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A inconstitucionalidade do tratamento conferido pela lei 14.112/20 às microempresas e empresas de pequeno porte

Revela-se certo que há inconstitucionalidade no tratamento conferido pela lei 14.112/20 às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Atualizado às 11:18

A Constituição da República Federativa do Brasil prevê, em seu art. 179 que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

Além disso, o artigo 146, III, d, com redação dada pela Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, também irá complementar no sentido de que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre a definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Referidos dispositivos constitucionais foram regulamentados pela lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.

O art. 3º, caput, I e II, da lei Complementar 123, de 2006, atualmente prevê que consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que no caso da microempresa, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais), e no caso de empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais).

Referida lei Complementar 123, de 2006, foi alterada pela lei Complementar 147, de 7 de agosto de 2014, trazendo, em seu art. 5º, modificações específicas tanto na lei Complementar 123, de 2006, quanto na lei 11.101, de 2005, dentre outras leis.

Foram nove as mudanças implementadas pela lei Complementar 147, de 2014 na lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

A primeira, está contida no art. 24, § 5º. A segunda, no art. 26, IV. A terceira, no art. 41, IV. A quarta, no art. 45, § 2º. A quinta, no art. 48, III. A sexta, no art. 68, parágrafo único. A sétima, no art. 71, I e II. A oitiva, no art. 72, parágrafo único. A nona, no art. 83, IV, d.

Ocorre que dois desses dispositivos, foram recentemente modificados através de lei ordinária e não através de lei Complementar. Estamos a referenciar a lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, que entrou em vigor após decorridos 30 (trinta) dias de sua publicação oficial.

Para fins didáticos, primeiro evidenciaremos a redação antiga de tais artigos, redações essas que foram dadas pela lei Complementar 147, de 2014 e, logo na sequência, traremos a redação nova fornecida pela lei 14.112, de 2020. Lembrando que todas as modificações são pertinentes a dispositivos da lei 11.101, de 2005.

Vejamos, então, a redação fornecida pela lei Complementar referenciada, para cada um dos dispositivos legais da lei 11.101, de 2005.

O art. 24, § 5º, na forma como tratado pela lei Complementar 147, de 2014, dizia que a remuneração do administrador judicial fica reduzida ao limite de 2% (dois por cento), no caso de microempresas e empresas de pequeno porte.

Agora, após a lei 14.112, de 2020 o art. 24, § 5º da lei 11.101, de 2005 prevê que a remuneração do administrador judicial fica reduzida ao limite de 2% (dois por cento), no caso de microempresas e de empresas de pequeno porte, bem como na hipótese de que trata o art. 70-A desta lei.

Já o art. 83 da lei 11.101, de 2005 previa que a classificação dos créditos na falência obedecia à ordem ali estabelecida, de maneira que no inciso IV, d, passou a prever, após a modificação promovida pela lei Complementar 147, de 2014 na lei 11.101, de 2005, que eram créditos com privilégio especial, dentre outros, aqueles em favor de microempreendedores individuais e das microempresas de pequeno porte de que trata a lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006.

Ocorre que a lei ordinária 14.112, de 2020 deu nova redação ao art. 24, § 5º da lei 11.101, de 2005 e, também, revogou o art. 83, IV, d, da mesma lei.

É válido pontuar que as alterações sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas nos arts. 83 e 84 da lei 11.101, de 2005, somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência da lei 14.112, de 2020, conforme está expressamente contido no art. 5º, § 1º, II, desta nova lei.

Não obstante, revela-se certo que há inconstitucionalidade no tratamento conferido pela lei 14.112/20 às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte.

A uma, pelo fato de que as matérias que a Constituição relegou o tratamento à lei complementar não podem ser tratadas (e muito menos revogadas) por leis ordinárias, visto que a Constituição da República prevê processo legislativo mais qualificado para a edição de leis complementares, distinguindo-a da lei ordinária, especialmente em seus arts. 59, II e III, e 69, sendo que este último prevê que as leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.

A duas, pelo fato de que a lei ordinária 14.112, de 2020 invadiu campo temático da lei complementar 147, de 2014, o que se afigura impróprio, dado ao fato de que não foi exigido o quórum qualificado previsto no art. 69 da Constituição.

Nesse sentido, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

"Anotação Vinculada - art. 69 da Constituição Federal - "A lei complementar, conquanto não goze, no ordenamento jurídico nacional, de posição hierárquica superior àquela ocupada pela lei ordinária, pressupõe a adoção de processo legislativo qualificado, cujo quórum para a aprovação demanda maioria absoluta, ex vi do artigo 69 da CRFB.  A criação de reserva de lei complementar, com o fito de mitigar a influência das maiorias parlamentares circunstanciais no processo legislativo referente a determinadas matérias, decorre de juízo de ponderação específico realizado pelo texto constitucional, fruto do sopesamento entre o princípio democrático, de um lado, e a previsibilidade e confiabilidade necessárias à adequada normatização de questões de especial relevância econômica, social ou política, de outro. A aprovação de leis complementares depende de mobilização parlamentar mais intensa para a criação de maiorias consolidadas no âmbito do Poder Legislativo, bem como do dispêndio de capital político e institucional que propicie tal articulação, processo esse que nem sempre será factível ou mesmo desejável para a atividade legislativa ordinária, diante da realidade que marca a sociedade brasileira - plural e dinâmica por excelência - e da necessidade de tutela das minorias, que nem sempre contam com representação política expressiva. A ampliação da reserva de lei complementar, para além daquelas hipóteses demandadas no texto constitucional, portanto, restringe indevidamente o arranjo democrático-representativo desenhado pela Constituição Federal, ao permitir que Legislador estadual crie, por meio do exercício do seu poder constituinte decorrente, óbices procedimentais - como é o quórum qualificado - para a discussão de matérias estranhas ao seu interesse ou cujo processo legislativo, pelo seu objeto, deva ser mais célere ou responsivo aos ânimos populares.
[ADI 5.003, rel. min. Luiz Fux, j. 5-12-2019, P, DJE de 19-12-2019.]"

Há, nesse passo, inconstitucionalidade formal na lei 14.112, de 2020, quando promove a revogação do art. 83, IV, d, e a modificação do art. 24, § 5º, ambos da lei 11.101/05, cujas redações haviam sido dadas pela lei complementar 147, de 2014, inconstitucionalidade esta que decorre do processo legislativo menos qualificado a que foi submetido a vigente lei 14.112/20.

Também há, de outro lado, inconstitucionalidade material, quando se percebe que a atual legislação de insolvência empresarial, aplicada às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, após o início da vigência da lei 14.112, de 2020, não está a obedecer ao comando constitucional contido no art. 179 da Constituição da República que prevê, dentre outros, que a União deve dispensar às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, mormente pelo fato de que a lei 14.112, de 2020 revogou o 83, IV, d da lei 11.101, de 2005 sem conferir outro tratamento mais favorável, prejudicando, na prática, a situação dos credores que se enquadrarem na condição microempresas e empresas de pequeno porte.

Necessário se faz, portanto, que as impropriedades indicadas sejam reconhecidas através de controle de constitucionalidade próprio, a fim de garantir o direito constitucional das microempresas e empresas de pequeno porte ao tratamento jurídico diferenciado, também no âmbito da legislação de insolvência empresarial, mais precisamente nos processos de falência decretados após a entrada em vigor da lei 14.112, de 2020.

Paulo Henrique Faria

Paulo Henrique Faria

Advogado e Professor de Direito Empresarial; Mestrando em Direito PPGDA/UFG; Pós-graduado em Advocacia Empresarial; Pós-graduado em Direito Público

Rafael Bechepeche Barbosa

Rafael Bechepeche Barbosa

Advogado e professor universitário. Especialista em Direito Público.

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