Fraude na saúde suplementar: Um crime sem vítimas
Para muitas pessoas, trata-se de uma prática justa porque prejudica a operadora que tem altos lucros; e, nessa linha de raciocínio, é uma prática ilegal, porém sem vítimas. Será mesmo que é assim?
quarta-feira, 12 de abril de 2023
Atualizado às 07:32
1. Saúde suplementar: O que importa saber
O boleto vem mensalmente em nome de uma pessoa física ou jurídica e deve ser pago para que o direito de utilização dos serviços de saúde suplementar continue garantido. A primeira sensação que temos é que aquele valor pago nos pertence e, portanto, vai custear somente as nossas despesas assistenciais. Puro engano! Na maioria das vezes, os valores pagos pelas pessoas físicas ou jurídicas contratantes de planos e seguros saúde são insuficientes para custear suas próprias despesas.
Um exemplo? Se uma pessoa paga um valor mensal de mil reais para a operadora de saúde, terá pagado ao final de um ano o valor total de doze mil reais. Se naquele ano ela realizar as consultas médicas e exames regulares para sua faixa etária, e não enfrentar nenhuma situação diferente, é possível que o valor das mensalidades seja suficiente para cobrir os custos assistenciais. Porém, se for um ano em que ela sofra qualquer episódio diferente e, muitas vezes, banal, como cair de um banquinho, se machucar em práticas esportivas de final de semana, ou, ainda, sofrer um acidente automobilístico e o resultado forem exames de imagem, cirurgias ou procedimentos ambulatoriais, é muito provável que os valores pagos individualmente não sejam suficientes para cobrir os custos assistenciais.
Muitas pessoas acreditam que nesses casos, quando o valor das mensalidades individuais é insuficiente para cobertura dos custos assistenciais, a operadora de saúde complementa os valores com seus próprios recursos. Mas, se isso fosse real, qual o interesse do investidor, acionista ou sócio da empresa operadora de saúde suplementar, em ficar à mercê desse risco? Não existiriam investidores nessa modalidade de empresa em razão da total impossibilidade de gerenciar os riscos.
O que sustenta a atividade da saúde suplementar no Brasil e em todo o mundo são, basicamente, dois pilares: mutualismo e repartição simples.
Mutualismo é o princípio que está presente em todas as modalidades de seguros, inclusive os de danos como de automóvel ou residencial, por exemplo. Os especialistas - atuários e estatísticos - analisam os riscos e calculam a probabilidade de que venham a ocorrer. Com base nesse cálculo que inclui estudo de estatísticas e probabilidades, eles fixam o valor com que cada pessoa terá que contribuir para a formação de um fundo comum, ou fundo mutual, de onde vão sair os valores necessários para o custeio das despesas assistenciais ao longo do período de vigência do contrato.
Além do valor destinado ao fundo mutual, os estatísticos e atuários calculam os valores necessários para pagamento das despesas administrativas e operacionais da operadora de planos e seguros saúde e a margem de retorno do investimento feito pelos acionistas. O valor total desse cálculo é a mensalidade a ser paga pela pessoa física ou jurídica.
No fundo mutual ficam apenas os valores que vão ser utilizados para as despesas assistenciais, e os valores para as despesas administrativas e para a remuneração do capital investido são depositados em contas da própria operadora de saúde suplementar. Os recursos disponíveis no fundo mutual pertencem a todos os beneficiários dos planos e seguros saúde e, por força de determinação legal, só podem ser utilizados para o custeio das despesas assistenciais.
E de que forma são utilizados? Para pagar consultas médicas, exames, procedimentos ambulatoriais, medicamentos, cirurgias, internações e outras milhares de situações previstas no rol de procedimentos e eventos em saúde elaborado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS e atualizado semestralmente.
Mas há um ponto relevante a ser considerado: a repartição simples. Em poucas palavras, os valores do fundo mutual não são identificados por beneficiário, são um fundo comum e são utilizados na proporção que cada um dos beneficiários ou seus agregados necessita. Assim, uma pessoa pode contribuir com doze mil reais de mensalidades em um ano e ter despesas de duzentos mil reais, e o fundo mutual irá custear essa despesa porque não há identificação personalizada dos recursos e todo o montante que está ali depositado é para ser utilizado no custeio das despesas assistenciais dos participantes do fundo, independentemente de quem sejam.
Mutualismo e repartição simples: é assim que os valores mensais pagos pelos beneficiários são acumulados e gastos no pagamento das despesas assistenciais de todos os que pertencem ao grupo de contratantes de uma determinada operadora de saúde suplementar.
2. Fraude na saúde suplementar
Várias modalidades de fraude são praticadas no setor de saúde suplementar no Brasil. Entre elas estão fraudes como a do "reembolso sem desembolso", os recibos duplicados, empréstimo de carteira para utilização por terceira pessoa, realização de procedimentos estéticos ou não cobertos pelo rol de procedimentos e eventos em saúde como se fossem procedimentos cobertos, entre outras.
Na atualidade, uma das fraudes mais comumente praticadas é a do chamado "reembolso sem desembolso", propagada como uma grande vantagem, mas que, na verdade, é crime e pode ensejar condenação por estelionato e demissão por justa causa nos seguros empresariais.
Nos contratos de plano ou seguro saúde da modalidade livre escolha o beneficiário pode decidir quem será seu prestador de serviços em caso de consultas, exames, internações ou outro procedimento coberto pelo contrato. Depois de utilizar o serviço deve realizar o pagamento do valor e, em seguida, apresentar o comprovante para a operadora e receber o reembolso em conformidade com os cálculos e percentuais previstos no contrato.
É preciso deixar claro que o reembolso das despesas do beneficiário só pode ocorrer depois de: (i) ser prestado o serviço; (ii) ser pago o valor cobrado pelo prestador escolhido; e, (iii) ser comprovado o pagamento para a operadora de saúde.
Não há hipótese de reembolso sem efetivo pagamento ao profissional prestador do serviço de saúde, porque isso caracterizaria a negociação com o instrumento contratual de saúde suplementar, o que é vedado em face das especificidades que esses contratos possuem. Pela mesma razão, não cabe ao beneficiário a prática de cessão de direito porque, a rigor, antes da análise dos documentos apresentados ele sequer sabe se possui ou não um direito, vez que a situação será analisada à luz do contrato e de toda a regulação aplicável ao setor.
Em 22 de novembro de 2022, no julgamento do RESp 1.959.929/SP, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, entendeu que: o reembolso sem desembolso é uma prática não prevista na Lei n.º 9.656, de 1998, e exatamente por isso, é ilegal e sujeita às consequências sancionatórias, tanto em esfera civil como criminal. De acordo com a decisão do tribunal superior: Sem lei específica ou regulamento expressa da ANS não há como permitir que clínicas ou laboratórios não credenciados à OPS criem uma nova forma de reembolso: reembolso assistido ou auxiliado em completo desvirtuamento da própria lógica preconizada pela lei 9.656 dando margem inclusive a situações de falta de controle da verificação da adequação e dos valores das consultas, procedimentos, exames solicitados, o que poderia prejudicar todo o sistema atuarial do seguro e em último caso aos próprios beneficiários.
Não há fundamento fático ou jurídico que sustente a licitude e a contratualidade do reembolso sem desembolso. Se o beneficiário tem dificuldade em desembolsar antecipadamente os valores, pode utilizar a rede credenciada oferecida pela operadora de saúde e que possui bons profissionais e prestadores de serviços. E caso os profissionais da rede credenciada não atendam de forma satisfatória, o beneficiário pode utilizar o Serviço de Atendimento ao Cliente - SAC e a Ouvidoria da operadora de saúde suplementar, sempre disponíveis gratuitamente, 24 horas por dia nos 7 dias da semana.
O que não tem lógica, como menciona expressamente a decisão do STJ e, tão pouco legalidade, é que o beneficiário possa utilizar o contrato com a operadora de saúde suplementar como instrumento de operações financeiras, em evidente utilização indevida do instituto do reembolso, a favorecer, inclusive, práticas ilícitas na circulação de valores e eventuais fraudes que trarão imensos prejuízos para os demais beneficiários, participantes do fundo mutual.
As demais práticas de fraude também são suscetíveis de punição penal, civil e trabalhista. Um risco para quem as prática e que, muitas vezes, é levado a erro no atendimento quando recebe informações discrepantes sobre a utilização. Sim, não raro a proposta para a prática de fraude é feita no local de atendimento do beneficiário, o que o leva a crer que se trata de uma prática legal e aceitável.
O beneficiário deve desconfiar sempre dos locais de atendimento em saúde que solicitam seu login e senha do plano de saúde. Em primeiro lugar porque são dados sigilosos, que devem ser mantidos exclusivamente para o relacionamento direto do beneficiário e da operadora. E em segundo lugar, mas não menos importante, informar o login e a senha para que o prestador de serviços possa fazer contato direto com a operadora significa que ele poderá solicitar o reembolso de valores que não foram efetivamente gastos! Ou, ainda, solicitar reembolso de valores por procedimentos não cobertos no contrato com a operadora de saúde, o que igualmente caracteriza fraude.
Mas, sem dúvida, o mais importante é compreender quem é a vítima do crime de estelionato, na modalidade fraude contrasseguro. É o beneficiário! É a empresa que contrata o plano ou seguro saúde para seus funcionários. E, ainda, é a sociedade brasileira, que vê cidadãos honestos e trabalhadores serem arrastados para práticas fraudulentas e criminosas que poderão lhes custar a primariedade penal e, nos seguros coletivos empresariais, a demissão por justa causa por improbidade e/ou condenação criminal transitada em julgado.
3. Fraude contra saúde suplementar não é crime sem vítima!
A fraude contra a saúde suplementar não é, realmente, um crime sem vítima! Ao contrário, a vítima é identificável e muito próxima de todos nós: somos todos nós, os beneficiários de planos e seguros saúde, tanto as pessoas físicas como as jurídicas que os contratam.
Os valores indevidamente cobrados das operadoras de saúde por meio de práticas fraudulentas impactam os custos assistenciais e, consequentemente, resultam em aumento do valor das mensalidades ano após ano, alguns dos quais em percentuais bastante desfavoráveis e que podem levar empresas a deixar de oferecer esse benefício para seus funcionários.
A fraude contra as operadoras de planos e seguros saúde não prejudica o lucro dessas empresas, ao contrário, prejudica os beneficiários que pagam suas mensalidades, as empresas que pagam para seus funcionários e, as entidades associativas que pagam para aqueles que aderem. Na ponta final, quem paga é o principal prejudicado, a vítima da fraude contra a saúde suplementar.
Os beneficiários de planos e seguros saúde são os principais aliados das operadoras na prevenção dessas práticas, devem agir como verdadeiros fiscais e denunciar pelo SAC todas as práticas que lhes parecerem inidôneas. Somente com essa rede de fiscalização de condutas fraudulentas é que o sistema de saúde suplementar poderá se livrar desse mal que tanto prejuízo tem causado.
Vera Valente
Advogada e engenheira. Diretora Executiva da FenaSaúde desde 2019. Ingressou no mercado de Saúde no fim da década de 1990, quando foi convidada a assumir um cargo no Ministério da Saúde, onde esteve à frente do projeto de lançamento do cartão SUS. Em seguida, no início dos anos 2000, liderou a implementação da política de medicamentos genéricos no Brasil, na posição de Gerente Geral de Medicamentos Genéricos da ANVISA.