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O que nos espera após a ADPF 828? O cenário dos despejos no Brasil

Torna-se latente a necessidade dos jurisdicionados da atuação do Congresso Nacional na elaboração de um modelo de transição que garanta segurança jurídica na judicialização da temática.

terça-feira, 7 de março de 2023

Atualizado às 07:52

É sabido que, em 18 de outubro de 1991, entrou em vigor a lei Federal 8.245, comumente conhecida como "Lei do Inquilinato". Desde a sua criação, a legislação tem servido de base à redação de cláusulas nos contratos de arrendamento de imóveis urbanos, residenciais e não residenciais em todo o território brasileiro. Afinal, seu principal objetivo é garantir a regulamentação dos papéis de todos os envolvidos no processo de locação de bens imóveis, a partir do comprometimento das partes com obrigações. A partir da regularização, nasce a garantia de direitos, tanto para o locatário como para o locador, bem como dos agentes imobiliários que realizam mediação dos contratos.

Segundo a doutrinadora civilista Maria Helena Diniz (2006), o contrato de locação pode ser definido como: "contrato pelo qual uma das partes, mediante remuneração paga pela outra, se compromete a fornecer-lhe, durante certo lapso de tempo, uso e gozo de uma coisa infungível". Assim, apreende-se que o objeto da locação é, portanto, o uso temporário da coisa mediante remuneração, mas, como em qualquer contrato, deve ser lícito para ser considerado válido. Nesse sentido, verifica-se a importância da formalização do contrato de locação como meio de garantia dos direitos do proprietário do imóvel, bem como os interesses do inquilino.

Haja vista a necessidade de cumprimento dos trâmites da lei em comento para garantir a presença de segurança jurídica, é latente que a norma acompanhe a constante transformação da sociedade atual. Inclusive, fruto de tais mudanças sociais, é promulgada a lei 12.112, de 9 de dezembro de 2009, a qual alterou, em parte, a lei 8.245, de 18 de outubro de 1991.

As alterações ocorridas, através da vigência lei 12.112/09, permitiram o aperfeiçoamento da Lei de Locação (8.245/91). Afinal, a lei originária já vigorava por quinze anos, sendo anterior até mesmo ao Código Civil Brasileiro de 2002.

O principal impacto da publicação da nova norma foi percebido na relação entre locador e locatário. O tema fomenta discussão: há quem defenda que a parte mais beneficiada foram os inquilinos, tendo em vista a diminuição de exigências para locar. Com os novos ditames, por exemplo, os locadores passaram a não terem mais obrigatoriedade de pagamento antecipado da renda e inexigibilidade de fiador e de contrato de seguro. Em contrapartida, há quem advogue que os maiores vencedores foram os proprietários, já que ganharam a prerrogativa de despejo imediato com base em decisão judicial e, assim, maior celeridade na prestação jurisdicional referente ao atendimento de suas demandas.

Não foi a única vez que a lei em comento foi pauta pública de debate no cenário brasileiro. Poucos meses após a decretação da pandemia do Covid-19 no Brasil pelo Estado, a Lei do Inquilinato voltou fortemente à pauta. Isso porque, com a necessidade de discutir os efeitos da pandemia no mercado imobiliário. É indiscutível que o aumento do desemprego à época1 impactou diretamente na capacidade contributiva da população brasileira, questão que reverbera diretamente no pagamento tempestivo do aluguel.

Historicamente, o Brasil enfrenta desigualdades no respeito ao direito à moradia, em 2019, já era estimado um déficit habitacional de mais de 5.8 milhões de moradias (dados do MDR/20192). O prognóstico passou a piorar consideravelmente com mais de 13% da população desempregada (IBGE 07/20). Afinal, se muitas pessoas tiveram diminuição de fontes de renda, é inconteste o reflexo no devido pagamento dos aluguéis, tanto comerciais, como residenciais.

Diante desse contexto, o Congresso sancionou a lei 14.010/20, a qual proibiu o despejo coletivo dos inquilinos até 30 de outubro de 2020, com embasamento na pandemia e dos abalos econômicos sofridos por toda a população.

Ainda que decurso o prazo de vigência da nova norma, no entanto, o assunto continuou a ser discutido pelas autoridades nacionais, tendo em vista a continuidade das dificuldades econômicas sofridas em decorrência ao vírus. Então, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei (PL) 827/20, convertido na lei 14.216/21, a qual expandiu o prazo previsto para a proibição de despejos até o fim de 2021.

O judiciário, acompanhando o cenário social fruto do precário enfrentamento à pandemia no Brasil3, o Supremo Tribunal Federal (STF), prorrogou, até 31 de março de 2022, a suspensão de despejos e desocupações coletivas, para áreas urbanas e rurais, consoante a decisão do relator da ADPF 828. Após, em 30/6/22, o prazo foi novamente ampliado por meio de decisão liminar até 31 de outubro de 2022.

A ADPF 828 teve como decisão final o estabelecimento de um regime de transição que abriu espaços para controvérsias e falta de segurança jurídica nos tribunais pátrios. A Suprema Corte ordenou a criação de comissões de conflitos fundiários para os Tribunais, a fim de que essas elaborassem um plano de retomada da execução de decisões de despejo suspensas. Ressalta-se que a situação dos despejos individuais de inquilinos não sofreu quaisquer alterações durante esse imbróglio judicial.

Estabeleceu-se, também, a necessidade de inspeções judiciais e audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários, como participação do Ministério Público e da Defensoria Pública e, quando pertinente, a presença dos órgãos responsáveis pela política agrária e urbana.

A decisão em referência faz menção a categoria de desocupação de pessoas vulneráveis, de forma que foram estabelecidos pressupostos para os despejos que as envolvam4. Por fim, o Tribunal referendou, ainda, a medida concedida, a fim de que possa haver a imediata retomada do regime legal para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo (lei 8.245/91, art. 59, §1º,incs. I, II, V, VII, VIII e IX).

Em razão da carência de determinação, pelo STF, de critérios objetivos no regime de transição, a continuidade da proibição dos despejos coletivos permanece uma questão legislativa de interesse nacional. Há, inclusive, projeto de lei (PL 1.718/22) apresentado com a intenção de prorrogar a medida até 31 de março de 2023. Até o momento, há apenas a autorização da Suprema Corte para a retomada do regime legal para ações de despejo em caso de locações individuais.

Uma das maiores dificuldades para discutir a questão é que são escassos os estudos no impacto, para a economia, dessas modificações legislativas. Como acontece com todas as alterações do ordenamento pátrio, é preciso que seja avaliado o comportamento da jurisprudência, no que diz respeito à interpretação das normas legais que vigoraram, e como isso afetou o poder especulativo do mercado imobiliário e a população interessada.

Em razão de todos esses fatores, torna-se latente a necessidade dos jurisdicionados da atuação do Congresso Nacional na elaboração de um modelo de transição que garanta segurança jurídica na judicialização da temática. Afinal, somente quando o Direito se adequa aos contornos da sociedade brasileira, é que se torna possível um diálogo igualitário do judiciário com as novas realidades dos seus jurisdicionados.

Sem isso, locadores e locatários ficam sem quaisquer expectativas de quais de seus direitos serão protegidos ao buscarem o acesso à justiça, ou seja, um prelúdio de futuro de possíveis e, por óbvio, injustas arbitrariedades de um judiciário que assume o papel de legislador.

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1 Disponível em: https://static.poder360.com.br/2022/01/pnad-apresentaca-novembro-2021.pdf;

2 Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/04/deficit-habitacional-do-brasil-cresceu-e-chegou-a-5 876-milhoes-de-moradias-em-2019-diz-estudo.ghtml;

3 Disponível em: https://doi.org/10.32361/2021130312630;

 

4 "(i) ser realizadas mediante a ciência prévia e oitiva dos representantes das comunidades afetadas;

(ii) ser antecedidas de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida; (iii) garantir o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos (ou local com condições dignas) ou adotar outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família." Decisão do Plenário do STF, Sessão Virtual Extraordinária de 1/11/22 (18h00) - 2/11/22 (17h59).

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CAPANEMA, Silvio de Souza. A Lei do Inquilinato Comentada - Artigo por Artigo", 2021.

DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. 2006.

FARINELI, Alexsandro Menezes; BONFIM, Cleidiane Araújo F. Mendes.Comentários e Prática da Nova Lei de Locação. Leme/SP: Mundo Jurídico,2010.

JUBILUT, L. L. .; SANTOS, C. de S.; PUCCINELLI, S. M. M. A COVID-19 como

Desastre a partir da perspectiva do Direito Humanitário. Revista de Direito, [S. l.], v. 13, n. 03, p. 01-28, 2021. DOI: 10.32361/2021130312630. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/revistadir/article/view/12630. Acesso em: 10 fev. 2023.

SANTOS, Gildo dos. Locação e despejo: comentários à Lei 8.245/91. 5. ed.São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2004

Rebeka Maria Barros de Almeida

Rebeka Maria Barros de Almeida

Colaboradora no escritório Renato Melquíades Advocacia.

Sarah Vieira Rodrigues

Sarah Vieira Rodrigues

Advogada da Área Cível Empresarial de Renato Melquíades Advocacia, pós-graduanda em Direito Empresarial pela Faculdade Getúlio Vargas.

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