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(In)constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da internet e a sua inevitável repercussão no meio social

Diante de um tema tão complexo, com diversas posições relevantes e antagônicas, espera-se que o STF leve em consideração a real dimensão do impacto social que a futura decisão pode causar, com reflexo em temas essenciais ao Estado Democrático de Direito, como o pluralismo e a possibilidade de livre manifestação, intrínsecos à dignidade da pessoa humana.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Atualizado às 09:48

Acerca do tema, é de pleno conhecimento que o Supremo Tribunal Federal iniciou audiência pública para se debater a respeito da responsabilidade civil dos provedores de aplicações por danos oriundos de conteúdos gerados por terceiros, por decorrência de repercussão geral reconhecida quanto à constitucionalidade do artigo 19 da lei 12.965/14, cujo tema é o de nº 987.

Postas tais premissas, cumpre esclarecer que o atual e prevalente entendimento do Superior Tribunal de Justiça e dos demais tribunais do país se pauta na aplicação da responsabilidade civil subjetiva ao provedor de aplicação, consoante orientação promovida pelo Marco Civil da Internet, referente à previsão de que a ocorrência do dano dar-se-á apenas na hipótese do descumprimento de uma decisão judicial que determine a retirada do conteúdo, salvo exceções previstas em lei, como as hipóteses relativas à conteúdo sexual ou nudez e violações de direitos autorais.

Dito isso, ao que se vê, parte significativa da doutrina defende a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo, por considerar a atual opção legislativa incompatível com os princípios da intimidade, honra, reputação e imagem das pessoas, consagradas no  artigo  5°,  inciso  X,  da  Constituição  Federal,  sob  a  compreensão  de  que  teriam sido instituídos verdadeiros obstáculos  legais  para  as  vítimas  alcançarem  a devida indenização, com excedente favorecimento aos provedores de internet.

Contudo,  cabe salientar  que    fundamentos  jurídicos  verossímeis,  pautados  nos princípios da liberdade de expressão e vedação à censura, dispostos, respectivamente, no artigo 5º, IV e IX; artigo 5º, IX e XIV e artigo 220, parágrafo 2º, da Constituição Federal, com o condão de legitimar a aplicação do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

Isto porque, se o provedor se tornar o responsável por determinar o que é ou não apropriado, se for o encarregado de  aferir  a licitude  de  cada  teor  produzido por seus usuários, há grande probabilidade de que conteúdos de caráter subjetivo, com manifestações que constituam meras opiniões ou críticas possam ser retiradas sem justo motivo.

Significa  dizer,  atribuir  tal  decisão  aos  provedores  de  internet  poderia restringir de maneira desproporcional e desarrazoada a liberdade de expressão, a livre manifestação do pensamento, ao possibilitar a realização de censura prévia, princípios muito caros ao Estado Democrático de Direito.

No ponto, não se desconhece a grande relevância de se combater discursos de ódio e ataques à democracia, sem mencionar a importância do combate à desinformação, questões que devem ser levadas em consideração para propiciar eventual reforma na legislação ou mesmo sua regulamentação.

Ocorre que afigura-se  inviável  a  delegação  de  tal  incumbência  aos provedores  de  internet,  na medida em que a declaração da inconstitucionalidade do artigo 19 da legislação em apreço propiciaria inevitavelmente um grande impacto na sociedade, a ponto de abranger genericamente qualquer conteúdo gerado pelos usuários da rede, inclusive os dotados de grande subjetividade, isto é, os que se encontram em uma zona cinzenta.

Afinal, é de se presumir que a quantidade de conteúdo gerado na internet tornaria inexequível o atendimento da demanda e a avaliação detalhada de cada caso por parte do provedor, o que ocasionaria a adoção de uma posição conservadora, com a simples exclusão de milhares de manifestações, inclusive legítimas, sem qualquer conteúdo ilícito.

E é isso que se pretende evitar ao atribuir ao Poder Judiciário a análise e palavra final concernente à ilicitude de eventual conteúdo produzido. Não  bastasse,  a  pretendida alteração  ocasionaria  um  impasse para  todos  os provedores de aplicações, na medida em que correriam o risco de serem responsabilizados tanto pela ausência de um filtro que impedisse a propagação de um conteúdo potencialmente abusivo, quanto pela remoção de eventual manifestação lícita, por haver grande probabilidade de que usuários censurados não se conformassem com a violação de princípios lhes assegurados constitucionalmente.

De modo geral, portanto, o legislador, ao ponderar os diversos princípios constitucionais, buscou compatibilizar todos os interesses envolvidos, para atender a  liberdade  de  imprensa,  expressão  e  vedação  à  censura,  a  fim  de  beneficiar  os usuários  de  boa-fé  e  evitar  que  o  provedor  proceda  com  arbitrariedade  ao efetuar  um controle prévio e valorar os conteúdos gerados na rede.

Ora, não haveria problema algum, frisa-se, em eventual mudança da legislação ou na realização de regulamentação, para garantir interesses do próprio Estado ou ampliar as garantias aos usuários.

Entretanto, a possibilidade de haver correções à sistemática atual não torna a legislação, por si só, inconstitucional, na medida em que configurada mera opção legislativa a adoção do regime de responsabilização atual, efetivada após amplo debate no âmbito do Poder Legislativo, a quem detém a atribuição de analisar a conveniência e oportunidade de verificar quais são os interesses da sociedade que devem ser protegidos e sopesados pelo ordenamento jurídico.

Com efeito, a própria Constituição Federal assegura o direito de resposta e indenização por eventual excesso no exercício do direito à liberdade de expressão, nos termos do artigo 5º, V, da Constituição Federal.

Nesse sentido, inclusive, Carlos Affonso Pereira de Souza adequadamente esclarece que "Seja quais forem os desafios, ter a liberdade de expressão como um dos vetores de interpretação e aplicação dessa e das demais leis e regulamentos sobre Internet no país é um passo na direção certa. É um movimento no sentido de consolidar o Brasil como líder  na  regulação  da  rede  pautada  por  direitos  humanos  e  em  direção  oposta  das tentações que a mesma rede oferece para que a expressão seja cerceada" .

No mais, em que pese o entendimento contrário, pertinente anotar que a orientação disposta no Marco Civil não desfavorece o consumidor, mas o protege de eventual atitude arbitrária a ser realizada pelo provedor. 

A  propósito,  não    dúvidas  de  que  a  lei  12.965  de  2014  também  privilegia  os interesses  consumeristas,  que  o  diploma  não  é  incompatível  aos  direitos  prestigiados  pelo Código de Defesa do Consumidor, uma vez que o próprio artigo 2º, inciso V, dispõe que "A disciplina  do  uso  da  internet  no  Brasil  tem  como  fundamento  o  respeito  à  liberdade  de expressão, bem como: a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor".

Vale   dizer,  é  plenamente   possível   compatibilizar   a  aplicação   dos   dispositivos supracitados, na medida em que o sistema jurídico deve ser interpretado como um sistema, para que uma norma possa complementar a outra e não suplantá-la.

De toda forma, diante de um tema tão complexo, com diversas posições relevantes e antagônicas, espera-se que o Supremo Tribunal Federal leve em consideração a real dimensão do impacto social que a futura decisão pode causar, com reflexo em temas essenciais ao Estado Democrático de Direito, como o pluralismo e a possibilidade de livre manifestação, intrínsecos à dignidade da pessoa humana.

Guilherme Lobato de Oliveira Lima

VIP Guilherme Lobato de Oliveira Lima

Advogado. Possui graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduado em Processo Civil pela Fundação Getulio Vargas. Tem experiência em contencioso cível estratégico.

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