Quem deve "falar por último" nos processos dos Tribunais de Contas?
Não se pode perder de vista que quando do julgamento do RE 636.886/AL, o STF deixou patente que nos processos em trâmite nos tribunais de contas não se garante um contraditório efetivo aos interessados.
quarta-feira, 3 de maio de 2023
Atualizado às 13:45
Em 2016, o plenário do Tribunal de Contas da União afirmou de forma categórica no Acórdão 2053 que 'não caracteriza inobservância do devido processo legal a ausência de intimação do responsável para que apresente manifestação após a emissão de parecer pelo Ministério Público junto ao TCU, pois não há previsão legal ou regimental para tal intimação'
Ou seja, para o TCU, por ausência de previsão legal ou regimental, a juntada de documentos que eventualmente pudessem vir a formar convicção contra o interessado no processo administrativo não precisava ser submetida ao crivo do contraditório.
5 anos depois, o plenário do TCU aparentemente mudou de entendimento, conforme se pode depreender da leitura do seguinte excerto do Acórdão 1670/21: "No caso de juntada aos autos, após a realização da citação ou da audiência do responsável, de documento novo que lhe seja desfavorável, outra oportunidade de manifestação deve-lhe ser concedida, em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa".
Todavia, neste ano de 2023, a primeira câmara do TCU entendeu nos autos do Acórdão 1989 que, concluída a instrução processual naquela Corte de Contas, novos documentos apresentados serão recebidos como memorial: "É facultado ao responsável juntar documentos desde a constituição do processo até o término da etapa de instrução, que se encerra com a manifestação do titular da unidade técnica (art. 160, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do TCU). Concluída a instrução, novos documentos apresentados são recebidos como memorial (art. 160, § 3º, do Regimento Interno do TCU), sem habilidade para provocar a reabertura da etapa de instrução ou a exclusão do processo da pauta de julgamentos."
Entendimento semelhante a este da primeira câmara do TCU restou recentemente proferido pelo TCE/PE que, coincidentemente também por meio de sua primeira câmara, assim deliberou quando da prolação do Acórdão nº 568 nos autos do Processo TCE-PE 20100315-6ED001: "Não se faz necessária a intimação do Interessado para se pronunciar acerca da Nota Técnica de Esclarecimentos, quando essa se limite à apreciação do alegado pelo Defendente, não tendo agravado a situação originalmente apontada ou alterado seus fundamentos."
Perceba-se, portanto, que, em posicionamentos recentes, os Tribunais de Contas não têm vislumbrado problemas em terem documentos produzidos por si mesmos ou pelo Ministério Público de Contas (MPCO) como sendo os últimos a antecederem a tomada de decisão.
Entretanto, é preciso de imediato deixar bem claro que se revela indispensável que toda manifestação capaz de servir de fundamento para uma motivação aliunde no âmbito dos processos dos tribunais de contas, precisa necessariamente ser submetida ao escrutínio do interessado.
E a justificativa para tal assertiva repousa no fato de que os processos dos tribunais de contas são inegavelmente penaliformes, razão pela qual a eles devem se aplicar, mutatis mutantis, o entendimento consagrado pelo STF no HC 157627 AgR/PR.
No mencionado julgamento o Supremo deixou consignado que fere "as garantias de defesa, todo expediente que impede o acusado, por meio do defensor, de usar sua palavra por último. Isso porque, independentemente de estar despida de roupagem acusatória, a peça processual das alegações finais, ao condensar todo o histórico probatório, pode ser determinante ao resultado desfavorável do julgamento em relação ao acusado, o que legitima este a merecer a oportunidade de exercitar o contraditório."
Outro julgamento do STF nessa mesma linha foi proferido no HC 176332 onde se afirmou com clareza que "a relação de antagonismo entre as versões da acusação e da defesa e a necessidade da condução dialética do processo não deixam dúvidas sobre quem tem o 'direito de falar por último': o acusado".
Convenhamos, os processos que tramitam nos tribunais de contas estão muito aquém de observar o garantismo pregado por Luigi Ferrajoli1 quando este afirma que: "graças à separação entre Juiz e acusação e à supressão da figura do juiz instrutor, foi diminuída a contaminação policialesca da função jurisdicional em sentido estrito".
E isso ocorre em razão de que, ao fim e ao cabo, no âmbito dos processos sob sua jurisdição, o tribunal de contas "além de encarregado do julgamento, é também a parte acusatória2".
Veja, além dessa característica de fundir em si mesmo o papel de investigador, acusador e julgador, é preciso registrar ainda que, no âmbito dos tribunais de contas não há produção de prova pericial ou testemunhal.
E mais, não se pode perder de vista que quando do julgamento do RE 636.886/AL, o STF deixou patente que nos processos em trâmite nos tribunais de contas não se garante um contraditório efetivo aos interessados.
De tal forma, diante de todo esse cenário aqui exposto, nos parece claro que "a juntada de qualquer tipo de manifestação que disponha sobre a matéria discutida no processo e que tenha o condão de influenciar no resultado do julgamento deve ser necessariamente submetida ao crivo do contraditório com a necessária manifestação das partes acerca do seu conteúdo3".
Assim, respondendo à indagação do título, podemos afirmar que: quem deve "falar por último" nos processos dos tribunais de contas é sempre o interessado e não o próprio órgão de controle.
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1 Santoro, Antonio Eduardo Ramires, Brito, Elizabeth Cristina Vale, Marques, Dorli João Carlos, Costa, Marcos Paulo Chagas da, Brandão, Pedro Yago Leão Queiroz, Segurança Pública, Soraia da Rosa Mendes e Ana Carolina F. Longo (Org.), Brasília: IDP, 2015, pág. 84.
2 Neto, Giuseppe Giamundo, As garantias do processo no Tribunal de Contas da União: Princípios constitucionais, Código de Processo Civil/2015 e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, pág. 109.
3 Araújo, Aldem Johnston Barbosa, Processo administrativo e o novo CPC: impactos da aplicação supletiva e subsidiária, Curitiba: Juruá, 2017, pág. 112.