A outra face da intolerância religiosa
É de se indagar como será interpretada a norma que regula o tema, devendo o aplicador da lei parametrizar os direitos e deveres contrapostos na situação de fato humilhante a qual os envolvidos vivenciaram.
quinta-feira, 4 de maio de 2023
Atualizado às 14:13
Recente constrangimento passado por uma família no Rio de Janeiro ganhou a atenção da mídia nacional, ao ser impedida de fazer uma corrida em carro de motorista de aplicativo em razão das vestimentas que estavam usando.
Ocorre que as roupas utilizadas pelos passageiros eram incomuns, apesar de remontarem às origens da fundação do país. Tratavam-se de roupas típicas do Candomblé, religião de matriz afro-brasileira, caracterizada pela roupagem branca ou colorida e, no mais das vezes, adornada com colares de miçangas.
Neste contexto, sabe-se que o tratamento legal para o racismo no brasil é rigoroso, previsto em lei específica que regula a matéria - lei 7.716/89 - e que, apesar de editada a mais de três décadas, passou por diversas alterações em seu texto, bem como em sua interpretação por parte dos Tribunais Superiores.
Prevê o Art.1º da norma em destaque que os delitos resultantes da discriminação religiosa se enquadram nas previsões legais atinentes ao crime de racismo, merecendo o mesmo tratamento legal, com a rigidez que lhe é típica.
Seguindo a lógica imposta pelo dispositivo que inaugura a legislação antirracismo, o Art.20-C antecipa que o Juiz deve considerar como ato de intolerância racial qualquer tratamento dado à pessoa pertencente a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, o qual não seria dispensado àquele sujeito pertence a outra raça, cor, etnia, religião ou procedência.
Desta forma, a conduta anteriormente narrada poderia, em tese, enquadrar o agente nas penalidades previstas na lei 7.716/89, caracterizando-se como crime de racismo, visto que conduta decorrente de preconceito religioso.
Não obstante, é razoável que se analise a face oposta à conduta discriminatória recentemente estampada pela mídia.
Pode-se notar, por um lado, que a legislação mencionada, apesar de caracterizar-se pela adequada rigidez que as condutas discriminatórias merecem, pareceu não regular criminalmente o episódio ilustrado.
Isto porque o único dispositivo legal que prevê a conduta delitiva no contexto racial restringe seu âmbito de aplicação ao afirmar que constitui crime de racismo impedir o acesso ou uso de transportes públicos como aviões, ônibus, trens, etc.
Assim sendo, é pacífico que o transporte remunerado individual de passageiros é um meio particular de translado de pessoas e, portanto, não se enquadraria nas previsões legais, não podendo o aplicador do direito estender a interpretação da lei para prejudicar o sujeito eventualmente acusado pela suposta prática do delito no âmbito privado.
Ademais, não seria adequado que o Estado invadisse a esfera privada de atuação para regular como o proprietário deveria se comportar em relação à sua propriedade, com a ressalva dos excessos que podem vir a ser cometidos e que, estes sim, acarretariam a responsabilidade criminal e cível do agente.
Por óbvio que o comportamento ilustrado é inadequado num meio civilizado e, certamente, prejudica a própria manutenção das relações sociais amistosas.
Entretanto, é de se indagar como será interpretada a norma que regula o tema, devendo o aplicador da lei parametrizar os direitos e deveres contrapostos na situação de fato humilhante a qual os envolvidos vivenciaram.