Emenda 54 à MP 1.154/23 e a independência das agências reguladoras. Sistema regulatório posto em xeque?
É coerente a preocupação das agências reguladoras e de seus regulados com a possível aprovação da Emenda 54 do deputado.
sexta-feira, 3 de março de 2023
Atualizado às 09:04
As agências reguladoras surgem como uma nova forma de instrumento de atuação do Estado no domínio econômico. Sua principal característica é sua independência, seja ela a política de seus dirigentes, a técnica e decisória, a gerencial, orçamentária e financeira ou a normativa.
A independência normativa, tema central deste artigo, poderá ser relativizada ante a edição da emenda 54 à MP 1.154/23, proposta pelo do deputado Danilo Forte (União/CE). A citada MP objetiva conferir ao Governo os arranjos institucionais adequados para uma gestão pública eficiente, eficaz, efetiva e inovadora, voltada à geração de valor público e à redução das desigualdades.
Nesse sentido, buscou-se analisar as correntes doutrinárias acerca da independência normativa das agências reguladoras, de modo a permitir um melhor entendimento das possíveis consequências decorrentes da edição da emenda 54 à MP 1.154/23.
Introdução
A qualidade da prestação dos serviços de infraestrutura afeta diretamente a produtividade, custos e competitividade do mercado, sendo, portanto, essencial para o seu desenvolvimento. Nesse sentido, desde o início dos anos 90, o setor privado, na carência de investimentos do setor público, veio se tornando peça fundamental para o avanço da prestação dos serviços e da infraestrutura pública do país.
Assim, na segunda metade da década de 90, o Brasil começou sua transição de um Estado intervencionista para um Estado regulador (MAJONE, 1998), mudança esta que já vinha sendo vista em países da Europa e da América Latina. Essa mudança é definida ante a três grandes características: (i) o início de grandes privatizações de empresas estatais; (ii) a transferência dos serviços públicos para empresas privadas; e a (iii) criação de agências reguladoras. (VIEIRA, GOMES e FILHO, 2019).
Diante desse contexto, as agências reguladoras surgem como uma nova forma de instrumento de atuação do Estado no domínio econômico, portanto, são suas principais atribuições a (i) defesa dos consumidores contra abusos das empresas privadas; (ii) guardar as empresas privadas contra possíveis excessos dos governo; (iii) fomentar a economia; (iv) garantir a efetividade e continuidade dos serviços prestados; e (v) guardar pelo fiel cumprimento dos contratos celebrados com a administração pública (MAJONE 1998, e VIEIRA, GOMES e FILHO, 2019).
Independência das agências reguladoras
Em razão das suas atribuições é essencial que as agências reguladoras tenham sempre resguardada a sua principal característica: a independência, seja ela a política de seus dirigentes, a técnica e decisória, a gerencial, orçamentária, financeira e a normativa.
A independência política (ou orgânica) está relacionada à separação da tomada de decisão de seus dirigentes em relação aos atos praticados pela Administração Direta. Nesse sentido, busca-se que as decisões tomadas pelo órgão regulador não estejam vinculadas ao governo ou ao agente regulado, isto é, busca-se uma total isenção do órgão fiscalizador. (LIMA, 2018)
A independência técnica e decisória da agência reguladora está vinculada ao caráter final de suas decisões, ou seja, a decisão proferida em caráter final no âmbito da agência reguladora não está sujeita a qualquer controle hierárquico, não cabendo, desta forma, recurso hierárquicos ao chefe do executivo ou ao comandante da pasta governamental a qual a agência reguladora está vinculada (SILVA, 2015).
A independência gerencial está relacionada à escolha dos objetivos buscados pelo órgão regulador. A independência financeira-orçamentária, por sua vez, está relacionada à existência de um orçamento próprio, desvinculado da administração direta. (LIMA, 2018)
Por fim, tem-se a independência normativa a qual se relaciona com a capacidade normativa das agências reguladoras. Esta independência atribuída ao ente regulador sempre foi alvo de críticas de uma parte minoritária da doutrina e da jurisprudência e hoje poderá ser relativizada ante a edição da emenda 54 à MP 1.154/23, proposta pelo do deputado Danilo Forte (União/CE)
Emenda 54 à MP 1.154/23 - Sistema regulatório posto em xeque?
A Emenda 54 à MP 1.154/23, dentre outras coisas, visa transferir a competência normativa das Agências Reguladoras Federais para Conselhos externos. Tais conselhos serão compostos por membros do Ministério em que a agência reguladora estará vinculada; membros da própria agência reguladora, membros dos setores regulados, membros da academia e consumidores.
A justificativa para a edição do texto legal afirma que seu intuito é "[R]egular, deslegalizar e editar atos normativos infralegais, ou seja, toda a atividade normativa, terá' que haver a interação entre representantes do Ministério, das Agências, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores, garantindo o controle e a vigilância de um poder sobre o outro em relação ao cumprimento dos deveres constitucionais."
Pode-se dizer, assim, que a ideia da edição da MP perpassa ao aumento da legitimidade democrática das decisões que são proferidas no âmbito das agências reguladoras. Um exemplo deste caminho na busca pela legitimidade democrática ocorreu, por exemplo, no CARF. O CARF, órgão que julga os lançamentos tributários, em sua origem, era composto apenas por autoridades administrativas. Com o tempo, buscando um julgamento mais democrático e uma paridade nas decisões, o órgão passou a ser misto, isto é, passou a ser composto por membros da administração e por representantes privados.
Nesse sentido, a emenda à MP, busca que as decisões das agências reguladoras não levem em conta "o setor pelo setor", buscando, apenas, o tecnicismo, mas busquem também o equilíbrio com os interesses do poder executivo, dos consumidores e dos regulados que também irão compor o Conselho.
Ocorre que, como anteriormente exposto, as agências reguladoras surgem com o intuito de retirar do Estado o poder direto sobre a intervenção do domínio econômico, de modo que, as fiscalizações e edições normativas fossem despolitizadas e, consequentemente, fossem realizadas por quem detém o conhecimento técnico necessário para tanto.
Nesse sentido, a regulação presume uma atuação normativa efetiva, de modo que a agência reguladora tem liberdade de produção normativa acerca do setor regulado. Esse poder normativo das agências reguladoras é decorrente da própria legislação que as instituíram. Nesse sentido, nas palavras de Boockman Moreira e Caggiano (2013), este "dever-poder normativo atribuído às agências, portanto, decorre de autorização legal e nada obstante os atos dele decorrentes deterem força normativa, isto não significa que estejam num mesmo nível hierárquico de lei. Os regulamentos da agência reguladora são norma, e por isso vinculam os agentes regulados. Contudo, visam cumprir a lei - e não a substituir".
Esse entendimento é chancelado pelo STJ que sustenta, juntamente com a doutrina majoritária1, a constitucionalidade do poder normativo2 das Agências Reguladoras, desde que respeitem os parâmetros estabelecidos em suas leis. O fundamento disso estaria no fenômeno da deslegalização ou delegificação3.
Por outro lado, o Deputado Relator da proposta justifica que não se pode permitir que as agências reguladoras usurpem a competência legislativa do Poder Legislativo e Executivo, sustentando, de forma transversa, a inconstitucionalidade do poder normativo das Agências.
Vale dizer que o entendimento do deputado, em que pese minoritário, é sustentado por grandes nomes do direito administrativo. Celso Antonio e Marçal Justen Filho afirmam que as Agências Reguladoras, como qualquer autarquia, só poderiam editar normas de organização interna. Logo, o poder normativo das Agências Reguladoras seria inconstitucional por violar, sobretudo, o princípio da legalidade e o princípio da separação dos poderes, pois só lei poderia criar direitos e deveres (e não um ato administrativo do poder executivo).
Ocorre que, conforme já pontuado, o poder normativo das agências reguladoras é decorrente da própria legislação que as instituíram. Daí porque, não é verdade que as agências reguladoras estão usurpando a competência legislativa do Poder Legislativo. O poder normativo das agências não se confunde com o poder legislativo do Poder Legislativo. Em verdade, se complementam, já que as normas editadas pelos órgãos reguladores são, em sua maioria, de caráter técnico e, deste modo, se afastam do viés político.
Por este motivo, é coerente a preocupação das agências reguladoras e de seus regulados com a possível aprovação da Emenda 54 do deputado Danilo Forte (União/CE) à MP 1.154/23. A proposta legislativa, em verdade, vai de encontro com arcabouço doutrinário majoritário sobre o tema. Em verdade, é um posicionamento amplamente defendido que é necessário que se evite que as agências reguladoras sejam apropriadas por poderes políticos (Spiller e Tommasi 2003).
Conclusão
Assim, sendo, indiscutivelmente premissa básica de credibilidade do sistema regulatório brasileiro a independência das agências reguladoras em relação às autoridades políticas (poder executivo e legislativo) de modo que esta regra é fundamental para a consolidação e crescimento da regulação no país, e consequentemente, o desenvolvimento econômico, a aprovação da emenda 54, põe em xeque não só independência das agências reguladoras e credibilidade regulatória brasileira, mas também, e principalmente, os investimentos econômicos em infraestrutura no Brasil.
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1 Diogo de Figueiredo, Carvalhinho, Alexandre Santos Aragão, Rafael Oliveira, Marcos Juruena.
2 Binenbojm (2006, p. 260), sintetiza muito bem o motivo pelo qual agências reguladoras devem possuir independência normativa: "Dado o amplo grau de generalidade e abstração característico das leis de criação das agências (as chamadas broad delegations, como referidas na literatura publicista norte-americana), estas últimas são investidas de grande autonomia normativa, do que decorre, por inevitável imposição prática, a elaboração de normas jurídicas em caráter primário. A produção de normas com aptidão para inovar no ordenamento jurídico, criando direitos e obrigações, constituiria, assim, segundo parcela significativa da doutrina nacional e alienígena, autêntica nota característica das agências reguladoras".
3 Deslegalização é a retirada, pelo próprio legislador, de determinada matéria do domínio da lei, transferindo-a para o domínio do ato administrativo.
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BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria de Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro. Renovar, 2006;
BOCKMANN MOREI, EGON. CONRADO CAGGIANO, HELOÍSA. O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NA JURISPRUDÊNCIA DO STF - MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE? Revista de Direito Público da Economia - RDPE Belo Horizonte, ano 11, n. 43, jul. / set. 2013 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital.
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Bruna Ammon Lisboa
Advogada do escritório Silveira Ribeiro Advogados.