Orientações da CVM sobre tokens de recebíveis e de renda fixa considerados valores mobiliários
Ofício Circular 04/23/CVM/SSE detalha requisitos para a classificação de determinados tokens usados em operações de securitização como valores mobiliários e aponta modo para a sua distribuição pública via plataformas de crowdfunding.
quinta-feira, 27 de abril de 2023
Atualizado às 09:00
Frente aos avanços da criptoeconomia e seus reflexos no mercado de capitais, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem direcionado os participantes desse mercado a respeito de temas que afetam o setor com o objetivo de trazer maior segurança jurídica para o seu desenvolvimento.
Nesse contexto, e de forma complementar ao Parecer de Orientação CVM 40, publicado no final de 2022, ganha destaque o recém-publicado Ofício Circular 04/23/CVM/SSE, de 4 de abril de 2023, preparado pela Superintendência de Supervisão de Securitização - SSE, área técnica dedicada a investimentos estruturados e que envolvem inovação. O Ofício Circular traz orientações do regulador sobre a possível caracterização dos "tokens de recebíveis" ou "tokens de renda fixa" (em conjunto, "TR") como valores mobiliários, além de apontar a possibilidade da oferta pública desses títulos sob o regime regulatório simplificado previsto na Resolução CVM nº 88/2022 (regulamentação de crowdfunding).
Como ponto central, a SSE entende que, em regra, há operação de securitização, e diante de sua oferta pública, equiparação aos Certificados de Recebíveis ou outros valores mobiliários de securitização, com base nos artigos 18, parágrafo único, e 19 da lei 14.430/22 (Marco Legal da Securitização), diante de TR com as seguintes características:
- TR ofertado publicamente por meio de "exchanges", "tokenizadoras" ou outros meios;
- TR confere remuneração fixa, variável ou mista ao investidor;
- TR pode ser representativos, vinculados ou lastreados em direitos creditórios ou títulos de dívida;
- os pagamentos de juros e amortização do TR ao investidor decorrem do fluxo de caixa de um ou mais direitos creditórios ou títulos de dívida;
- os direitos creditórios ou títulos de dívida representados pelos TR são cedidos ou emitidos em favor dos investidores finais ou de terceiros que fazem a "custódia" do lastro em nome dos investidores; e
- a remuneração é definida por terceiro que pode ser o emissor do TR, o cedente, o estruturador ou qualquer agente envolvido na operação.
Em complemento, a posição da área técnica da CVM é no sentido de que mesmo que o token não seja equiparado diretamente ao Certificado de Recebível ou outro título de securitização, nos termos da lei 14.430/22, o TR pode ser classificado como valor mobiliário, como resultado de sua caracterização como contrato de investimentos coletivo ofertado publicamente, de acordo com o inciso IX do art. 2º da Lei do Mercado de Capitais, o que deve ser aferido mediante a aplicação de teste similar ao Howey Test norte-americano.
Nesse contexto, devem ser levadas em consideração para fins de classificação ao se analisar um caso critérios como investimento econômico, formalização caráter coletivo do investimento, expectativa de benefício econômico por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, que devem ser resultado do esforço do empreendedor ou de terceiros, e não de fatores externos, esforço de empreendedor ou de terceiros, oferta pública. A SSE aponta que todos os requisitos costumam ser evidentes, com exceção do "esforço de empreendedor ou de terceiros".
Em relação a tal requisito menos evidente, a SSE interpreta que o "esforço de terceiro" estaria presente na hipótese em que as atividades de seleção, análise de risco, precificação, aquisição, manutenção, custódia ou gestão, inclusive em atividades de atividades de cobrança ou de repasse dos fluxos de caixa ordinários, relacionadas ao direito creditório que embasa a emissão do TR, sejam desempenhadas, em conjunto ou isoladamente, por terceiros que não o próprio investidor. Isso se justifica no entender da autarquia, pois, a decisão de investimento tomada pelo investidor estaria pautada em grande medida pela confiança no esforço e na capacidade técnica dos terceiros envolvidos na estrutura para o desempenho de tais atividades. Adicionalmente, quando há coobrigação do cedente ou de terceiros para adimplemento do TR, o requisito de "esforço de terceiro" também estaria presente, uma vez que tal esforço econômico mostra-se relevante para a expectativa de benefício econômico dos investidores.
Diante de operações no mercado nas quais ocorre a oferta de aquisição de fração ideal dos direitos creditórios, ou títulos de dívida, mediante cessão civil do direito creditório em benefício de cada investidor, a área técnica da CVM enfatiza a importância de não se atentar apenas para a estrutura escolhida para a formalização do título distribuído na linha de tentar descaracterizar a operação de securitização ou afastar a presença de "esforço de terceiro", mas sim verificar se o TR pode ser classificado, independentemente da estrutura adotada, como valor mobiliário. A SSE aponta que isso ocorrerá nos termos da lei 14.430/22 sempre que houver equiparação de fato à essência econômica da securitização ou nos termos da lei 6.385/76 sempre que houver um contrato de investimento coletivo ofertado publicamente que gere direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advenham do esforço do empreendedor ou de terceiros.
A classificação do TR como valor mobiliário atrai a competência regulatória da CVM sobre o token e os prestadores de serviço envolvidos na sua estruturação, distribuição e negociação no mercado secundário.
Conforme Parecer de Orientação CVM 40, a distribuição pública de criptoativos considerados valores mobiliários no mercado de capitais está sujeita a registro prévio na CVM, conforme dispõe o art. 19 da Lei do Mercado de Capitais, conforme competência delegada à autarquia pelos arts. 8º, inciso I, e 19, parágrafo 5º, da referida lei.
No âmbito infralegal, as emissões e ofertas para distribuição pública de valores mobiliários são atualmente disciplinadas pela Resolução CVM 160/22, que introduziu, no início de 2023, um novo arcabouço regulatório para as ofertas públicas de valores mobiliários, substituindo as Resoluções 400/03 e 476/09. Além disso, sendo comum a oferta pública de criptoativos por meio da internet e sem restrição geográfica, devem ser observados os parâmetros do Parecer de Orientação CVM 32 e do Parecer de Orientação CVM 33, ambos de 2005 e aplicáveis a ofertas públicas de valores mobiliários emitidos no exterior para público-alvo residente, domiciliado ou constituído no Brasil.
Reconhecendo os desafios operacionais para o registro da oferta de TR e a necessária compatibilidade da sua tecnologia com a infraestrutura do mercado de capitais, a SSE ressaltou que as ofertas públicas de distribuição de TR de até R$15 milhões podem ser compatibilizadas com a regulação dos Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários de securitização, prevista na lei 14.430/22, bem como com a regulamentação de crowdfunding, prevista na Resolução CVM 88/22.
Sendo assim, até esse volume, os títulos de securitização emitidos por Companhias Securitizadoras de capital fechado, sem registro na CVM, podem ser "tokenizados". No caso, deve ser observado que o conteúdo mínimo do termo de securitização ou instrumento de emissão seja registrado na rede DLT com identificação de cada token. Em seguida, os TR poderão ser ofertados publicamente por meio de plataformas de crowdfunding, nos termos da Resolução CVM 88/22, usufruindo, dessa forma, de um regime regulatório de ofertas públicas simplificado quando comparado àquele previsto na Resolução CVM 160/22.
Nesse sentido, a área técnica da CVM trouxe importantes orientações para viabilizar que tal estrutura atenda os limites de receita bruta anual do emissor, aplicável à sociedade empresária de pequeno porte, conforme estabelecidos no art. 2º, inciso VII e parágrafo 2º, da Resolução CVM 88/22. No caso da securitização de tokens, tal limite pode ter como base o patrimônio separado, constituído por meio da instituição do regime fiduciário sobre o TR, e não necessariamente a companhia securitizadora emissora do título de securitização. No entanto, essa orientação não se aplica às emissões concentradas em apenas um devedor, ou de devedores que sejam partes relacionadas entre si, diante das quais o conceito de receita bruta anual deve ser aplicado a esse devedor ou suas partes relacionadas. Destaca-se ainda que o conceito se estende ao devedor do título que serve de lastro.
Segundo a regulamentação de crowdfunding, alguns requisitos básicos para oferta pública de TR sob esse regime regulatório devem ser observados:
- Limite por emissor: O emissor - e, por extensão interpretativa, o patrimônio separado ou o devedor e suas partes relacionados - não poderá extrapolar a receita bruta anual de R$40 milhões ou de R$80 milhões, considerando o grupo econômico do patrimônio separado ou devedor e suas partes relacionadas, sendo a oferta do título objeto de patrimônio separado limitada a R$15 milhões anuais;
- Escrituração: A securitizadora está obrigada a contratar escriturador nas seguintes hipóteses:
- caso, no momento da contratação da plataforma de crowdfunding que fará a distribuição da oferta pública, a securitizadora já tenha realizado, em outra plataforma, uma ou mais ofertas públicas de valores mobiliários fungíveis com aquele objeto da oferta, nele conversíveis ou que se convertam na mesma espécie de valor mobiliário;
- caso a plataforma contratada para distribuir a oferta pública não ofereça os serviços de controle de titularidade e de participação societária, nos termos do artigo 13 da Resolução CVM 88/22.
A SSE elucidou que o registro em rede DLT não equivale ao controle de titularidade previsto no art. 12 e o token não substitui o valor mobiliário em sua representação cartular ou escritural, tampouco atua como certificado do mesmo.
Não obstante, para os casos em que a Resolução 88/22 admite controle de titularidade de valor mobiliário ou de participação societária pela própria plataforma de crowdfunding, a plataforma contratada para prestar esse serviço poderá se valer dos registros na rede DLT, desde que seja possível controlar e comprovar a titularidade e a existência de transações.
- Depósito: Fica dispensada a necessidade de depósito de títulos de securitização "tokenizados" emitidos por companhias securitizadoras que sejam ofertados publicamente por meio de plataforma de crowdfunding.
- Divulgação de informações: Além dos requisitos da Resolução CVM 88/22, o site e os materiais publicitários utilizados nos esforços de venda da oferta de TR devem conter as informações específicas sobre os tokens de acordo com as orientações do Parecer de Orientação CVM nº 40, em especial "5.1. Informações sobre os Direitos dos Titulares dos Tokens" e "5.2. Informações sobre Negociação, Infraestrutura e Propriedade dos Tokens". Deve ser empregada linguagem adequada à compreensão pelo público em geral.
Essas orientações da SSE, na condição de área técnica especializada em securitização e investimentos inovadores, complementam os entendimentos anteriores divulgados pela CVM. Nelas se detalha a expectativa do regulador a respeito da forma de cumprimento da regulamentação aplicável e se aponta como alternativa a utilização de um regime regulatório simplificado, com o objetivo de viabilizar de forma mais eficiente o surgimento de novas estruturas inovadoras de tokens de recebíveis e tokens de renda fixa no mercado (não obstante a sua efetiva adequação ao mercado ainda precise ser testada). A divulgação do entendimento do regulador mostra-se importante para os participantes do mercado construírem estruturas robustas que ofereçam a segurança jurídica necessária para os investidores, mitigando, assim, os eventuais riscos regulatórios envolvidos nas operações e possibilitando a ampliação do leque de investimentos disponíveis no mercado.
Alessandra Carolina Rossi Martins
Advogada associada do escritório Machado Meyer Advogados.
Jéssica de Alencar Araripe
Advogada. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Fundos de Investimento, Mercado de Capitais, Banking & Finance, Fusões e Aquisições (M&A) e Direito Societário. Tem mais de 10 anos de experiência profissional na área jurídico empresarial, integrando renomados escritórios de advocacia. Atualmente advoga no Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Também possui ampla experiência internacional, tendo empreendido intercâmbios culturais na Inglaterra, Canadá, Austrália, Chile e Argentina. Fluente em inglês e espanhol.
Eduardo Avila de Castro
Sócio das áreas de Bancário e Seguros do Machado Meyer Advogados.
Marcelo de Castro Cunha Filho
Advogado associado do escritório Machado Meyer Advogados.
Letícia Totti Quideroli
Colaboradora da área de bancário do Machado Meyer Advogados.