de uma busca, a atividade que se propõe a realizar não permite uma tomada de posição categórica no mesmo lugar em que presta o serviço. A exposição honesta de ideias em espaços de amplo acesso ao público requer a apresentação de múltiplos pontos de vista. Se a intenção era debater o projeto de lei, ou até mesmo criticá-lo, deveria ter aberto um canal de diálogo, apresentando visões contrapostas, informando que o link disponibilizado se tratava do posicionamento da empresa.

A suposta liberdade de expressão, da forma como se pretendeu exercer, representou, em verdade, opressão a outros possíveis pontos de vista. É da essência do debate democrático em lugares abertos, primeiro, a realização de discussão, para que, só então, passe-se à deliberação, como bem pontua Robert Dahl. Discussão necessariamente requer abertura e oportunidade para apresentação de ideias antagônicas2.

O evento apenas revela a necessidade de regulamentação da internet, para que a liberdade de expressão não seja uma máscara para a imposição de opinião por quem detém os espaços de amplo acesso na internet ou para quem pode comprá-los. O projeto de lei certamente tem falhas que devem ser debatidas e enfrentadas coletivamente. A liberdade só existe em uma sociedade democrática, quando pode ser desfrutada equilibradamente por todos, no exercício do que os gregos chamavam de isegoria, já que a igualdade é também seu fundamento.

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1 Como os princípios da Parceria Internacional para Informação e Democracia, lançados no Forum para Informação e Democracia, disponível em https://informationdemocracy.org/principles/ , os esforços empreendidos pela União Europeia através do Plano de Ação pela Democracia, disponível em https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/new-push-european-democracy/european-democracy-action-plan_pt, e a Convenção de Budapeste promulgada pelo Brasil, disponível em  https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/convencao-de-budapeste-e-promulgada-no-brasil.

2 Como destaca Dahl: As oportunidades de adquirir uma compreensão esclarecida das questões públicas não são apenas parte da definição de democracia. São a exigência para se ter um a democracia. (...) É justamente por isto que os defensores da democracia sempre dão um lugar privilegiado à educação - e a educação cívica não exige apenas a escola formal, mas também a discussão pública, a deliberação, o debate, a controvérsia, a pronta disponibilidade de informação confiável e outras instituições de uma sociedade livre. DAHL, Robert. Sobre a Democracia, Brasília: Editora UNB, 2001, p. 92.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado

VIP Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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