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Acidente de trabalho e as formas de pensionamento a lume da proibição principiológica ao enriquecimento sem causa

No que se refere aos acidentes de trabalho, o ordenamento jurídico assegura indenizações por danos patrimoniais (emergentes e lucros cessantes) e compensações por extrapatrimoniais (moral, estético e existencial) aos trabalhadores ou seus dependentes, a depender do infortúnio.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Atualizado às 14:44

Dentre os riscos assumidos pelos empresários, designadamente os empregadores, inserem-se os acidentes de trabalho, os quais nem sempre ocorrem por culpa dos empregadores, bem se diga.

No que se refere aos acidentes de trabalho, o ordenamento jurídico assegura indenizações por danos patrimoniais (emergentes e lucros cessantes) e compensações por extrapatrimoniais (moral, estético e existencial) aos trabalhadores ou seus dependentes, a depender do infortúnio.

Desafortunadamente, verificam-se situações em que a Justiça do Trabalho ignora o ordenamento jurídico, impondo aos empregadores condenações que resultam em enriquecimento sem causa. Por exemplo, na hipótese de acidente de trabalho "com" óbito, quando é assegurado aos dependentes do trabalhador vitimado o pagamento de pensionamento (lucros cessantes correspondentes às obrigações alimentícias) em parcela única.

Quanto à forma de pagamento (em única ou múltiplas parcelas) da indenização à título de lucros cessantes, o Código Civil possui regramento distinto para os acidentes "com" e "sem" óbito, senão vejamos:

Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:

  1. no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;
  2. na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.

(...)

Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.

Infere-se do art. 948, II, do Código Civil, que o acidente de trabalho "com" óbito enseja o pagamento de pensionamento em parcelas sucessivas, enquanto o acidente de trabalho "sem" óbito pode ensejar o pagamento de pensionamento em parcela única, desde que requerido pela própria vítima, conforme disciplinado no art. 950, parágrafo único, do mesmo Codex.

Essa distinção é imprescindível para a análise de situações em que alguns Tribunais Regionais do Trabalho condenam empregadores ao pagamento de pensionamento em parcela única, ignorando a circunstância a fatalidade do acidente de trabalho. Por amostragem, vejamos o seguinte julgado:

RECURSO DO RECLAMANTE. ACIDENTE DE TRABALHO. COBRADORA. ATROPELAMENTO. MORTE. RESPONSABILIDADE CIVIL. ART. 927 E 950 DO CC. A percepção de benefício previdenciário pelos herdeiros, no caso, a pensão por morte, não afasta o direito à indenização por dano material. O art. 7º, inciso XXVIII, da CF/88, prevê a indenização reparatória independentemente do seguro social. RECURSO DA RECLAMADA. Configurado o ambiente de trabalho inseguro não há como prosperar a tese defensiva de que o acidente ocorrera por culpa exclusiva da vítima e sim por culpa da reclamada que não proporcionou a empregada um ambiente de trabalho suficientemente seguro para prevenir acidentes (art. 7o, XVIII, CF/88). Mantém-se o dever de reparar. Recursos ordinários conhecidos. Provido parcialmente o recurso do reclamante para deferir o pensionamento em parcela única ao companheiro da falecida, com fulcro no art. 950, do CC.1 (Grifo nosso)

Ocorre que o sobredito posicionamento não merece prosperar sob o prisma da proibição principiológica ao enriquecimento sem causa.

Isso porque, ainda que a expectativa de vida de eventual trabalhador acidentado seja de 40 (quarenta) anos, não será lícito exigir de empregador pagamento de pensionamento em parcela única a filho de 15 (quinze) anos, nem a mãe de 75 (setenta e cinco) anos de idade, considerando que, nessas situações ilustrativas, inexistiu a justa expectativa de que a obrigação alimentícia do trabalhador se estenderia por 40 (quarenta) anos.

O pagamento de pensionamento em parcela única desfigura a própria obrigação alimentícia, sobretudo quando a indenização é devida aos dependentes econômicos do trabalhador vitimado fatalmente. A obrigação alimentícia, que é de trato sucessivo e intransmissível, possui a finalidade de assegurar sustento com dignidade, conforme ensinam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.2  A obrigação alimentícia, portanto, não se presta à aquisição de bens, tais como veículos e imóveis.

Se um idoso de 75 (sessenta e cinco) anos de idade, cuja expectativa de vida não supera 2 (dois) anos3, percebe indenização equivalente à 40 (quarenta) anos de alimentos, é muito provável que ele dissipe o crédito, distribuindo (transmitindo, por via transversa, o que é intransmissível) para outros parentes, o que também desfigura a origem da indenização, qual seja, obrigação alimentícia de trato sucessivo, conforme adverte Rui Stoco acerca do risco da dissipação do crédito alimentício:

Há que se considerar, também, que a indenização tarifada, de uma só vez, encerra duplo inconveniente: pesa na economia e planejamento  de qualquer um, dificultando o desembolso por parte do devedor, mais das vezes tornando-o insolvente ou obrigando-o a dilapidar seu patrimônio ou sacrificar o próprio sustento e de sua família, e pouco representa ao credor, quase sempre tentado a utilizar o montante havido por inteiro, na aquisição de bens materiais supérfluos ou na sua consumação aleatória irresponsável, dissipando em pouco tempo o capital recebido. Omissis. (Grifo nosso)

Destarte, a norma (Código Civil, art. 950, parágrafo único) que versa sobre o pagamento de pensionamento de uma só vez não deve ser interpretada de modo extensivo, pois se trata de regra específica aos casos de acidente "sem" óbito, a qual é extremamente onerosa, cujo potencial de inviabilizar a atividade empresarial não deve ser subestimado.

Em abono à interpretação restritiva do pagamento de pensionamento em parcela única, enfatiza Raimundo Simão de Melo que "é a vítima, e somente ela, que cabe decidir por um pagamento único, a ser arbitrado pelo magistrado."4

De tal sorte, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou jurisprudência no sentido de que o disposto no art. 950, paragrafo único, do Código Civil se restringe aos acidentes de trabalho "sem" óbito, conforme ilustra o seguinte precedente:

EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA. INTERPOSIÇÃO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/14. ACIDENTE DO TRABALHO COM ÓBITO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. PAGAMENTO EM PARCELA ÚNICA. IMPOSSIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DO ART. 950, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC. A faculdade prevista no parágrafo único do art. 950 do CC, de exigir que a indenização por danos materiais seja paga em parcela única, é conferida ao empregado que, em decorrência de acidente do trabalho, está incapacitado para o trabalho de forma permanente, total ou parcialmente. Em casos como o dos autos, de acidente do trabalho com óbito, o pagamento de indenização por danos materiais aos dependentes do ex-empregado está assegurado no art. 948, II, do CC, que se refere à "prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima", não havendo amparo legal para o seu pagamento de uma única vez. Recurso de embargos conhecido e provido.5

Deveras, a condenação do empregador ao pagamento de pensionamento em parcela única em caso de acidente de trabalho "com" óbito viola o disposto no art. 948, inciso II, do Código Civil, bem assim o disposto no art. 950, parágrafo único, do mesmo Codex, sendo esta regra específica aos casos de acidente de trabalho "sem" óbito, conforme doutrina e jurisprudência alinhavadas.

Persistindo, todavia, condenação à título de pensionamento em parcela única no caso de acidente de trabalho "com" óbito, deve-se observar, pelo menos, a expectativa de vida do dependente econômico, acaso esta seja menor que a expectativa de vida do trabalhador vitimado.

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1 TRT 11 - RO 0001158-63.2017.5.11.0002, Relator: Valdenyra Farias, Data de Julgamento: 18/11/2020, 1ª Turma, Data de Publicação: 25/11/2020.

2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias, volume 6. - 7. ed. rev. ampl. e atual. - São Paulo: Altas, 2015, págs. 673, 678 e 680.

3 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/11/25/ibge-expectativa-de-vida.htm 

4 MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidade legais, dano material, dano moral, estética, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 5. ed. - São Paulo: LTr, 2013, pág. 493.

5 TST - E-ED-ED-ARR 0000407-91.2011.5.15.0029, Relator: Hugo Carlos Scheuermann, Data de Julgamento: 07/12/2017, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 15/12/2017.

Raphael Guimarães

Raphael Guimarães

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste. Advogado atuante.

Luiz Phillipe de Oliveira Gomes Martins

Luiz Phillipe de Oliveira Gomes Martins

Analista Judiciário da Justiça do Trabalho. Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.

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