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A justiça (não gratuita) do trabalho

Sobre o acesso à Justiça na Constituição Federal. Ingresso gratuito em juízo.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Atualizado às 08:31

O acesso à justiça é essencial ao estado de direito, para garantir que lesão ou ameaça a direito não seja excluída da apreciação do Poder Judiciário. A Constituição estabelece garantias fundamentais à efetividade do acesso à justiça, inclusive quanto ao ingresso da parte em juízo. Dessa forma, assegura no art. 5º, inciso LXXIV, que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (destaques).

A assistência jurídica gratuita tem evidente relevância social na Constituição, na medida em que no Capítulo "Das funções essenciais da Justiça", a Defensoria Pública é reconhecida como "expressão e instrumento do regime democrático" e destinada "de forma integral e gratuita, aos necessitados" (destaques). E, por isso, em etapa prévia à prestação da assistência, é analisada a vulnerabilidade do usuário do serviço, o que evita o abuso de direito.

O mesmo deve ser aplicado à cobrança das taxas judiciárias, visto que, se excessivas, podem inviabilizar o acesso à justiça aos necessitados - aqueles que comprovem a condição de vulnerabilidade e a lesão ou ameaça a direitos. Por outro lado, se as custas arrecadadas forem insuficientes, o acesso à justiça será concedido de forma injusta aos cofres públicos e à sociedade.

"Todo processo deve dar a quem tem direito tudo aquilo e precisamente aquilo que tem direito de obter"1 (destaques). Por isso o texto constitucional exige a comprovação da insuficiência de recursos, não bastando a mera alegação, pois o processo deve dar "precisamente aquilo" o que o autor e o réu têm direito, bem como seus patronos e a sociedade, que financia parte dos custos de processamento dos litígios e deve ser protegida do abuso de direito e da má-fé.

O financiamento da Justiça

O Conselho Nacional de Justiça divulgou o "Diagnóstico das Custas Processuais Praticadas nos Tribunais", elaborado por seu Departamento de Pesquisas Judiciárias em 2019, com a participação de Grupo de Trabalho criado com objetivo de promover ações de ampliação do acesso à justiça e aperfeiçoar o regime de custas, taxas e despesas judiciais.

Referido relatório fixa premissas relevantes do estudo e diagnóstico:

Ao CNJ incumbe também a missão de zelar pela prestação jurisdicional eficiente e eficaz, apta a cumprir a garantia constitucional do amplo acesso à justiça. Nesse contexto, assume relevância o fator das custas judiciais e das taxas judiciárias, as quais possuem natureza tributária, bem como as despesas processuais.

As custas judiciais possuem dupla função. A primeira função é ser fonte de recursos financeiros destinados a custear a prestação de serviço jurisdicional. A segunda, desempenhar papel educativo, na medida em que a cobrança, a depender dos valores, pode mitigar o abuso do direito de acesso ao Judiciário.

Tais funções devem atuar em harmonia no Sistema Judiciário, a fim de que custas, taxas e despesas processuais não configurem nem óbice ao acesso à Justiça nem estímulo à litigância excessiva, em consonância com o entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante n. 667, segundo o qual "viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa".2

A despeito da função primária de custear a prestação da atividade jurisdicional, os recursos arrecadados para o custeio do Poder Judiciário são insuficientes, de modo que é necessário o financiamento misto da prestação, cabendo elevado ônus à sociedade.

A arrecadação de custas, taxas e emolumentos, em 2021, foi equivalente a 19,8% (R$ 14,5 bilhões), em face do custo total de R$ 103,9 bilhões com o funcionamento do Judiciário. Somadas às demais receitas (como impostos e execuções), houve cobertura de 71% das despesas, ou seja, R$ 73,42 bilhões, resultando em R$ 30,48 bilhões de déficit.3

A Justiça do Trabalho é responsável pela arrecadação de apenas 6,6% desses recursos. No entanto, o teto das condenações no pagamento de custas é limitado a quatro vezes o valor máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), atualmente R$ 28.348,88, ainda que o usuário da Justiça ostente condições financeiras.

Além disso, diferente das Justiças Estadual e Federal, bem como ações de competência originárias de Tribunais Superiores, a Justiça do Trabalho não tem previsão de cobrança de custas iniciais. Essa sistemática, que diz respeito à função secundária das custas, de coibir abuso do direito de acesso ao Judiciário, também pode ajudar a explicar a insuficiência de arrecadação.

A ausência das custas iniciais gera onerosidade aos cofres públicos e à sociedade, além de desequilíbrio no tratamento das partes, dado que os demandantes sequer precisam comprovar, de início, a insuficiência de recursos e, no entanto, os demandados, para interposição de recurso, precisam pagar as custas e depósitos recursais para acesso ao duplo grau de jurisdição.

Vale contrapor que o Brasil atingiu o número de 19,8 milhões de pessoas pobres, conforme a 9ª edição do "Boletim Desigualdade nas Metrópoles",4 sendo que a taxa de pobreza subiu de 16%, em 2014, para 23,7%, em 20215. A extrema pobreza (pessoas que vivem com até R$ 160,00) aumentou de 2,7% para 6,3% no mesmo período. Não se ignora que o aumento da pobreza justifique a necessidade de assistência judiciária gratuita, no entanto, preocupa a concessão de forma indiscriminada, sem a devida comprovação da vulnerabilidade, o que onera a sociedade imersa em altas taxas de pobreza.

Assim, é imprescindível a criação de etapa inicial de acesso à justiça de forma gratuita, assim como ocorre nas Defensorias com a assistência jurídica gratuita, isentando de custas apenas aquele que comprovar a falta de condições de arcar com as custas, taxas e despesas judiciais. O jurisdicionado que não comprovar esta condição está apto a custear a prestação da atividade jurisdicional, inclusive mediante o pagamento de custas iniciais.

O regramento para concessão de justiça gratuita e o entendimento jurisprudencial.

Além da previsão constitucional, prevalecente em face da lei infraconstitucional, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estipula o critério objetivo para a concessão da justiça gratuita (art. 790, §3º da CLT), qual seja: percepção do salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), portanto, o que deve ser objeto de comprovação (conforme ratifica o §4º do mesmo artigo).

O critério objetivo apontado viabiliza a etapa prévia de concessão da justiça gratuita, na medida em que o próprio Poder Judiciário detém de ferramentas para a ágil obtenção da informação6 e avaliação para a concessão do benefício - o que possivelmente aumentará a arrecadação de custas, contribuindo para a redução de injustiças processuais e desigualdades e sociais.

Cumpre reforçar que esse critério foi reformulado pela Lei 13.467/2017, que deixou de admitir a mera declaração da falta de condições de pagar as custas processuais como condição alternativa ao critério objetivo para concessão da gratuidade (que era de "salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal").

No entanto, em linha diversa trilhou o entendimento da Seção de Dissídios Individuais 1 (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que em decisão recente (E-RR-415-09.2020.5.06.0351, Rel. Min. Lelio Bentes Correa, DEJT 07/10/2022) estabeleceu que: "a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 13.467/2017 não fez incluir no texto consolidado a forma pela qual se deve dar a comprovação da insuficiência de recursos para fins da concessão do benefício. Assim, têm aplicação subsidiária e supletiva as disposições contidas na legislação processual civil. Conforme se extrai dos artigos 99, § 3º, do Código de Processo Civil e 1º da Lei n.º 7.115/1983, a declaração de hipossuficiência econômica firmada por pessoa natural ou por seu procurador regularmente constituído revela-se suficiente para fins de comprovação da incapacidade de suportar o pagamento das despesas do processo. Conclui-se, portanto, que (.) para a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa natural, basta a declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte ou por seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim (art. 105 do CPC de 2015)" (destaques). 

A CLT prevê, como já apontado, regramento expresso quanto à declaração de hipossuficiência. Mas, ainda que se admita a aplicação supletiva do Código de Processo Civil (CPC), a declaração de hipossuficiência deve ser aceita apenas como indício de prova, uma vez que o § 2º do art. 99 assegura: "O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos" (destaques). Ou seja, mesmo na legislação processual civil a comprovação é essencial. 

A declaração que atesta a vulnerabilidade gerará, no máximo, presunção relativa, passível de desconstituição, sendo que a falsa declaração importa em má-fé, com a consequência do pagamento de multa sobre o valor corrigido da causa, indenização à parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e pagamento de honorários advocatícios e demais despesas (art. 793-C da CLT). 

A aplicação das sanções em hipótese de má-fé, porém, não repara integralmente os danos causados, especialmente em ações infundadas. Ainda que seja feito o pagamento das custas e ressarcido o réu, a tramitação de ações infundadas acaba por assoberbar o Poder Judiciário e impactar o tempo de duração dos processos, prejudicando os demais jurisdicionados. 

Aliás, o tema do acesso à justiça e o risco lides infundadas ou oportunistas deve gerar ainda mais cautela no processo do trabalho brasileiro, que apresenta prazos prescricionais extensos para a propositura de ações trabalhistas. 

Enquanto a prescrição para o ajuizamento de demandas trabalhistas no Brasil é de 2 (dois) anos, o prazo em Portugal é, no máximo de 1 (um) ano, sendo de 6 (seis) meses para Ação de impugnação do despedimento coletivo e 60 (sessenta) dias para Ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento (Código do Trabalho - CT, Lei 7/2009). Na Polônia, o prazo para discutir a dispensa é de 21 dias (Código do Trabalho) e, na Espanha, 20 dias (Código do Trabalho e da Seguridade Social). 

O acesso ao Judiciário não pode ser subvertido a ponto de inviabilizar a justiça. Portanto, é reforçada a importância da revisão da sistemática de enfrentamento do tema nas cortes ordinárias, que admitem o revolvimento de fatos e provas, sendo imprescindível a ampla produção probatória, para a qual o advogado também tem legitimidade e interesse processual para requerer, especialmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADIn 5.766 (Plenário, julgamento concluído em 20/10/2021). 

Conclusão

O acesso à justiça é pilar do estado democrático de direito, por garantir a aplicação da legislação pátria, aprovada de forma legítima pelo Poder competente, em hipótese de ameaça de direito ou efetiva lesão. Em vista de sua importância, há garantias constitucionais para a efetividade do acesso à justiça, que devem ser observadas com a mesma relevância. 

Assim, a concessão da justiça gratuita deve seguir a mesma sistemática da prestação da assistência jurídica gratuita: a prévia comprovação da insuficiência de recursos, não bastando a mera declaração como meio de prova. 

Caso não seja comprovada a insuficiência de recursos, não há estado de vulnerabilidade para justificar a falta de cobrança de custas iniciais, pois o jurisdicionado não suportará entrave ao acesso ao Judiciário. 

Por outro lado, é imperioso evitar o abuso do direito de acesso à Justiça e a má-fé, pois o manejo infundado de ações judiciais importa em custos aos cofres públicos e à sociedade, que suporta parcela relevante do funcionamento do Judiciário. Em 2021, esses custos corresponderam a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional; ou 9,64% dos gastos da União, estados, municípios e Distrito Federal. Em última análise, as despesas com a prestação do serviço jurisdicional importam em R$ 489,91 por habitante do País.7

Há impacto também no aumento no tempo de tramitação dos processos, prejudicando jurisdicionados com direitos efetivamente lesados ou ameaçados; prejuízo à verba alimentar de advogados; e despesas por parte do réu demandado de forma indevida, que além de suportar despesas para sua defesa (na maioria das vezes não ressarcidas), enfrenta custos indiretos, tais como o provisionamento de ações e deslocamento de representantes para realização de atos processuais. Todos esses aspectos não se coadunam com o (justo) acesso à justiça.

_______________

1 Cintra, Antonio Carlos de Araújo. Grinover, Ada Pellegrini. Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 23ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 41.

2 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/11/relatorio_custas_processuais20 19.pdf, pág. 7.

3 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/11/justica-em-numeros-2022.pdf

4 Disponível em: https://www.pucrs.br/datasocial/wp-content/uploads/sites/300/2022/10/2022_10_18-propesq-data_social-boletim_desigualdade_nas_metropoles-no_09.pdf . Edição especial: dados anuais (2012-2021).

5 https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/08/08/pobreza-chega-a-quase-20-milhoes-de-pessoas-nas-metropoles-brasileiras-aponta-estudo.ghtml

6 O CNJ disponibiliza ao Magistrado ferramentas de busca patrimonial. O recentemente lançado e noticiado Sniper, por exemplo, tem âmbito nacional e não importa em custos aos Tribunais. A ferramenta é uma das iniciativas do Programa Justiça 4.0, que visa a acelerar a transformação digital do Poder Judiciário brasileiro. Sobre o Sniper: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/sniper/ .

7 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/11/justica-em-numeros-2022.pdf

Rebecca Mazzuchelli Cid Pena de Moraes

Rebecca Mazzuchelli Cid Pena de Moraes

Superintendente jurídico trabalhista do Santander Brasil.

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