Normas internacionais e segurança jurídica
Um dos maiores legados do direito internacional no século XX foi o desenvolvimento das organizações internacionais. Criadas para os mais distintos fins, essas organizações institucionalizam as negociações entre os países e representam um espaço no qual os países podem dialogar, circular idéias e persuadir uns aos outros quanto a temas que exigem tratamento internacional e quanto aos métodos de cooperação que entendem necessários para abordar determinada questão.
quarta-feira, 2 de maio de 2007
Atualizado em 27 de abril de 2007 08:30
Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade*
Um dos maiores legados do direito internacional no século XX foi o desenvolvimento das organizações internacionais. Criadas para os mais distintos fins, essas organizações institucionalizam as negociações entre os países e representam um espaço no qual os países podem dialogar, circular idéias e persuadir uns aos outros quanto a temas que exigem tratamento internacional e quanto aos métodos de cooperação que entendem necessários para abordar determinada questão.
Freqüentemente, são empregados métodos para enfrentar desafios comuns a vários países. Entre eles está a adoção de normas internacionais. Na área ambiental, por exemplo, há variada gama de convenções que estabelecem metas de redução de poluição, restringem o comércio de substâncias perigosas e fomentam a disseminação de tecnologias limpas. Na área de direitos humanos, as convenções deram origem a estruturas regionais e globais capazes de julgar países signatários que violam direitos fundamentais e indivíduos que praticam crimes tipificados em instrumentos internacionais. Na área comercial, há detalhada regulamentação sobre condições que os países devem cumprir para que o comércio global seja livre e justo. Na área da integração, os países têm se valido cada vez mais de normas para regular a atividade econômica de modo uniforme no bloco regional. As organizações internacionais, portanto, favorecem a elaboração de normas e estabelecem mecanismos de monitoramento sobre a aplicação dessas normas.
As organizações internacionais criadas para promover e gerenciar a integração econômica entre os países - como a União Européia e o Mercosul - são exemplo emblemático do vertiginoso aumento de normas internacionais. Ao terem a atividade econômica regulada de modo uniforme no bloco regional, indivíduos e empresas podem circular livremente bens e serviços produzidos sob as mesmas regras em qualquer país que faça parte do bloco. O sucesso da integração depende, pois, da vigência e aplicação dessas normas comuns a cada país. Caso contrário, barreiras técnicas impedirão a livre circulação de produtos e a falta de regras simplesmente impossibilitará a livre prestação de serviços (a falta de definição de freqüências para serviço móvel celular, por exemplo, impede a prestação desse serviço).
Essa realidade, contudo, tem apresentado enormes desafios aos países. Apesar de a celebração de tratados não ser algo novo - na verdade, é algo que ocorre desde tempos imemoriais entre os mais variados povos - é o conteúdo dos tratados que tem sofrido grande mudança. Se em tempos passados os tratados mais se assemelhavam a contratos (de compra e venda de produtos, de delimitação de territórios), atualmente eles têm conteúdo de lei. Assuntos antes pertencentes, de modo indiscutível, ao direito interno dos Estados, estão passando à regulamentação internacional. Os países se vêem, pois, diante da necessidade de incorporar ao seu direito as normas internacionais a que se comprometeram e fazer com que essas normas não percam vigência e sejam aplicadas internamente. Não é tarefa fácil.
A constituição é a norma que disciplina a relação entre o interno e o internacional. Os sistemas constitucionais, delineados num tempo em que não havia regras internacionais tão técnicas e detalhadas como hoje, não previram mecanismos ágeis de incorporação de regras internacionais. As premissas que deram origem à atual relação entre direito internacional e direito interno não levaram em conta processos de integração. Por essa razão, resta, na maioria das vezes, ao intérprete da lei explorar as possibilidades e limites do sistema constitucional dos países para atender às exigências atuais.
No Mercosul, o Brasil vê, cada vez mais, assuntos antes sujeitos exclusivamente à lei interna sendo regulamentados por normas do bloco. Alguns exemplos dessas normas são: padrões microbiológicos para alimentos, regulamento para o registro de medicamentos, regras sobre a responsabilidade civil para o seguro de cargas transportadas, ajustes de nomenclaturas, regras para o serviço de radiodifusão. Essas normas devem ser incorporadas por cada um dos membros do Mercosul para que possam valer em todo o bloco. Assim, haverá previsibilidade para que os agentes econômicos tomem as suas decisões. Além disso, aos países cabe assegurar que essas normas não percam vigência no direito interno. Devem, portanto, estar atentos à estabilidade das normas. Previsibilidade e estabilidade de normas são os dois componentes da segurança jurídica. Uma vez tomada a decisão política de formar um bloco econômico, e criadas as estruturas de funcionamento desse bloco, é à segurança jurídica que os países devem devotar os seus esforços para que um processo de integração tenha êxito.
É dever dos estudiosos do direito constitucional e do direito internacional usar a criatividade para que o Brasil possa construir uma segurança jurídica regional. É hora de avaliar os limites e oportunidades do ordenamento jurídico brasileiro para o sucesso do Mercosul. Esse é o primeiro exercício dos novos desafios que o direito internacional colocará diante dos juristas no século em que adentramos. Se o século passado entrará para a história pela produção de normas sem precedentes no nível internacional, o novo século poderá deixar a sua marca na implementação dessas normas em nível nacional.
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*Diplomata, mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco, bolsista da Academia da Haia de Direito Internacional
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