A dicotomia entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual do médico
A responsabilidade contratual tem como base a obrigação de resultado, o que gera a presunção da culpa em razão da inexecução previsível que seria evitada da obrigação.
terça-feira, 25 de abril de 2023
Atualizado às 14:07
A responsabilidade dos profissionais que exercem a medicina será sempre de natureza contratual, versada em obrigações de meios que é o princípio basilar da responsabilidade médica. Daí a conclusão que, a natureza médica é, em regra, uma obrigação de meios e não obrigação de resultados.
A responsabilidade contratual tem como base a obrigação de resultado, o que gera a presunção da culpa em razão da inexecução previsível que seria evitada da obrigação.
No entanto, é preciso que a culpa do agente seja provocada para que exista a responsabilização e, consequentemente, a indenização, uma vez que se trata de um dos requisitos para configuração da responsabilidade civil subjetiva- regra do direito brasileiro.
Outrossim, a responsabilidade civil contratual, como o próprio nome indica, acontece porque há um contrato entre as partes envolvidas, ou seja, vitima e agente. Nesse caso, sempre que houver reunião dos fatores culpa ou dolo, ação ou omissão e nexo e o consequente dano, em razão do vínculo jurídico, há a incidência da responsabilidade civil contratual. Já na responsabilidade civil extracontratual, também chamada de aquiliana, a vitima e o agente não contam com qualquer vínculo contratual. Entretanto, o que existe é um vínculo legal que se baseia em obrigações derivadas da lei ou do ordenamento jurídico. Em caso de descumprimento de um dever legal, gera-se um dano à vítima.
A responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, se resulta do inadimplemento normativo, ou seja, da prática de um ato ilícito por pessoa capaz ou incapaz (art. 156, Código Civil Brasileiro), da violação de um dever fundado em algum princípio geral de direito (art. 159, Código Civil Brasileiro), visto que não há vínculo anterior entre as partes, por não estarem ligados por uma relação obrigacional.
Pode-se dizer que, a princípio a responsabilidade extracontratual baseia-se pelo menos na culpa, o lesado deverá provar para obter reparação que o agente agiu com imprudência, imperícia ou negligência.
Em suma, podemos dizer que a responsabilidade civil é dividida entre contratual ou extracontratual, conforme a natureza do dever jurídico violado. Contudo, ambas apresentam a mesma consequência, ou seja, a obrigação de reparar o dano. Dessa maneira, a única diferença que há entre as figuras de responsabilidade civil contratual e extracontratual, é o fato de que a contratual existe por causa de um contrato que vincula as partes, enquanto a extracontratual surge a partir do descumprimento de um dever legal.
Em relação ao direito comparado o Direito Civil Português, há semelhanças com o Direito Civil Brasileiro, no que tange as responsabilidades civil contratual e extracontratual. Assim, no direito civil português a responsabilidade civil contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico. Enquanto a responsabilidade civil extracontratual ou extra obrigacional, deriva da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos atos que, embora lícitos, produzem dano a outrem.
No direito português, a relação do médico-paciente configura um contrato consensual (art. 219.0 do Código Civil), marcadamente pessoal, de execução continuada, em regra sinalagmático e oneroso. A declaração de proposta resulta de o médico manter o seu consultório aberto e o doente ao entabular um contato está a manifestar a sua aceitação.
Todavia, o paciente, que foi lesado por uma intervenção médica, pode recorrer aos instrumentos jurídicos da responsabilidade contratual (contrato de prestação de serviços) ou extracontratual contra o médico ou contra o hospital ou clínica . Para tanto, o paciente tem o ônus da prova dos danos, da causalidade e da ilicitude, ou incumprimento (em regra na forma de cumprimento defeituoso) por parte dos profissionais de saúde. A prova de todos estes elementos a cargo de um leigo, como o paciente, sem conhecimentos técnico-científicos, carece quase sempre do complemento de peritos médicos.
No tocante ao tema e o seu inadimplemento as decisões dos nossos tribunais, trouxe para melhor elucidar a prática jurídica tanto no Brasil como em Portugal, vejamos:
PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PRESTAÇÃO JURISDICIONAL COMPLETA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. CIRURGIA. QUEIMADURAS. DEFEITO NO EQUIPAMENTO E IMPERÍCIA DO PROFISSIONAL. SOLIDARIEDADE ENTRE O HOSPITAL E O MÉDICO TERCEIRIZADO. CULPA VERIFICADA. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. CORREÇÃO MONETÁRIA. VALOR DA INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. SÚMULA 362/STJ. OBSERVÂNCIA.
1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas, pelo Tribunal de origem, de forma suficientemente ampla, fundamentada e sem omissões, deve ser afastada a alegada violação ao art. 535 do Código de Processo Civil de 1973.
2. Não cabe, em recurso especial, reexaminar matéria fático-probatória (Súmula 7/STJ).
3. Nos termos do enunciado da Súmula 362/STJ, a correção monetária do valor da indenização por dano moral incide desde a data do arbitramento definitivo, não importando a natureza da responsabilidade civil, se contratual ou extracontratual.
4. Agravo interno parcialmente provido.
(AgInt no AREsp n. 797.644/ES, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 23/8/2021, DJe de 25/8/2021.)
O descumprimento desses deveres poderá configurar inadimplemento contratual ou adimplemento imperfeito, resultando na responsabilidade contratual. É o caso do julgado do Colendo Superior de Justiça3, que a ação foi julgada procedente, confirmada a decisão em sede de Recurso Especial pela aplicação da teoria da perda de uma chance, in verbis:
DIREITO CIVIL. CÃNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PRPROCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1.O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frusta à vitima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à perspectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes.
2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento.
3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerada um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil, sustentação da teoria da causalidade proporcional.
4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional.
5. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada. (Recurso Especial nº 1.254.141-PR, Relatora Ministra Nancy Andrighi).
Chama atenção que neste caso, poder-se-ia justificar o dever de indenizar no inadimplemento contratual culposo por infringência a um padrão de conduta esperada de um médico especialista em oncologia: o de informar, esclarecer e advertir/recomendar todas as hipóteses de tratamento possíveis ao caso, de modo que a paciente pudesse optar (por meio do chamado Termo de Consentimento Informado- TCI).
Contudo, no caso em espeque, segundo consta no julgado do STJ, o médico teria cometido alguns erros, dentre eles: não haver recomendado a mastectomia radical, mas apenas a mastectomia parcial (quadrantectomia) e também não haver recomendado quimioterapia, de modo que o câncer de mama reapareceu e levou a paciente a óbito. O médico não foi responsabilizado pelo óbito em si, mas, corretamente, pela perda de uma chance de cura. Essa perda de uma chance decorreu de culpa contratual, por infringência a um dever imposto na relação contratual, o dever de informação, aviso, esclarecimento e advertência.
A jurisprudência portuguesa a esse respeito manteve a sentença de improcedência no sentido que "houve prescrição do direito de indenização da Autora, e absolveu os réus (médico e seguro saúde), por entender que a situação dos autos se enquadra no domínio de responsabilidade civil extracontratual , à qual é aplicável o prazo de 5 anos de prescrição, previsto no art. 498º do Código Civil conjugado com os arts. 118º, nº 1, al. c), e 143º ambos do Código Penal, por estar em causa, em abstracto, um fato ilícito imputável a 1ª Ré (clinica) que constituiria um crime de ofensa è integridade física simples); em que a autora pedia indenização não inferior a £51.000,00 mil euros, a título de indenização por danos não patrimoniais (pelas dores que ficou a padecer no membro inferior, por claudicar ao andar e pelo dano estético), in verbis:
Acordão TRG- Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães. Processo 304/17.3T8BRG.G2, Relator: CRISTINA CERDEIRA, Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. RESPOSNABILIDADE EXTRACONTRATUAL. ESPECÍFICOS DEVERES DE DILIGÊNCIA E CUIDADO. LEGIS ARTIS.ÓNUS DA PROVA.PRESUNÇÃO DE CULPA. ILISÃO DA PRESEUNÇÃO. Data do Acordão: 14/01/2021. Meio Processual: Apelação. Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE. 2ª Secção Civil.
Assim, no seu sumário o Tribunal fundamentou da seguinte forma: "A responsabilidade civil médica pode ter, simultaneamente, natureza extracontratual e contratual, pois o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física.
Em regra, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado (dada a presunção de culpa que onera o devedor - cf. art. 799º, nº1 do C. Civil), e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada. Tendo-se a Autora. apresentado à 2ª Ré Clínica e 3º Réu médico a coberto de um contrato de seguro celebrado pela sua entidade patronal e tendo eles actuado no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos - previsto no art. 1154º do Código Civil, que o define como «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição» - que mantinham com a seguradora 1ª Ré, o conteúdo da relação estabelecida entre o A. e aquele médico e Clínica está indubitavelmente contratualizado, isto é, estamos no domínio da responsabilidade civil contratual.
Sem embargo, o resultado a que alude o dito art. 1154º do Código Civil não é a cura em si, mas os cuidados de saúde, isto é, no âmbito de tal contrato, não recai sobre o médico o dever de promover a cura do doente com quem contrata ou a obrigação de lhe restituir a saúde, mas somente a obrigação de empreender todos os meios adequados à obtenção de tal resultado.
Considerando-se que a obrigação do médico é uma obrigação de meios, sobre este recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, se se quiser eximir à sua responsabilidade, nos termos do art. 799º, nº1 do C. Civil, que consagra uma presunção de culpa do devedor.
Mas esta presunção refere-se, tão só, à culpa, pois que a prova da existência do vínculo contratual e da verificação dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico competiria sempre ao doente (o aqui A./recorrente). No caso, de prestação de serviços médicos, a responsabilidade médica, por negligência, por violação das leges artis, tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir: a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção.
In casu, porque face à contraprova feita por esses RR., não se evidencia a prática de algum erro no que respeita aos meios e técnicas de tratamento adotados de harmonia com as leges artis, impõe-se concluir no sentido de que estes RR. lograram ilidir a presunção de culpa que sobre eles incidia.
Já a obrigação da 4ª Ré Clínica não era quanto ao particular em causa - de correta esterilização de instrumentos e higienização - uma obrigação de resultado, antes a de utilizar os meios necessários e adequados à prevenção e combate de infecções nas suas instalações, impondo-se a conclusão de ter ela feito a contraprova de que a pretendida "não infecção-resultado" (ou melhor, os danos) não decorre de ilícito seu culposo - por ter atuado com o grau de diligência exigível segundo os adequados padrões impostos pelas leges artis."
Tal como em Portugal, no Brasil uma vez estabelecida uma relação contratual, há certa facilidade na responsabilização por um dano em razão do descumprimento de uma obrigação contratual, por isso é importante identificar quais são as obrigações contratuais a que estão sujeitas as partes.
Conclusão:
O ponto central da responsabilidade civil está situado no nexo de causalidade. Não interessa se a responsabilidade civil é de natureza contratual ou extracontratual, de ordem objetiva ou subjetiva, sendo neste último caso despicienda a aferição de culpa do agente se antes não for encontrado o nexo causal entre o dano e a conduta do agente. Com efeito, para a caracterização da responsabilidade civil, antes de tudo, há de existir e estar comprovado o nexo de causalidade entre o evento danoso e a conduta comissiva ou omissiva do agente e afastada qualquer das causas excludentes do nexo causal, tais como a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, o caso fortuito ou a força maior, por exemplo" (REsp 1615971/DF, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, terceira turma, julgado em 27/09/2016, DJe 07/10/2016).
Desta forma, como se trata de obrigação de meio, o resultado final insatisfatório alcançado não configura, por si só, o inadimplemento contratual, pois a finalidade do contrato é a atividade profissional médica, prestada com prudência, técnica e diligência necessárias, devendo, para que exsurja obrigação de indenizar, ser demonstrada a ocorrência de ato, comissivo ou omissivo, caracterizado por erro culpável do médico, assim como do nexo de causalidade entre o dano experimentado pelo paciente e o ato tido por causador do dano.
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