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Relação médico-paciente: o problema do termo de consentimento genérico - "Blanket consent"

O Termo de Consentimento Esclarecido surge como a consagração de todo este processo informacional mais complexo e, desta forma, não pode ser reduzido a um texto padrão, com disposições genéricas e abrangentes, que não refletem o caso e suas peculiaridades.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Atualizado às 13:23

Em 5 de abril de 2022, o Superior Tribunal de Justiça prolatou Acórdão no Recurso Especial RN 18/026821-9 condenando por responsabilidade civil dois médicos, um cirurgião e um anestesista, pela falha no dever de informação acerca dos riscos de cirurgia que seria realizada em paciente para correção da Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SASO). A cirurgia não chegou a acontecer porque o paciente sofreu um choque anafilático decorrente da indução anestésica, falecendo em seguida. Como intercorrência neste processo, houve a dificuldade de intubação do paciente, por suas condições físicas: obeso e com hipertrofia de base de língua.

Os autores da ação são dois irmãos do paciente falecido e a causa de pedir não foi fundamentada em erro médico, mas na ausência de esclarecimentos dos profissionais médicos sobre os riscos e eventuais dificuldades do procedimento cirúrgico prescrito, que repercutiu na morte do parente, causando àqueles danos morais reflexos.

A decisão foi unânime e o Ministro Marco Aurélio Bellizze fundamentou seu voto no dever de informação do médico, previstos no artigo 22 do Código de Ética Médica, no art. 6º, inciso III e 14, do Código de Defesa do Consumidor, bem como no artigo 15 do Código Civil. A decisão apontou como violados os princípios da autonomia da vontade e o da boa-fé-objetiva, que deveriam nortear a conduta dos profissionais.

Conforme análise das provas dos autos, não foram oferecidas ao paciente, por nenhum dos médicos condenados, as informações adequadas. Houve apenas a apresentação de um consentimento genérico, usualmente denominado "blanket consent",  incapaz de demonstrar o esclarecimento particularizado do caso, nem de garantir ao enfermo o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação.

Ressaltou-se no julgamento que a informação prestada pelo médico deve sempre ser clara e precisa, de forma a propiciar o consentimento esclarecido do paciente e concluiu-se pela não observância do direito do paciente à informação sobre possíveis riscos, benefícios e alternativas do procedimento, de forma que possibilitasse sua manifestação de forma livre e consciente em relação à realização ou não desta terapêutica.

A condenação por danos morais pela ausência no cumprimento de informação clara e precisa ao paciente repercutiu na indenização fixada em R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada autor, acrescidos de correção monetária desde a data do julgamento do STJ, além de juros de mora a partir da data do evento danoso, no caso a cirurgia, ocorrida em março de 2002.

Esta decisão pode ser considerada como um divisor de águas no Direito Médico, expondo definitivamente uma grande mudança de comportamento do consumidor de serviço de saúde, que espera e reivindica do médico o esclarecimento adequado em relação aos procedimentos propostos. Esta exigência tem sido levada às últimas consequências, e frequentemente tem culminado no Judiciário. 

A Medicina intitulada "paternalista", na qual o médico isoladamente decide pela terapêutica mais indicada, caiu em desuso. Houve uma transformação na relação médico-paciente, com o paciente mais informado, passando a ter voz ativa e expressando seus anseios.     

Especialmente após a Constituição de 1988, os cidadãos se tornaram mais conscientes de seus direitos, o acesso ao Judiciário foi facilitado e, consequentemente, ampliado. Na última década, a judicialização da saúde ganhou destaque e alguns institutos têm se dedicado a analisar o fenômeno e entender suas causas e efeitos.          

Um estudo do INSPER e CNJ, publicado em 20191, demonstrou que o número de demandas relacionadas à prestação de serviços na saúde aumentou 130% entre 2008 e 2017, e elas trazem objetos diversos, decorrentes especialmente de reclamações de usuários de planos de saúde privado e das ineficiências do Sistema Único de Saúde (SUS), mas também há uma  percentual considerável de ações propostas para buscar a reparação por erros médicos.

Com a pandemia de covid-19 trazendo ao debate público tantas questões desta natureza, a matéria se popularizou e pode-se esperar que a judicialização se intensifique ainda mais nos próximos anos, impactando significativamente as partes envolvidas.

Portanto, ao profissional médico que deseja afastar ou reduzir o risco de demandas judiciais ou mesmo sindicâncias e processos éticos, compete a adoção de uma conduta mais atual e condizente com o tempo em que vivemos, em que a informação é supervalorizada.

No novo modelo de relação médico-paciente as informações devem ser transmitidas em sua totalidade e com nível de clareza suficientes para que o paciente absorva, compreenda e reflita sobre a terapêutica em relação aos seus ideais e valores de vida, antes de decidir pelo que melhor lhe convier.

O Termo de Consentimento Esclarecido surge como a consagração de todo este processo informacional mais complexo e, desta forma, não pode ser reduzido a um texto padrão, com disposições genéricas e abrangentes, que não refletem o caso e suas peculiaridades.

Neste mundo contemporâneo, em que a informação representa um ativo valioso e um bem essencial para o exercício da cidadania, a mudança de comportamento nas relações passa a ser inevitável. Infelizmente, percebemos que no ecossistema da saúde a adaptação das condutas, por ora, ainda está reduzida a poucos profissionais mais atentos e preparados. Contudo, podemos pressupor que, inexoravelmente, os não adaptados sofrerão as consequências impostas pela realidade. 

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1 INSPER. Judicialização da saúde dispara e já custa R$ 1,3 bi à União: tema envolve demanda legítima de direitos e disputa pela alocação de recursos na sociedade. 2019. Disponível em: https://www.insper.edu.br/conhecimento/direito/judicializacao-da-saude-dispara-e-ja-custa-r-13-bi-a-uniao/. Acesso em: 27 jan. 2023.

Gisele Machado Figueiredo Boselli

VIP Gisele Machado Figueiredo Boselli

Advogada, formada pela PUC de Campinas, SP, pós graduada em Direito Médico e da Saúde pela PUC do Paraná e em Direito da Economia e da Empresa pela FGV,SP, membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São Paulo, capital.

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