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A competência da produção antecipada de provas sem o requisito da urgência e a arbitragem: mais um capítulo

Não se trata de precedente vinculante, que deve ser observado obrigatoriamente, mas de decisão de cunho persuasivo que pode determinar a sorte de uma série de processos atualmente em trâmite no Judiciário.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Atualizado às 07:44

O STJ, por meio do julgamento do REsp 2.023.615/SP, firmou entendimento sobre a competência para julgamento de ação de produção antecipada de provas pré-arbitral sem o requisito da urgência (art. 318, incisos II e III, CPC). Para referido Tribunal, sendo a relação jurídica regida por contrato com cláusula compromissória e, não havendo excepcionalidades em relação à utilização da arbitragem, todas as medidas concernentes à essa relação devem ser de competência do árbitro ou tribunal arbitral. 

O caso específico dos autos trata de ação autônoma de produção antecipada de provas, com fundamento no art. 381, III, CPC (visando ao "prévio conhecimento dos fatos que possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação"), ajuizada por acionistas minoritários, a despeito da existência de cláusula compromissória prevista no estatuto social da companhia.

A discussão ganha contornos de relevância na medida em que, com a entrada em vigor do CPC/15, ampliaram-se as hipóteses de produção antecipada de provas, sendo possível, com base nos incisos II e III do art. 381, produzir antecipadamente provas sem que seja necessário comprovar a existência de periculum in mora. Contudo, a Lei Brasileira de Arbitragem (LAB), ao prever hipóteses de cooperação entre juízes e árbitros, apenas dispõe, em seu art. 22-A, que as "partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência", sendo silente em relação à produção antecipada de prova para "viabilizar a auto composição" ou para permitir "o prévio conhecimento dos fatos", o que vem gerando acaloradas discussões na doutrina e jurisprudência.

Não se tem dúvidas sobre a possibilidade da utilização da jurisdição estatal e, portanto, da competência do Poder Judiciário, para analisar e julgar medidas de urgência, antes da instauração do tribunal arbitral, salvo se houver renúncia expressa ou tácita das partes que firmaram o pacto1. A regra estabelecida pelo art. 22-A da LAB não possui caráter absoluto2. Não é obrigatório que as partes se socorram do juízo estatal para a tutela de situações em que se verifica a urgência. É possível que elas, de acordo com a autonomia da vontade, prevejam validamente (i) tanto a competência exclusiva do juízo estatal para a apreciação e concessão de medidas de urgência, com exclusão do juízo arbitral, (ii) quanto a previsão de nomeação de árbitros de emergência para a apreciação e a concessão de medidas de urgência, com a exclusão do juízo estatal3.

É seguro dizer, portanto, que o Poder Judiciário é competente para julgar questões que visem preservar o resultado útil do procedimento arbitral ou evitar o perecimento de determinadas provas, até a devida constituição do tribunal arbitral - salvo nos casos em que exista a figura do árbitro de emergência e as partes tenham optado pela sua utilização.

Noutra banda, importante lembrar que a ação de produção antecipada de provas baseada nos incisos II e III, art. 381, CPC, não é medida cautelar4. Nesse sentido, não se aplica ao procedimento de produção antecipada de prova o disposto no parágrafo único do art. 22-A da LAB, segundo o qual a medida de urgência perde a sua eficácia se não instaurada em 30 dias a arbitragem. Trata-se, a bem da verdade, de uma típica ação probatória autônoma, em que não se verificam questões urgentes ou acautelatórias.

Contudo, ainda que autônoma em relação ao direito material, a produção antecipada de provas não pode ser dele totalmente deslocada, em razão de seu nítido caráter instrumental, colocando a discussão dentro dos limites objetivos da cláusula arbitral5.

No âmbito do direito societário, é comum que cláusulas compromissórias constantes de estatutos ou acordos de acionistas estabeleçam, genericamente, que serão submetidas à arbitragem todas as controvérsias decorrentes da interpretação de execução de tais instrumentos contratuais, o que leva a crer que toda a discussão, especialmente de direito material, deva ser dirimida por meio da arbitragem.

Antevendo situações que a prática tem nos trazido, é comum visualizarmos a necessidade de produzir antecipadamente provas e, nesse sentido, é importante revisitar as cláusulas compromissórias insertas nos contratos e estatutos sociais. Embora a regra geral seja a de que cabe ao juízo arbitral processar a produção antecipada de provas sem o requisito da urgência, na hipótese de existir disposição específica na cláusula compromissória em sentido contrário e/ou a depender do comportamento das partes, a jurisdição estatal poderá ser acionada.

Essa interpretação leva em consideração a vontade das partes, que deve estar externalizada, fazendo constar que a produção antecipada de provas sem caráter de urgência - e poderia haver outras previsões - deve estar entre o rol de medidas excepcionais à competência arbitral.

Respeitadas as decisões em sentido contrário, mantendo-se a higidez da cláusula compromissória e o respeito à autonomia da vontade das partes, não há que se falar em violação ao direito constitucional à prova, que poderá ser igualmente exercido, porém em ambiente autonomamente escolhido por estas. O contraditório tampouco parece ser violado nessas hipóteses, já que, assim como no âmbito do poder estatal, a vedação à apresentação de defesa, pelo interessado, está voltada para a impossibilidade de se discutir a valoração da prova6 (o que deve ser realizado no bojo da discussão principal de mérito).

Na hipótese de violação de alguma garantia constitucional (art. 21, §2º, LAB), a Lei de Arbitragem permite a impugnação judicial da sentença arbitral, assim como o Código de Processo Civil também prevê como garantia constitucional o exercício do contraditório, havendo mecanismos processuais para a anulação do ato.

O acórdão do Resp 2.023.615/SP ainda não foi disponibilizado, de modo que os argumentos jurídicos utilizados pelo STJ deverão ser conhecidos em breve, muito embora seja possível antever o caminho adotado pela Turma julgadora em razão das diversas discussões sobre a temática. Não se trata de precedente vinculante, que deve ser observado obrigatoriamente, mas de decisão de cunho persuasivo que pode determinar a sorte de uma série de processos atualmente em trâmite no Judiciário.

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1 Antes mesmo da entrada em vigor do CPC/15 e das discussões atinentes ao art. 381 e incisos, a doutrina já se pronunciava sobre a possibilidade de as partes se valerem do Judiciário para apreciar medidas de urgência. Vide: GUERRERO, Luis Fernando, Tutela de Urgência e Arbitragem (2009), n. 6, Revista Brasileira de Arbitragem, pp. 22-44.

2 ROSSONI, Igor Bimkowski, Produção antecipada de prova sem requisito da urgência e juízo arbitral no direito societário: breves considerações sobre a competência para sua produção. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5329221/mod_resource/content/0/ROSSONI%2C%20Igor%20-%20Produ%C3%A7%C3%A3o%20antecipada%20de%20prova%20sem%20requisito%20da%20urg%C3%AAncia%20e%20ju%C3%ADzo%20arbitral.pdf. Acesso em 29/8/22.

3 RANZOLIN, Ricardo, DAVID, Henrique de. Consolidação do sistema de urgência na arbitragem - com as modificações introduzidas pela Lei 13.129/15 e pelo Novo CPC. Em NASCIMBENI, Asdubral Franco MUNIZ, Joaquim de Paiva; RANZOLIN, Ricardo (Coord). 20 anos da Lei de Arbitragem. Brasília: OAB, Conselho Federal. pp. 313-314.

4 DIDIER JR., Fredie. "Produção antecipada da prova", in: Produção Antecipada da Prova: questões relevantes e aspectos polêmicos, p. 197-198. O CPC/2015 consagra uma cláusula geral de antecipação probatória autônoma ou uma "ação probatória autônoma genérica". O escopo da codificação vigente é exatamente a afirmação do "direito autônomo e genérico à produção antecipada da prova." DIDIER JR., Fredie. "Produção antecipada (...)", p. 197-198.

5 Nesse sentido, refere a doutrina que, "salvo exceção que conste expressamente na cláusula compromissória, a renúncia à jurisdição estatal abrange todas as questões que possam se inferir dos limites objetivos da arbitralidade da controvérsia." MÜSSNICH, Francisco Antunes Maciel; TRAVASSOS, Marcela Maffei Quadra. Medidas liminares em arbitragem e sociedades limitadas. Em YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Processo Societário. São Paulo: Quartier Latin. p. 242.

6 Carolina Costa Meireles. Produção antecipada de prova e arbitragem: uma análise sobre competência. Revista de Processo | vol. 303/2020 | p. 451 - 478 | Maio / 2020, DTR\2020\6812, p. 9.

Paula A. Abi Chahine Yunes Perim

Paula A. Abi Chahine Yunes Perim

Possui vasta experiência em contencioso cível empresarial, com atuação em questões ligadas ao direito civil, comercial, consumerista e administrativo. Conduz arbitragens nacionais e internacionais, em temas relativos à aquisição de empresas, conflitos societários, infraestrutura, representação comercial, contratos de construção, entre outros. Dedica-se à área acadêmica como professora do curso de Processo Civil em renomadas instituições de ensino, e integra diversas instituições do meio arbitral. É graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especializada em Direito Processual Civil pela mesma instituição. Possui Certificação Internacional em Contencioso Empresarial e Arbitragem Internacional pela London School of Economics and Political Science - LSE.

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