O prequestionamento de matéria não analisada em recurso de apelação
Embora positivado o dever de fundamentação das decisões judiciais, a prática jurídica indica a prolação de decisões fundamentadas apenas nos elementos entendidos como suficientes pelos magistrados.
quinta-feira, 4 de maio de 2023
Atualizado às 14:12
O conhecimento aprofundado e atualizado acerca das normas de processo civil figura cada vez mais relevantes para a garantia da efetiva tutela dos direitos materiais. Isto porque, não raras as vezes, a apreciação do mérito resta obstaculizada pelo não cumprimento de requisito processual.
Este cenário fica ainda mais complexo quando considerado o rol normativo atinente aos recursos aos Tribunais Superiores, cuja escorreita satisfação dos requisitos legais e superação de súmulas defensivas configura tarefa bastante laboriosa.
Dentre os requisitos que reiteradamente figuram como fundamento para despachos de inadmissão de recursos especiais e extraordinários, chama atenção a questão do prequestionamento, ou melhor, dizendo, sua ausência, na visão dos Tribunais locais.
Para além da discussão atinente sobre a forma de satisfação deste requisito, qual seja, ocorrência de prequestionamento expresso, implícito, ficto; necessária manifestação (ou não) do órgão julgador sobre os dispositivos envolvidos, suficiência (ou não) de apreciação da tese jurídica debatida, emerge dúvida quanto ao modo de sua superação nas hipóteses de provimento do recurso de apelação, sem a apreciação de todos os fundamentos pelo Tribunal.
Não se olvida que o dever de fundamentação das decisões judiciais resta consignado no inciso IX do art. 93 da Constituição Federal brasileira, por meio do qual é estabelecida a norma de que os julgamentos realizados pelo Poder Judiciário serão públicos e fundamentados, sob pena de nulidade.
Oportuno frisar que a garantia constitucional relacionada ao mencionado artigo versa sobre a fundamentação legítima e adequada, a qual possui uma dimensão interna - pois voltada às partes processuais e destinada a viabilizar o integral cumprimento ou impugnação da decisão, e uma dimensão externa, voltada à sociedade em geral e representativa da possibilidade de controle da atividade jurisdicional, com vistas à segurança e previsibilidade.
Para dar concretude à norma constitucional, o Código de Processo Civil - 2015, os incisos do parágrafo primeiro do artigo 489 elencam hipóteses nas quais a decisão é tida por não fundamentada, guardando relevo ao presente texto a redação do inciso IV, assim transcrita: "IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;".
Sob olhar inicial, esta regra parece suficiente para dirimir quaisquer dúvidas sobre o dever de fundamentação, o qual deve incidir sobre todos os elementos capazes de resolverem a lide.
Tal conduta seria consequência automática do contraditório substancial e do dever de cooperação positivados em diversas previsões do ordenamento jurídico, haja vista ser conferido às partes o direito e garantia de efetivamente influenciar no desfecho do processo por meio da análise de seus argumentos, sendo vedado ao juiz escolher quais fundamentos serão levados em conta para a formação de seu convencimento.
Contudo, o Poder Judiciário, orientado por reiteradas decisões proferidas pelo STJ e STF firmou entendimento de que o órgão julgador não está obrigado a se manifestar sobre todos os pontos alegados pela parte, mas somente sobre os que entender necessários à solução da controvérsia, de acordo com o livre convencimento motivado.
No âmbito do STJ exemplificam a postura os acordos proferidos no EDcl no AgRg no RHC 143.773/PE, EDcl no REsp 2015401 / RS, AgRg nos EDcl no AREsp 2083360 / CE; já no âmbito do STF, exemplificam a postura os seguintes julgamentos: HC118719, ARE760465, ARE1216977AgR.
Deste modo, seguindo a diretriz jurisprudencial, são verificadas decisões judiciais que deixam de apreciar todos os argumentos das partes, mas produzem dispositivos de procedência ou improcedência.
Este cenário se torna desafiador no âmbito recursal, especialmente na hipótese de interposição de recurso especial ou extraordinário pela parte irresignada.
Não se pode olvidar que estes recursos devem satisfazer o requisito do prequestionamento, ora entendido como a manifestação pelo Tribunal a quo acerca da tese jurídica apresentada.
Neste momento se configura situação processual complexa para a parte beneficiada pelo julgamento do recurso de apelação e que se enquadrará como recorrida nos recursos aos tribunais superiores.
Isto porque, parte de seus argumentos não foram apreciados quando do julgamento do recurso de apelação com resultado favorável e, assim, não são tidos como prequestionados.
No âmbito do contencioso estratégico é necessário antever os riscos processuais, impondo a garantia de apreciação de todos os argumentos pelos tribunais superiores.
Assim, a postura automática seria a oposição de Embargos de Declaração para complementação do julgamento e apreciação dos demais argumentos que, autonomamente, poderiam garantir o reconhecimento do direito.
Todavia, a oposição dos Embargos de Declaração depende da presença do interesse recursal, traduzido no binômio sucumbência e perspectiva de maior vantagem.
A ausência destes requisitos inviabiliza a admissibilidade recursal.
Sob tal perspectiva, os embargos de declaração não se apresentam como via de impugnação eficiente.
O Código de Processo Civil de 2015 avançou na questão do pré-questionamento ao instituir a obrigatoriedade da declaração de voto vencido (art. 941, §3) e o prequestionamento ficto previsto no art. 1.025.
Não obstante, ainda permanecem dificuldades sobre a conduta processual mais adequada para prequestionamento de fundamentos não examinados em acórdão impugnado por recurso especial.
O STJ, por meio da Corte Especial, no julgamento do EAREsp 227.767-RS formatou entendimento para solucionar a questão, considerando prequestionados os fundamentos adotados nas razões de apelação e desprezados no julgamento do respectivo recurso, desde que, interposto recurso especial, sejam reiterados nas contrarrazões da parte vencedora.
"PROCESSUAL CIVIL. INTERPOSIÇÃO DE RECURSO DE APELAÇÃO COM EXPOSIÇÃO DE MAIS DE UM FUNDAMENTO. PROVIMENTO DA APELAÇÃO COM BASE EM APENAS UM FUNDAMENTO, DEIXANDO-SE DE EXAMINAR OS DEMAIS. REVERSÃO DO ACÓRDÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIA EM DECISÃO MONOCRÁTICA NO STJ. AGRAVO REGIMENTAL QUE VENTILA FUNDAMENTOS DESPREZADOS NO JULGAMENTO DA APELAÇÃO. EXISTÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. DIVERGÊNCIA INTERNA NO STJ. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PARCIALMENTE PROVIDOS PARA DAR POR PREQUESTIONADAS QUESTÕES JURÍDICAS REITERADAS NAS CONTRARRAZÕES AO RECURSO ESPECIAL.
- Cuida-se de embargos de divergência por meio dos quais pretendem os embargantes a uniformização do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no tocante à resposta ao seguinte questionamento: consideram-se prequestionados o(s) fundamento(s) das razões de apelação desprezados no acórdão que deu integral provimento ao recurso?
- À luz do acórdão da C. Primeira Turma deste Tribunal, o recurso especial não atendeu ao requisito especial do prequestionamento quanto aos temas de (i) não fluência do prazo prescricional na ausência de liquidez do título executivo; (ii) não ocorrência de inércia dos exequentes; e (iii) execução movida por incapaz, contra o qual não corre a prescrição.
- Lidando com situação jurídica idêntica à dos presentes autos, assentou o acórdão paradigma (EREsp n. 1.144.667/RS), julgado por esta C. Corte Especial em 7/3/2018 e da relatoria do e. Min. Felix Fisher, que "a questão levantada nas instâncias ordinárias, e não examinada, mas cuja pretensão foi acolhida por outro fundamento, deve ser considerada como prequestionada quando trazidas em sede de contrarrazões".
- Portanto, existem duas linhas de pensamento em rota de colisão no Superior Tribunal de Justiça, revelando-se de todo pertinente o recurso de embargos de divergência, em ordem a remarcar o entendimento que já havia sido proclamado no julgamento do paradigma invocado. Com efeito, rendendo vênias à C. Primeira Turma, o entendimento correto é o que considera toda a matéria devolvida à segunda instância apreciada quando provido o recurso por apenas um dos fundamentos expostos pela parte, a qual não dispõe de interesse recursal para a oposição de embargos declaratórios.
- A questão precisa ser analisada sob a perspectiva da sucumbência e da possibilidade de melhora da situação jurídica do recorrente, critérios de identificação do interesse recursal. Não se trata de temática afeta a esta ou aquela legislação processual (CPC/73 ou CPC/15), mas de questão antecedente, verdadeiro fundamento teórico da disciplina recursal. Só quem perde, algo ou tudo, tem interesse em impugnar a decisão, desde que possa obter, pelo recurso, melhora na sua situação jurídica. Precedente: AgInt no REsp 1.478.792/PR, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 12/12/2017, DJe 2/2/2018. Doutrina: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. V. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 516; MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1276.
- É bastante fácil perceber que os ora embargantes não dispunham, após o julgamento da apelação, de nenhum dos dois requisitos: não eram vencidos (sucumbentes) e não existia perspectiva de melhora na sua situação jurídica. Logo, agiram segundo a ordem e a dogmática jurídicas quando se abstiveram de recorrer.
- Tenho por bem compor a divergência entre os acórdãos confrontados adotando o entendimento do acórdão paradigma, segundo o qual se consideram prequestionados os fundamentos adotados nas razões de apelação e desprezados no julgamento do respectivo recurso, desde que, interposto recurso especial, sejam reiterados nas contrarrazões da parte vencedora.
- Embargos de divergência conhecidos e parcialmente providos a fim de dar por prequestionada a matéria relativa à não ocorrência de prescrição em razão da iliquidez do título executivo, cassando o v. acórdão de fls. 293-294, para que seja realizada nova análise do tema prescrição."
(STJ, Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial 227.767-RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Corte Especial, j. 17/6/20).
Assim, foi estabelecido mecanismo específico para prequestionamento na hipótese ora tratada, consistente na renovação de todos os argumentos não apreciados no julgamento pelo tribunal de origem nas contrarrazões do recurso especial.
Trata-se de via ficta de prequestionamento a qual, todavia, satisfaz o requisito de admissibilidade recursal, viabilizando seu processamento e garantindo oportunidade de análise de todas as teses levantadas pela parte recorria.
Partindo das observações da prática jurídica, esta posição do STJ ainda não é largamente conhecida, do que resultam prejuízos processuais, os quais poderiam ser evitados com a inserção nas contrarrazões de breve preliminar com menção ao julgamento acima transcrito e comprovação do prequestionamento de todos os argumentos favoráveis à parte recorrida.