Entre vanguardistas e tradicionalistas
Seja pela necessidade de resolução mais célere dos litígios, seja pelo anseio por soluções mais técnicas e especializadas, fato é que, ainda que com alguma resistência, a jurisdição arbitral logo encontrou seus adeptos no ambiente acadêmico e no mercado
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023
Atualizado em 3 de março de 2023 10:22
Nos últimos vinte e seis anos, desde a edição da lei 9307/96, a arbitragem, gradualmente, veio ganhando reconhecimento e notoriedade, no Brasil, como método alternativo e extrajudicial de solução de controvérsias. Seja pela necessidade de resolução mais célere dos litígios, seja pelo anseio por soluções mais técnicas e especializadas, fato é que a jurisdição arbitral logo encontrou seus adeptos no ambiente acadêmico e no mercado1, revelando-se via perfeitamente apropriada para dirimir conflitos societários e disputas no setor de infraestrutura2.
A implantação de inovações, contudo, nunca se dá de forma tranquila. A mudança de hábitos e de práticas sedimentadas encontra sempre resistências. É o medo do novo, do desconhecido. Não à toa, a resistência à mudança é uma importante linha de pesquisa no campo dos estudos organizacionais3.Trata-se de comportamento frequente, no seio de comunidades, organizações e corporações, voltado para a preservação do status quo, quando da tentativa de implementação de algum instituto novo e impactante.
Essa resistência também é frequente na comunidade jurídica. Nesse sentido, é possível dividir os juristas em dois grandes grupos: os tradicionalistas e os vanguardistas. É justamente a partir da contraposição, do diálogo e do embate entre tais correntes de pensamento que novos modelos jurídicos surgem e são introduzidos na realidade do operador do direito.
Geralmente, os tradicionalistas sugerem a adoção de freios legais ou regulamentares, a pretexto de conferir maior segurança jurídica à implantação de novos institutos. Já os vanguardistas, abeberando-se da doutrina e da experiência estrangeira, com inovação e pragmatismo, tentam demonstrar as vantagens contidas na adoção da novidade.
A implementação da via arbitral, no Brasil, desde o momento zero, sempre sofreu resistências. Enquanto alguns players aguardavam ansiosos pela possibilidade de submeter seus conflitos a uma jurisdição mais célere, altamente especializada e confidencial, que privilegiasse a autonomia da vontade das partes, o grupo tradicionalista se negava a reconhecer a constitucionalidade e legitimidade do instituto.
Assim é que, muito embora a lei de Arbitragem tenha sido editada em 1996, foi apenas em 2001, no julgamento do leading case SE 5.2064, que o STF, por maioria de sete votos a quatro, reconheceu a constitucionalidade da lei. A tese vencida, perfilhada pelos Ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, era a de que o juízo arbitral era incompatível com o princípio da inafastabilidade da jurisdição estatal, consagrado no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Orientou-se a maioria do STF, entretanto, no sentido de que não teria a Constituição vedado que as partes optassem por excluir os seus litígios da apreciação judicial, em favor de método extrajudicial de solução de conflitos. Afinal, não havendo dúvidas de que a parte poderia transacionar em torno de seus direitos substanciais, sendo apta, inclusive, a desistir da ação, não seria razoável supor a inconstitucionalidade da lei 9.307/96 simplesmente por autorizar que partes capazes, em contrato, substituíssem o juízo estatal pelo juízo arbitral na apreciação de lides envolvendo direitos patrimoniais disponíveis.
A arbitragem é hoje um case de sucesso no Brasil. Tornou-se, em pouco mais de vinte anos da lei, o método por excelência de solução de conflitos empresariais. A jurisprudência dos tribunais, sobretudo do STJ, tem seguidamente confirmado a validade das sentenças arbitrais5, conferindo, com isso, maior segurança jurídica ao instituto.
Efeito disso é que os vanguardistas, nos últimos anos, têm proposto a ampliação do uso do instituto para abarcar outras áreas até então interditadas ao emprego da via arbitral. Assim é que foi aprovada a lei 13.129/15, que passou a prever, textualmente, a possibilidade de a administração pública submeter-se à arbitragem, e, mais recentemente, a lei 13.467/17, que inseriu o art. 507-A na CLT, autorizando a inserção de cláusula compromissória nos contratos individuais de trabalho daqueles denominados hipersuficientes, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa.
A possibilidade de que litígios tributários possam ser submetidos ao juízo arbitral também tem despontado como um hot topic, já havendo em curso, no Senado Federal, o PL 4257/19, de autoria do Senador Antonio Anastasia, voltado para disciplinar o tema.
A resistência a tais inovações tem sido intensa. Desde alguns advogados públicos que não querem perder seus privilégios processuais (como a revelia inoperante, o prazo em dobro para se manifestar nos autos ou o reexame necessário)6, a militantes dos direitos sociais que receiam que os direitos trabalhistas sejam colocados em segundo plano7.
Observa-se, contudo, que, conforme o medo do novo vai desaparecendo, o formalismo exacerbado dá lugar ao pragmatismo. Substância acima da forma. O emprego da arbitragem no bojo dos contratos administrativos reduz o custo de transação com o Estado, atrai novos players para as licitações públicas e estimula a competição entre eles . Na mesma linha, a arbitragem tributária traz a promessa de resolução rápida, técnica e imparcial das lides fiscais, diminuindo o "custo Brasil" e, por consequência, estimulando os investimentos privados em solo nacional . Já o emprego do juízo arbitral na esfera trabalhista permite a solução mais célere de conflitos, conferindo efetividade aos direitos trabalhistas, ao garantir que os empregados recebam as verbas a que fazem jus em tempo razoável10.
Entre tradicionalistas e vanguardistas, o ideal que impulsiona os debates é o mesmo: o melhor para o operador do direito e para a sociedade. Não se trata de embate meramente retórico, mas de uma busca incessante pelo caminho que melhor tutele o direito das partes.
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1 Sobre as vantagens no emprego da arbitragem como método de resolução de conflitos, sob uma perspectiva comparativa com a justiça estatal, vide: CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação: conciliação: resolução CNJ 125/2010. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 116-118; SPINOLA, Eduardo. A convenção de arbitragem - uma abordagem prática. In: BERTASI, Maria Odete Duque; CORRÊA NETTO, Oscavo Cordeiro (orgs.). Arbitragem e desenvolvimento. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 16-19; TIBURCIO, Carmen; MEDEIROS, Suzana. Arbitragem na indústria do petróleo no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, v. 241, jul-set, 2005, p. 54-57; SCHMIDT, Gustavo da Rocha; BRUXELLAS, Luiza Lucas. Arbitragem, contratos administrativos e custos de transação. In: PORTO, Antônio Maristrello; SEIXAS, Luiz Felipe Monteiro (orgs.). Perspectivas da análise econômica do direito no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2022, p. 268-274.
2 Confira-se, sobre a utilização da via arbitral no setor de infraestrutura, SOUZA JR., Lauro da Gama. Sinal verde para a arbitragem nas parcerias público-privadas (a construção de um novo paradigma para os contratos entre o Estado e o investidor privado). Revista de Direito Administrativo, São Paulo, n. 241, jul.-set. 2005, p. 150.
3 A respeito do tema, vide: HERNANDES, José Mauro da Costa; CALDAS, Miguel Pinto. Resistência à mudança: uma revisão crítica. In: Revista de Administração de Empresas, v. 41, n. 2, 2001, p. 31-45; PIDERIT, Sandy Kristin. Rethinking resistance and recognizing ambivalence: a multidimensional view of attitudes toward an organizational change. In: Academy of Management Review, v. 25, n. 4, 2000, p. 783-794.
4 STF, SE 5.206 AgR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30.04.2004.
5 Vide: FERREIRA, Daniel Brantes; SCHMIDT, Gustavo da Rocha; FARIAS, Bianca Oliveira de. Brazilian Superior Court of Justice (STJ) reaffirms Brazil as an arbitration friendly jurisdiction. Kluwer Arbitration Blog, 23 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2022/02/23/brazilian-superior-court-of-justice-stj-reaffirms-brazil-as-an-arbitration-friendly-jurisdiction/. Acesso em: 21.02.2023.
6 SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Métodos de solução de conflitos aplicados aos projetos de desestatização e parcerias de investimentos: the do's and dont's. In: Trabalhos do XVIII Congresso Internacional de Arbitragem do Comitê Brasileiro de Arbitragem - CBAr: Administração Pública e Arbitragem. Organizadores: Debora Visconte; Giovanni Ettore Nanni; Lucas de Medeiros Diniz, São Paulo: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 2020, p. 282.
7 "A doutrina trabalhista tem apresentado grande resistência à aplicação da arbitragem aos conflitos entre empregado e empregador, por serem os direitos individuais para o trabalhador. A Lei n. 9.307, art. 25, prevê que se no curso da arbitragem sobrevier controvérsia acerca de direito indisponível, o árbitro deverá remeter as partes ao Judiciário, como questão prejudicial" (JORGE NETO, Francisco Ferreira e CAVALCANTE, Jouberto Pessoa. Direito processual do trabalho. 7ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 1447).
8 SCHMIDT, Gustavo da Rocha; BRUXELLAS, Luiza Lucas. Op. cit.
9 KINGSTON, Renata Ribeiro; SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Arbitragem tributária: por uma nova justiça fiscal. Jota, 23 de julho de 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/arbitragem-tributaria-por-uma-nova-justica-fiscal-23072020. Acesso em: 21.02.2023.
10 Nesse sentido: SCHMIDT, Gustavo da Rocha, FERREIRA, Daniel Brantes & OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à lei de arbitragem. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, p. 56-57.
Gustavo da Rocha Schmidt
Professor da FGV Direito Rio e Presidente do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.
Marcela Fernandes Reis
Advogada