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O tempo e o espaço das violações de direitos das mulheres: o legado de esperança garcia e zeferina

Espaços e tempos diversos, violações persistentes e um futuro de muita luta se descortinam neste 8 de março em que a igualdade de direitos é fratura presente entre o passado e o futuro das mulheres.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Atualizado às 08:06

Neste 8 de março resistimos na luta por um futuro mais igualitário. Mas para avançar é necessário colher as experiências daquelas que vieram antes de nós, e em uma realidade ainda mais nefasta às mulheres. Emerge assim a necessidade de valorização e resgate da história de Esperança Garcia e Zeferina, duas negras escravizadas, que viveram no nordeste do Brasil, entre o último quartel do século XVIII e o primeiro quartel do século XIX, e que resistiram, de maneira distinta, ao regime escravocrata.

Esperança, de religião católica e alfabetizada, viveu na Fazenda Algodões, localizada onde hoje estão os Estados do Piauí e Maranhão, aproximadamente entre 1750 a 1800; enquanto Zeferina, de  religião de raiz africana e com consistente formação oral e ancestral, baseada no  conhecimento da cultura matrilinear angolana, viveu na Bahia, aproximadamente entre 1800 a 1826. Escravizada, chegou ao Brasil, nos braços de sua mãe Amália. Desembarcaram em Salvador. 

A existência de Esperança veio à tona apenas em 1979, com a descoberta, por um historiador, de uma carta escrita por ela, em 1770. Durante dois séculos, a sua luta foi desconhecida, perdida em um Arquivo Público. Já a existência de Zeferina, líder do Quilombo do Urubu, foi revelada com sua detenção, em 1826, quando foi capturada num embate em defesa de seu quilombo. Desde então, sua história vem sendo transmitida oralmente entre a comunidade que vive na região onde existiu o quilombo. As memórias de ambas se interligam pela luta contra violência institucionalizada; e o apagamento das suas trajetórias é do sistema de opressão de gênero a que se refere de patriarcado, ainda mais duro às mulheres negras. 

A mudança nas narrativas oficiais, com a inclusão da perspectiva de gênero e as demandas por igualdade e justiça tornaram possível a análise conjunta de trajetórias e estratégias de resistência distintas: uma fugiu e organizou a luta desde um quilombo; a outra, usou o caminho da reclamação formal e institucional contra as violências sofridas. Resgatando os seus passos ancestrais, a convergência das histórias dessas duas mulheres acontece no tempo presente, na memória criada ou ressignificada a partir dos valores atuais. 

Esperança e Zeferina lembram a importância da luta por liberdade e dignidade, a partir do referencial comunitário, do cuidado com as outras pessoas; e ensinam a relevância de compreender como funcionam as instituições e como lidar com as relações de poder. Também se firmam como mulheres negras que lideraram e que enfrentaram os poderosos. 

Esperança Garcia é hoje considerada a primeira advogada brasileira ao redigir de próprio punho, em 1770, missiva, constante do do arquivo público do Piauí, no formato de petição da época, sobre a escravidão no Brasil. Neste manuscrito, no acervo do arquivo público do Piauí, Esperança se dirige a Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, presidente da Província, para pedir para voltar à fazenda anterior onde vivia com seu marido, denunciando a violação à sua liberdade religiosa, por não poder batizar sua filha caçula, e a violência física e psicológica que ela e seu filho sofriam, já que ambos eram vítimas de maus-tratos e abusos físicos.

A habilidade de usar o letramento como potencial reivindicatório, expondo no papel suas necessidades, relacionando-as com o contexto jurídico-administrativo e religioso mais amplo da época, evidencia Esperança Garcia como símbolo de resistência ao regime escravocrata brasileiro. Sua "Carta" foi reconhecida e elencada como símbolo de resistência negra e utilizada para a construção de uma identidade de resistência das mulheres negras piauienses.

 Zeferina surge no cenário público cinquenta anos depois da Carta de Esperança Garcia, em outra região brasileira, com diferentes relações sociais e culturais, mas sob a pecha da escravidão e das violências decorrentes. O uso dos saberes ancestrais para lutar por liberdade, marcam a história de Zeferina. 

Em um espaço-tempo contemporâneo, convivemos com denúncias e violações semelhantes àquelas denunciadas e combatidas por Esperança e Zeferina. No Brasil de 2023, mulheres que, apesar de livres, permanecem igualmente vulneráveis: negras, pobres, exploradas no trabalho, sem segurança em seus lares localizados em favelas ou zonas periféricas, vítimas de violência doméstica e de perseguição por crença religiosa, entre outras vulnerabilidades. Na América Latina, recentemente, a vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, mulher negra vinda de uma região pobre do seu país, em seu juramento de posse no cargo acrescentou o compromisso de honrar seus antepassados e sua ancestralidade.  

Por ser atual e conter tantos elementos idênticos aos atos nefastos ainda hoje sofridos pelas mulheres, as lutas nada submissas de Esperança e Zeferina, em um contexto de violência institucionalizada e naturalizada contra pessoas negras escravizadas, teve grande impacto na reformulação da memória coletiva local e nacional, com fortalecimento do movimento negro e do feminismo das mulheres negras e com iniciativas em homenagem às pessoas que lutam por liberdade e justiça. Suas histórias inspiram a luta pela igualdade racial e de gênero no nosso país. 

Mais de uma década antes da instituição do dia 20 de novembro como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra,  pela Lei 12.519 de 2011, foi promulgada, em 1999, a lei piauiense que instituía o dia 6 de setembro, a data em que a carta de Esperança foi escrita, como o Dia Estadual da Consciência Negra. Outra iniciativa instigante foi a materialização de Esperança Garcia, de quem somente se conhecia a letra da carta e seu breve relato de maus tratos, por meio de uma escultura de barro em tamanho real que foi instalada na Central de Artesanato em Teresina. Além disso, a partir dos anos 2000, diversos coletivos e movimentos sociais em todo país passaram a conhecer a história de Esperança Garcia e a considerá-la símbolo de luta pelos direitos humanos, inclusive com a reivindicação de renomeação de espaços públicos com seu nome.

A memória e a vida de Zeferina percorreram trajetória diferente de Esperança Garcia, já que a transmissão oral de sua história, por gerações, não teve o impacto da descoberta da Carta escrita por Esperança, cuja materialidade permite saber a data da denúncia e exprime de forma objetiva o sentimento de indignação, além de valorizar o papel de autoridades e instituições no combate às mais graves violações.  No entanto, assim como Esperança, foi a pesquisa acadêmica que ressignificou sua memória. A dissertação "O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu" de Silvia Maria Silva Barbosa, de 2003, é um estudo que preenche lacunas sobre Zeferina. Nesse sentido, Karoline Nascimento Miranda destaca ser consenso entre os pesquisadores a dificuldade de "achar fontes sobre elas por elas mesmas - diários, registros, entrevistas" (MIRANDA, 2019). Quando há o recorte de gênero na pesquisa sobre escravidão, "tratar de mulheres negras - principalmente as escravizadas - ainda é procurar uma agulha no palheiro da historiografia" (MIRANDA, 2019, P.87). Maria Odila Dias, em artigo que analisa a invisibilidade das mulheres na urbanização incipiente da cidade de São Paulo, a partir do último quartel do século XVIII, destaca que a "quase totalidade das mulheres pobres de São Paulo neste período consiste de analfabetas e transparece dos documentos escritos de forma tangencial e indireta" (DIAS 1983:32).

A carta de Esperança, além da excepcionalidade de ser manuscrita por uma mulher negra no século XVIII, enquadra-se na categoria das fontes escritas que Maria Odila Dias entende necessário que os historiadores se debrucem, para encontrar "fragmentos de realidades diferentes, simultâneas, que se enredam e se eludem umas às outras (...)". No entanto, Maria Odila reconhece ser "difícil e tortuoso o desvendar desse quotidiano, que nem sequer corresponde aos tempos dos sinos da igreja; impõe muitas reflexões sobre as limitações das fontes escritas" (DIAS 1983:32). Nessa perspectiva, a oralidade na transmissão da história de Zeferina, pela comunidade local e mais próxima, merece atenção. Contar e recontar a resistência heróica de uma mulher líder e fundadora de um quilombo, além de desvendar (ou inventar) "um quotidiano", pode ter um poder reparador e de empoderamento para a geração presente, especialmente para as mulheres, que se sentem herdeiras da coragem de Zeferina.  

O lugar onde existia o Quilombo do Urubu, atualmente Parque São Bartolomeu, uma das últimas áreas verdes da cidade, localizado entre o bairro Pirajá e o Subúrbio Ferroviário de Salvador, no bairro de Periperi, é um local sagrado para o povo de santo. O local, no início dos anos 2010, ficou conhecido como Cidade de Plástico, por ser uma invasão com barracos feitos com pedaços de madeira que tinha no local e alguns pedaços de plástico. A maioria dos barracos eram sustentados por mulheres, que lá viviam com seus filhos. Elas relataram péssimas condições da habitação, de um calor terrível à falta de água e luz elétrica. Em 2018, o espaço que abrigava essas moradias foi revitalizado pela prefeitura, com a construção de um conjunto habitacional batizado de "Guerreira Zeferina". Após a inauguração do conjunto habitacional, foi lançado o documentário "Zeferinas: as guerreiras da vida", dirigido por Marcio Cavalcante. Nesse documentário, quatro moradoras falam de como se fortaleceram após terem a moradia no conjunto habitacional e reforçam sua identificação com Zeferina, no sentido de lutarem contra o que está posto, contra o racismo estrutural, contra a pobreza e a violência que as ronda e que lhes tira o sossego, por colocar em risco a vida de seus filhos.

As lutas de Esperança e de Zeferina são voltadas para a vida comunitária, um traço que também marcava a vida das mulheres pobres, no último quartel do século XVIII no Brasil, no contexto urbano de São Paulo, segundo pesquisa de Maria Odila Dias. Ao abordar a luta por sobrevivência das mulheres pobres, livres, forras e escravas nesse período, Maria Odila menciona a importância dos laços de vizinhança construídos e mantidos por mulheres, destacando que "o seu espaço social era justamente o ponto de interseção onde se alternavam e se sobrepunham a área de convívio das vizinhanças e dos forasteiros; a do fisco municipal e do pequeno comércio clandestino; as fímbrias da escravidão e do trabalho livre, o espaço do trabalho doméstico e de sua extensão ou comercialização pelas ruas" (DIAS 1983:32). 

O legado da vida comunitária caracteriza a luta contemporânea das mulheres negras, faveladas, indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (SANTANA 2020). Bianca Santana, em sua tese de doutorado, pondera que "é na comunidade que mulheres negras reproduzem suas vidas e resistem ao machismo, ao racismo, ao neoliberalismo, à pobreza" (SANTANA 2020). Em matéria publicada na Folha de São Paulo, em março de 2023, é abordada a importância das mulheres nas ocupações verticais promovidas pelo movimento sem teto em São Paulo. Segundo a matéria, além de coordenarem essas ocupações, as mulheres administram os conflitos, afastam os infiltrados e negociam avanços com o poder público. Este trabalho de gestão pelo coletivo pode ser visto como uma continuidade ou mesmo uma repetição do que fizeram outras mulheres, inclusive Zeferina e Esperança.

Espaços e tempos diversos, violações persistentes e um futuro de muita luta se descortinam neste 8 de março em que a igualdade de direitos é fratura presente entre o passado e o futuro das mulheres. 

Inês Virgínia Prado Soares

Inês Virgínia Prado Soares

Desembargadora Federal no TRF da 3ª Região - SP. Mestre e doutora em Direito pela PUC/SP. Pós-doutora no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Sanitário pela UnB.

Melina Girardi Fachin

Melina Girardi Fachin

Advogada e professora adjunta dos cursos de graduação e pós graduação da UFPR.

Fachin Advogados Associados Fachin Advogados Associados

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