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A dispensabilidade do ato de ofício no crime de corrupção passiva: Breves críticas à jurisprudência reinante

Este artigo tem como escopo realizar uma análise acerca da mudança do entendimento jurisprudencial sobre o ato de ofício no crime de corrupção passiva, bem como tecer breves críticas ao posicionamento atual.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Atualizado às 14:01

O delito de corrupção passiva, previsto no art. 317 do Código Penal, é crime próprio de funcionário público e se consuma com a solicitação ou recebimento de vantagem indevida em razão da sua função pública, além da aceitação de promessa de tal vantagem. A pena do delito é aumentada caso o funcionário público pratique ou retarde ato de ofício, bem como o exerça em infringência a dever funcional1.

Ocorre que, diferentemente do crime de corrupção ativa, o legislador não trouxe a locução "ato de ofício" para o tipo objetivo do caput, cedendo espaço para a seguinte discussão: o delito de corrupção passiva exige demonstração de nexo causal entre a prática - ou promessa - de ato de ofício e o recebimento ou solicitação de vantagem indevida? Em outras palavras, discute-se a necessidade de demonstração de mercancia da atividade funcional do agente público.

Há bastante tempo a jurisprudência pátria debate (e oscila) acerca da temática. Inicialmente, exigia-se a demonstração do liame entre a vantagem indevida e o ato de ofício praticado pelo funcionário público, mas, gradativamente, passou-se a flexibilizar o requisito e dispensar o nexo causal entre o ato funcional e a vantagem indevida percebida ou solicitada pelo agente.

Em 1994, na Ação Penal 307-3/DF - conhecido como "Caso Collor" -, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela imprescindibilidade de demonstração de nexo causal entre eventual prática de ato de ofício e percepção de vantagem indevida pelo agente público.

Na oportunidade, imputava-se, em desfavor do ex-presidente, a prática do delito de corrupção passiva, em razão de suposta solicitação de capital a uma empresa para o financiamento da sua campanha eleitoral. No entanto, a acusação foi julgada improcedente, especialmente porque não foi "apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio com o cargo por ele exercido"2.

Destarte, vale destacar importante parecer juntado aos autos da referida Ação Penal, subscrita pelo doutrinador Eugênio Zaffaroni, no qual afirmou que o bem jurídico tutelado no art. 317 do Código Penal apenas é lesado quando a vantagem indevida guardar nexo causal com um ato de ofício praticado ou prometido pelo agente público.

Em 2012, no julgamento da Ação Penal 470/MG - emblemático caso do "Mensalão" -, o entendimento supramencionado fora mantido, mas com certa flexibilização. Nesse caso, discutiu-se a necessidade de individualizar o ato de ofício3.

O caso do mensalão levou ao plenário da Corte Constitucional brasileira o debate acerca da "compra" de influência do voto do parlamentar, isto é, o "apoio parlamentar". Inobstante a certeza de que o voto parlamentar nada mais é do que a expressão do exercício funcional, de maneira a caracterizar um ato de ofício, não foi possível definir de quais votações, especificamente, os parlamentares deveriam participar.

Em consequência, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, para a caracterização do crime de corrupção, é suficiente a identificação de um ato de ofício em potencial, ainda que incerto e indeterminado. Apesar da flexibilização, a caracterização do tipo penal seguiu se esbarrando em importante requisito: a indicação de ato de ofício.

Sucede que, todavia, mais recentemente, em mudança significativa de entendimento, os tribunais superiores passaram a dispensar a identificação do ato de ofício para a caracterização do crime de corrupção. Nessa linha, em 2018, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o delito de corrupção passiva é consumado ainda que o ato seja estranho às atribuições do servidor4.

Segundo a Corte, a expressão "em razão dela", contida na Lei Penal, não pode ser equiparada à expressão "ato de ofício", razão pela qual prevaleceu o entendimento de que é possível a condenação pelo delito de corrupção, ainda que as ações ou omissões indevidas não estejam abarcadas nas atribuições do funcionário público. No entanto, o novo precedente deve trazer impactos significativos na prática forense.

O primeiro risco a ser apontado é o perigo de que um simples presente recebido, sob uma inadequada interpretação, seja encarado como um delito de corrupção passiva. Nesse sentido, adverte Arnaldo Malheiros Filho5:

(...) se todo e qualquer recebimento de vantagem (...) por agente público é crime, todos os ministros (...) deveriam estar, portanto, condenados e presos por delito de corrupção passiva, porque rotineiramente recebem em seus gabinetes presentes, brindes, de editoras jurídicas, justamente porque são ministros da corte; ou seja, em razão do cargo que ocupam.

Além disso, conforme já apontou o professor Rogério Sanches, a dispensa do ato de ofício torna severamente árdua a tarefa de diferenciação entre o crime de corrupção passiva e outros ilícitos previstos no ordenamento jurídico.

Exemplo disso, primeira e especialmente, observa-se no que toca ao crime de tráfico de influência, previsto no art. 332 do Código Penal. Isso porque, basta perceber que, não sendo o agente público competente para a execução do ato comercializado, a sua única opção é influenciar a prática do ato por outro servidor público6.Ocorre que, todavia, essa é a exata descrição do delito de tráfico de influência. Por derradeiro, "se o primeiro crime pode ser cometido inclusive por quem tem apenas a capacidade de influir de alguma forma na prática do ato comercializado, o segundo passa a ter sentido prático reduzidíssimo"7.

Mas a confusão entre os tipos penais não pararia por aí.

A mesma observação pode ser feita com relação ao tipo penal de estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal, exploração de prestígio (art. 357 do Código Penal), ou, até mesmo não teria claras distinções com o mero enriquecimento ilícito, previsto no art. 884, do Código Civil. Em suma, a decisão do Tribunal da Cidadania torna a diferenciação entre o delito de corrupção passiva e outros ilícitos - cíveis e penais - demasiadamente tênues.

De mais a mais, embaraços processuais também devem ser enfrentados a partir deste entendimento, a iniciar pelo critério de fixação de competência. A prerrogativa de função de Deputados Federais e Senadores somente é aplicada aos crimes praticados durante o exercício do cargo, bem como que tais delitos possuam relação com a sua função.

Logo, para a definição de competência de um crime cometido por parlamentar, é necessário verificar a existência de um ato próprio do ofício. Dito isso, como se procederia à fixação de competência no caso de um crime de corrupção passiva, cometido por um parlamentar? Sem dúvidas, seria um terreno fértil para o decisionismo.

Por último, é preciso apontar que a Lei de Improbidade Administrativa, ao tratar do enriquecimento ilícito do servidor público, exige a demonstração do ato de ofício. Isso é, o Direito Administrativo, ao lidar com atos semelhantes ao crime de corrupção passiva, previsto no Código Penal, exige a demonstração do liame existente entre a vantagem indevida e o dever de ofício do servidor público.

Não é razoável que - dado o caráter de utima ratio do Direito Penal -, adote-se, em matéria criminal, critérios mais gravosos e abrangentes do que o Direito Administrativo. Em verdade, o atual entendimento dos tribunais superiores acaba por desprestigiar o princípio da intervenção mínima, base norteadora do Direito Penal. 

Conclui-se, portanto, que a mudança jurisprudencial acerca do delito de corrupção passiva representa verdadeiro retrocesso. Deveras, para a caracterização do delito de corrupção passiva, não deve bastar que o agente apenas apure lucros desleais. É imprescindível que o servidor público negocie suas obrigações funcionais, através da solicitação ou recebimento de vantagem indevida, ou até o aceite de promessas de vantagens indevidas, para que, só então, haja a efetiva configuração do tipo penal em questão.

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1 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.

2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Penal 307. Relator (a): ILMAR GALVÃO. Segunda Turma, julgado em 13/12/1994, DJ 13-10-1995 PP-34247 EMENT VOL-01804-11 PP-02104 RTJ VOL-00162-01 PP-00003. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22AP%20307%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em 26 de março de 2023.

3 HADAIR, Rodrigo. Íntegra do acórdão do mensalão tem 8.405 páginas. Consultor Jurídico, 22 de abril de 2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-abr-22/supremo-publica-integra-acordao-mensalao-8405-paginas. Acesso em: 10 de março de 2023.

4 NOTÍCIAS. STJ. Corrupção passiva é consumada mesmo que o ato seja estranho às atribuições do servidor. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-10-04_08-01_Corrupcao-passiva-e-consumada-mesmo-que-o-ato-seja-estranho-as-atribuicoes-do-servidor.aspx#:~:text=2019%2006%3A47,Corrup%C3%A7%C3%A3o%20passiva%20%C3%A9%20consumada%20mesmo%20que%20o,estranho%20%C3%A0s%20atribui%C3%A7%C3%B5es%20do%20servidor&text=%E2%80%9CO%20crime%20de%20corrup%C3%A7%C3%A3o%20passiva,of%C3%ADcio%20pratic%C3%A1vel%20pelo%20funcion%C3%A1rio%20p%C3%BAblico. Acesso em 09 de mar. 2020. Acesso em 10 de março de 2023.

5 FILHO, Arnaldo Malheiros, apud, RODRIGUES, Breno Mendes; Carlos Humberto Fazue Filho. Ato de ofício: necessidade de comprovação no crime de corrupção passiva. Anais do 20º Simpósio do TCC do Centro Universitário ICESP. 20202; 585-602.

6 SANCHES, Rogério. STJ: A corrupção passiva se caracteriza ainda que o ato não se insira nas atribuições do agente público. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2018/10/04/stj-corrupcao-passiva-se-caracteriza-ainda-que-o-ato-nao-se-insira-nas-atribuicoes-agente-publico/. Acesso em 10 de março de 2023.

Ibidem.

Gabriela Borges

Gabriela Borges

Advogada Criminalista. Graduada em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão e pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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