Os Diamantes de Michelle, o necessário reconhecimento do valor do serviço público e as joias da coroa: crimes, falsas declarações e os batedores de carteira (parte 2)
Nessas horas é sempre bom acreditarmos que as instituições vergam, mas não quebram, mesmo com a persistência daqueles que duvidam da terra ser redonda.
segunda-feira, 20 de março de 2023
Atualizado às 13:41
Na primeira parte comentamos sobre o retorno do Estado, em especial, a forma republicana de viver em sociedade civilizada. Este é o normal. Aquela histeria coletiva, ao que parece, está apenas no passado e ainda em discursos conservadores de baixa qualidade. É preciso questionar: a experiência protofascista, derrotada na eleição de 2022, terá sido suficiente para refletir mudanças na cultura popular e poderá significar a eliminação do ódio instalado no Brasil nos últimos 4 anos? Creio que não seja suficiente! Infelizmente! Precisamos saber o que fazer!
Responsabilizar pessoas, dar nomes e estabelecer as responsabilidades de cada um(a). Em recente entrevista o Ex Presidente afirmou: "Eu estou sendo crucificado no Brasil por um presente que eu não recebi. [...] A imprensa fala uma coisa absurda. Eu teria que pagar 50%, teria que pagar R$ 8 milhões. Onde vou arranjar R$ 8 milhões?". Aqui a pergunta que salta, imediatamente, é: se Bolsonaro nega ser o destinatário do presente, quem será responsabilizado pelo "mal entendido"?
Lembremos: há um conjunto de presentes que está apreendido na Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo e outro conjunto de presente que está nas mãos de Bolsonaro. Aliás, diga-se, o TCU determinou que os presentes que estão com ele sejam devolvidos. Ora: se um primeiro conjunto de presentes está com Bolsonaro e ele se assenhorou destes em detrimento do patrimônio público ou, ainda, acreditando seriamente que seria um presente para ele, deixou de pagar os impostos devidos, temos uma situação difícil de compreender. Vejamos!
a) há dois conjuntos de presentes: um apreendido e outro chegou ao destinatário;
b) Bolsonaro diz que os presentes apreendidos não são dele, logo são de quem os transportou da Arábia Saudita ao Brasil, ou seja, são do Sargento Marcos André dos Santos Soeiro, assessor do Ministro de Minas e Energia;
c) os presentes apropriados por Bolsonaro não estão regularizados, pois não houve pagamento dos tributos. Devem ser devolvidos por determinação do Tribunal de Contas da União!
d) Por fim, Bolsonaro diz que e perseguido pela imprensa, pois não tem 8 milhões para pagar os tributos.
Ele se coloca numa situação inusitada, pois se Bolsonaro diz não ter dinheiro para pagar os tributos (8 milhões), como ele se apropriou do segundo conjunto de presentes? Teria ele cometido crime contra a ordem tributária, ou mesmo um descaminho? Bom, se ele afirma que os presentes teriam outra destinação, a qual ele desconhece, então as joias apreendidas são do Sargento Soeiro que as trouxe fisicamente, logo, Bolsonaro imputa ao sargento a prática de crime de peculato?
Caso Bolsonaro devolva estes presentes que hoje estão com ele, assume a responsabilidade de que tentou assenhorar-se dos mesmos, devendo ser responsável pelos seus atos criminosos. Em qualquer caso, Bolsonaro é responsável por quaisquer das situações. Aliás, esta última passagem representa o que há de pior na vida pública: o desprezo pela vida alheia. O sargento, neste episódio, ao que parece, é tratado como um ser humano de segunda classe: descartável.
É nítido o que houve neste grande imbróglio. Os fatos foram flagrados graças a liberdade de impressa, aquela tão criticada pelo ex presidente nos últimos 4 anos, que via em cada denúncia uma manifestação de oposição, e não ações que permitem o aprofundamento da transparência na administração pública, se esquecendo o mandatário de plantão, que a transparência, a eficiência, a impessoalidade e a legalidade são pilares constitucionais da administração pública. O "presentinho recebido pela primeira dama" foi encontrado na mochila do militar Marcos André dos Santos Soeiro, que assessorava o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque.
O "presentinho" avaliado em R$16.500.000,00 (dezesseis milhões e quinhentos mil reais), mais os tributos incidentes na importação dessas jóias (II, Cofins, Pis e ICMS) e a multa pela irregularidade na importação, faria o valor das mesmas ultrapassar a casa de R$ 30.000.000,00 (trinta milhões). Convenhamos: "presentinho" bem fora dos padrões da Arábia Saudita que, só para efeitos de comparação, se somarmos todos os presentes dados nos últimos 20 anos, aos presidentes e as respectivas primeiras damas dos EUA, o maior parceiro comercial da Arábia Saudita, somariam menos da metade do valor do presente para Michelle. O que faz muito se perguntarem a razão de tal encantamento, não é?
Logo, em que pese a vontade do ex-presidente, que muitas vezes acreditava ser o monarca, não cabe incorporação de bem por interesse pessoal de quem quer que seja, apenas em caso de efetivo interesse público. Mas, afinal, Michelle poderia aceitar o presente ou as joias deveriam virar propriedade do governo?
Devemos lembrar que o Decreto nº 4.344/2002, assinado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, regulamenta o tema, que havia sido tratado pela lei n° 8394 de 1991, e determina que quaisquer itens recebidos em cerimônias de trocas de presentes, audiências com autoridades estrangeiras, visitas ou viagens oficiais sejam declarados de interesse público e passem a integrar o patrimônio cultural brasileiro. Nesse episódio fica evidente a "confusão" entre o público e o privado de um mandatário que não quer entender que determinados presentes não são pessoais, mas institucionais, que só ocorrem por força do exercício do cargo público e da autoridade do mesmo.
Segundo o entendimento do Tribunal de Contas da União, em 2016 concluiu julgamento (acórdão TCU 2255), com base, entre outros, no princípio constitucional da moralidade (artigo37 da Constituição), que é um dos princípios que orientam a Administração. Disse o ministro Wallton Alencar, relator do acórdão, que "não é razoável pretender que (...) possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade".
Em sessão de 1º de março deste ano, o TCU julgou caso correlato e aprovou o acórdão 326/2023 determinando à comitiva do governo Bolsonaro que foi ao Qatar em 2019, ele novamente, a entregar para o patrimônio público brasileiro relógios das grifes Hublot e Cartier (no valor de até R$ 53 mil cada um) que receberam de presente. Em sendo assim o recebimento desses presentes pelos agentes públicos brasileiros contraria os princípios da moralidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Todos esses mandamentos não precisariam nem mesmo estar escrito, não fosse o fato de que o último dirigente de plantão, que certamente acredita ser a reencarnação de Luís XIV, soubesse ao menos que as autoridade depende do mandato e é por prazo determinado, e que os presentes são para a autoridade constituída e não para a pessoa física do mesmo.
Nessas horas é sempre bom acreditarmos que as instituições vergam, mas não quebram, mesmo com a persistência daqueles que duvidam da terra ser redonda.