STF precisa reconhecer racismo estrutural nas abordagens policiais
O STF retomará nesta quarta-feira, 8, o julgamento do HC 208.240/SP, em que discute o tema do perfilamento racial nas abordagens policiais.
terça-feira, 7 de março de 2023
Atualizado às 18:04
O STF retomará nesta quarta-feira, 8, o julgamento do HC 208.240/SP, em que discute o tema do perfilamento racial nas abordagens policiais. Em síntese, discute-se a nulidade das abordagens policiais por "fundada suspeita" de prática de crimes, do art. 244 do CPP, que historicamente tem sido praticada com mais abordagem de pessoas negras do que pessoas brancas, considerando-se as mesmas situações.
Um julgamento em que se esperava uma votação tranquila para impor requisitos objetivos para tal fim, justificados por escrito pela autoridade policial após a prática da abordagem para permitir seu controle, como já decidiu o STJ, parece estar tomando um caminho surpreendentemente inesperado para um Tribunal com tantas decisões em favor de minorias em geral e contra o racismo estrutural, em particular.
Isso porque o placar está 3x1 contra a concessão da ordem de habeas corpus. Os ministros André Mendonça, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, embora reconhecendo o racismo estrutural nas abordagens policiais em geral e a nulidade das abordagens a pessoas negras, não veem esse problema em um caso concreto, no qual dois policiais destacaram ter abordado um "homem negro". Os agentes avistaram, em conhecido ponto de drogas, um "indivíduo de cor negra", de acordo com um deles, um "indivíduo negro", conforme o outro. Os agentes de segurança colocaram tanto acento na cor negra do agente abordado que o único outro elemento em destaque nos autos se referiu a cor de um veículo no local dos fatos, mais nada. Como se vê, destacaram a cor de pele do homem abordado, o que notoriamente não ocorre quando o indivíduo tem "cor branca".
Os votos da dissidência parecem entender que o elemento objetivo para justificar a abordagem no caso teria sido o local ser conhecido como ponto de drogas, com carro parado na frente do pedestre, em dinâmica que entenderam típica do crime de tráfico. Contudo, não enfrentaram a argumentação do ministro Fachin (relator, por enquanto vencido) no sentido de que casas noturnas de bairros ditos nobres, conhecidas como locais de tráfico e consumo de drogas, não geram essa abordagem. Daí a prova de que os procedimentos policiais de abordagem se dão por racismo (e por classismo) estrutural.
Como destacado pelo defensor público que representou o paciente em sua sustentação oral, não se pode esperar um caso onde se diga explicitamente que se está indo abordar um homem apenas por ser negro, quando ele destacou que "não podemos cair na ingenuidade de que isso vai cair em uma situação explícita, porque nós estamos diante de práticas sutis, mas que são práticas de desvalor construídas historicamente em desfavor da população negra. Não foi inocente a menção do policial do paciente como negro, mas sim uma expressão inconsciente, mas arraigada no seu comportamento, latente e enraizada na entranha das atuações estatais, internalizada e verbalizada sob o manto de uma suposta imunidade".
Essa crítica foi feita também pelo Prof. Wallace Corbo em seu Twitter. Por isso, os amici curiae IDAFRO e GADvS, representados pela advogada Silvia Souza e pelos advogados Hédio Silva Jr. e Paulo Iotti, apresentaram memorial explicando que a posição da dissidência parece acreditar que só haveria perfilamento racial em casos de racismo direto (intencional), fechando os olhos para a discriminação racial indireta (não-intencional, mas decorrente de práticas com efeito discriminatório desproporcional a minorias sociais, no caso, pessoas negras e travestis, notadamente). O IDAFRO é o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras e o GADvS é o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. O memorial foi coassinado pela advogada Isabela Cristine Dario e pelos advogados Anivaldo dos Anjos Filho, Antonio Basílio Filho e Jáder Freire de Macedo Júnior, integrantes do IDAFRO.
O memorial está absolutamente certo quando diz estar equivocado o min. Alexandre de Moraes quando vinculou o perfilamento racial ao crime de racismo, por este supor dolo para sua configuração enquanto aquele pode ser praticado pela forma da discriminação indireta. Não se pode confundir o racismo enquanto crime (fato típico, antijurídico e culpável) com o racismo em sentido mais amplo. Ou seja, práticas com efeitos racistas, ainda que não intencionais, podem e devem gerar a nulidade da abordagem e das provas dela decorrentes (teoria dos frutos da árvore envenenada), sem que isso gere necessariamente crime de racismo.
Isso se justifica até mesmo pelo famoso princípio in dubio pro reo, pelo qual a dúvida deve sempre ser interpretada em favor da defesa e, neste caso, em prol da concessão da ordem de habeas corpus. Ora, se uma prática que gera abordagem em pessoas negras não se repete em pessoas brancas, então há razão suficiente para crer no perfilamento racial e, assim, na ausência de justa causa legitimadora da interpelação policial em questão. Uma análise do tema com lentes garantistas é mais que suficiente para justificar essa conclusão.
Então, estamos de acordo com os amici curiae em prol da evidente caracterização do perfilamento racial neste caso concreto do HC 208.240/SP porque, como mencionado, os agentes de segurança colocaram tanto acento na cor negra do agente abordado que o único outro elemento em destaque nos autos se referiu a cor de um veículo no local dos fatos, mais nada.
Por fim, pontuamos que a não-concessão do habeas corpus passará uma assustadora mensagem às pessoas negras e demais grupos sociais vítimas de abordagens discriminatórias. Espera-se que o STF tenha uma decisão garantista que não gere esse efeito.
João Paulo Martinelli
Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Advogado criminalista. Professor do IBMEC-SP.