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Da irredutibilidade do valor total das astreintes

Um dos institutos jurídicos mais debatidos do direito processual civil é o das astreintes, as famosas multas diárias, geralmente aplicadas livremente pelo magistrado como garantia de coercibilidade das decisões judiciais.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Atualizado às 13:11

Um dos institutos jurídicos mais debatidos do direito processual civil é o das astreintes, as famosas multas diárias, geralmente aplicadas livremente pelo magistrado como garantia de coercibilidade das decisões judiciais. 

O instituto, que está previsto expressamente no art. 537 do CPC, não condiciona sua aplicação a requerimento prévio da parte - dando, portanto, ao juiz a possibilidade de aplicação de ofício -, nem a qualquer fase do processo, podendo ser aplicado no conhecimento, no âmbito da tutela de urgência, na sentença e na execução, "desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito"

A aplicação das astreintes, portanto, pode se dar em todo o processo, sem que necessariamente a requeira qualquer parte, no fito de garantir coercitividade às decisões e desde que por meio de um critério de razoabilidade e proporcionalidade que avalie a sua compatibilidade com a obrigação e seja estimado tempo certo de cumprimento. 

Há algumas questões, todavia, que rondam o instituto das astreintes, uma delas é a sua execução em face da Fazenda Pública, tema que tem gerado grandes debates no âmbito acadêmico e da prática jurídica. Outro tema relevante, que é o que abordaremos, é o da redução do valor total aplicado, sob o argumento de excesso.

Isso porque, não raras vezes as astreintes ultrapassam o próprio valor estipulado pelas partes à causa ou mesmo à pretensão pecuniária envolvida nas disputas. Diante disso, é razoável a execução de astreintes estabelecidas em alta monta?

É sabido que as astreintes têm natureza de sanção, portanto, sua imposição inicial se dá para garantir a exequibilidade da decisão judicial, servindo, portanto, como punição em caso de eventual descumprimento ou retardo no cumprimento do comando judicial. Justamente por isso, as decisões judiciais costumam estabelecer prazo para seu cumprimento, quando não se tratar de prazo já estabelecido em lei. 

Portanto, a execução das astreintes somente se dá com o descumprimento da decisão judicial, sendo esse, poderíamos assim dizer, o seu "fato gerador primário". De outro lado, o montante final, ou o valor total das astreintes só se efetiva com o efetivo cumprimento da decisão judicial, de modo que é esse o "fato gerador secundário" da interrupção de sua contagem - a menos que o próprio magistrado as limite desde sua imposição.

Aí observamos outro caráter das astreintes: a sua natureza sancionatória e, portanto, punitiva/educativa. 

Isso porque, se quando de sua imposição esta continha uma natureza de eventualidade, servindo de aviso ao destinatário da ordem (de que o seu descumprimento impenderia em perda financeira diária), de outro lado, após a ocorrência de seu fato gerador primário, isto é, da desobediência do comando judicial, a natureza das astreintes e, portanto, o seu fim último, passa a ser a punição da parte desidiosa - dada a dignidade da Justiça, nos moldes do art. 774, IV do CPC - assim como sua educação, para que não torne a desobedecer a comandos judiciais. 

Portanto, na imposição das astreintes observamos o comando-aviso à parte delas destinatária. Já na incidência de seu fato gerador primário, observamos nas astreintes a natureza de sanção.

Nesse sentido, e dada a natureza das astreintes, os critérios de razoabilidade e proporcionalidade não devem ser aplicados em se considerando o seu valor total, portanto, o montante final das astreintes, alcançado após a ocorrência do que estamos chamando fato gerador secundário.

Isso porque, o montante final nada mais fará que revelar o peso da desídia da parte dela destinatária e, portanto, o tempo transcorrido entre a intimação para cumprimento da decisão judicial e o seu efetivo cumprimento. A lógica, portanto, é inequívoca: quanto mais rápido a parte cumpre a ordem, menor o montante das astreintes. Quanto mais demore para dar cumprimento, maior o montante.

Note-se, ademais, que não resta à parte que recebe o comando judicial a única opção de cumpri-lo, existindo no processo civil recursos que podem servir à interrupção desse prazo de cumprimento, como é o Agravo de Instrumento, com requerimento de efeito suspensivo ativo. Todavia, à parte que não agrava, assim como à que agrava e não alcança o suspensivo ativo, resta o dever de cumprir o comando, devendo pagar o montante de astreintes em caso de eventual descumprimento.

Desse modo, ao contrário do que se vê costumeiramente determinados magistrados fazerem, o montante final das astreintes não pode ser reduzido por ser considerado excessivo. 

Os critérios de razoabilidade e proporcionalidade devem ser utilizados pelo magistrado quando este definir o valor diário da multa, observando para tal o porte das partes em disputa, e a natureza e relevância de cumprimento da obrigação, bem como estabelecendo prazo para tal, que pode ser imediato, em horas ou dias. 

Uma vez estabelecido o valor diário da multa com base nesses critérios, o montante torna-se irretocável pelo magistrado, ainda que a requerimento, justamente porque revela o tamanho da desídia da parte destinatária e a necessidade de sua repreensão/educação.

O c. STJ possui jurisprudência firme nesse sentido, estabelecendo o seguinte:

RECURSOS ESPECIAIS. PROCESSUAL CIVIL. IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. VALORES BLOQUEADOS. BACEN-JUD. TRANSFERÊNCIA. ORDEM JUDICIAL. DESCUMPRIMENTO. MULTA COMINATÓRIA. VALOR. REDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PRINCÍPIOS RESPEITADOS. TETO. FIXAÇÃO. EXCEPCIONALIDADE. (...) 3. Para a apuração da razoabilidade e da proporcionalidade das astreintes, não é recomendável se utilizar APENAS do critério comparativo entre o valor da obrigação principal e a soma total obtida com o descumprimento da medida coercitiva, SENDO MAIS ADEQUADO, EM REGRA, O COTEJAMENTO PONDERADO ENTRE O VALOR DIÁRIO DA MULTA NO MOMENTO DE SUA FIXAÇÃO E A PRESTAÇÃO QUE DEVE SER ADIMPLIDA PELO DEMANDADO RECALCITRANTE. 4. Razoabilidade e proporcionalidade da multa cominatória aplicada em virtude do descumprimento, por 280 (duzentos e oitenta) dias, da ordem judicial de transferência de numerário bloqueado via BacenJus. 5. A exigibilidade da multa aplicada é a exceção que somente se torna impositiva na hipótese de recalcitrância da parte, DE MODO QUE, PARA NELA NÃO INCIDIR, BASTA QUE SE DÊ FIEL CUMPRIMENTO À ORDEM JUDICIAL. 6. TENDO SIDO A MULTA COMINATÓRIA ESTIPULADA EM VALOR PROPORCIONAL À OBRIGAÇÃO IMPOSTA, NÃO É POSSÍVEL REDUZI-LA ALEGANDO A EXPRESSIVIDADE DA QUANTIA FINAL APURADA SE ISSO RESULTOU DA RECALCITRÂNCIA DA PARTE EM PROMOVER O CUMPRIMENTO DA ORDEM JUDICIAL. (...)10. Admitir que a multa fixada em decorrência do descumprimento de uma ordem de transferência de numerário seja, em toda e qualquer hipótese, limitada ao valor da obrigação é conferir à instituição financeira livre arbítrio para decidir o que melhor atende aos seus interesses. 11. O destinatário da ordem judicial deve ter em mente a certeza de que eventual desobediência lhe trará consequências mais gravosas que o próprio cumprimento da ordem, e não a expectativa de redução ou de limitação da multa a ele imposta, sob pena de tornar inócuo o instituto processual e de violar o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional (...)". 

(STJ. REsp 1840693 / SC. Terceira Turma. Relator: RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. Data de Julgamento: 26/05/2020. Data de Publicação: DJe 29/05/2020)

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CONDENATÓRIA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. ASTREINTES. ALEGAÇÃO DE EXORBITÂNCIA. INOCORRÊNCIA. RECALCITRÂNCIA. MANUTENÇÃO DO MONTANTE. 1- Recurso especial interposto em 2/6/2021 e concluso ao gabinete em 9/12/2021. 2- O propósito recursal consiste em dizer se seria possível a limitação das astreintes ao máximo do valor pretendido na obrigação principal ou a alteração da periodicidade de incidência da multa. 3- Consoante jurisprudência desta Corte Superior, a verificação da existência de exorbitância da multa cominatória por descumprimento de decisão judicial não pode ser direcionada apenas à comparação entre a quantia total da penalidade e o valor da obrigação principal, devendo ser analisado o valor estabelecido diariamente como multa à parte recalcitrante. 4- Hipótese dos autos em que foi fixada tutela antecipada na sentença para que a recorrente passasse a enviar os boletos de cobrança de seguro saúde dos meses subsequentes à decisão com os valores reajustados, sob pena de multa diária fixada em R$ 1.000,00. 5- Em razão da recalcitrância reiterada da recorrente em cumprir a ordem judicial, o valor da multa foi majorado de R$ 1.000,00 para R$ 2.000,00 por dia. 6- Nos termos do cumprimento de sentença, a mensalidade a ser paga pela recorrida, após a decisão judicial, passou de R$ 2.497,33 para R$ 1.090,31, razão pela qual o valor inicial fixado a título de astreintes era compatível com a obrigação diante do bem jurídico tutelado. 7- A recalcitrância da recorrente em cumprir a ordem judicial permaneceu por 642 dias, alcançando o valor das astreintes o montante de R$ 1.284.000,00. 8- O valor é alto porque mais alta foi a renitência da recorrente em cumprir a tutela provisória deferida, pois houvesse ela cumprido a ordem judicial em tempo, ou em menos tempo, nada ou muito pouco seria devido a esse título. 9- A manutenção da multa diária, fixada em R$ 2.000,00, no patamar que alcançou, R$ 1.284.000,00, decorre exclusivamente da recalcitrância da recorrente em desobedecer a ordem judicial, por 642 dias, revelando-se, pois, proporcional e razoável, não havendo o que reduzir. 10- Recurso especial não provido.

(STJ - REsp: 1967587 PE 2021/0326110-3, Data de Julgamento: 21/06/2022, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/06/2022)

Remansoso, portanto, que o valor total das astreintes não deve ser alterado pelo magistrado, tendo este último ingerência apenas quanto ao estabelecimento de seu valor diário, cabendo à parte destinatária da ordem estabelecer, por sua conduta processual, o seu valor final e, uma vez estabelecido um valor final a partir do fato gerador secundário (o cumprimento efetivo da ordem), a execução das astreintes é faculdade da parte.

Cesar Peduti Filho

Cesar Peduti Filho

Advogado e Agente da Propriedade Industrial com 21 anos de experiência nas esferas administrativa, consultiva, contratual e contenciosa judicial de propriedade intelectual e direito digital. Agente da Propriedade Industrial certificado pelo INPI. Diretor de Comunicação e Marketing da ASPI - Associação Paulista de Propriedade Intelectual - gestão 2017 a 2021. Membro do Comitê Jurídico da ITALCAM - Câmara de Comércio Italiana - gestão 2018 a 2020.

Mario Filipe Cavalcanti

Mario Filipe Cavalcanti

Advogado em Propriedade Intelectual e Direito Digital, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, mestrando em Ciências da Comunicação e Semiótica pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Membro das Comissões de Privacidade e Proteção de Dados e Defesa do Consumidor da OAB/SP.

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