Cotas de concurso: como provar que sou negro ou pardo?
A discriminação vai muito além dos aspectos econômicos, eis que, em todas as classes sociais, há relatos de racismo, preconceito e dor, independente da renda dessa pessoa.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
Atualizado às 07:28
Uma das principais marcas do Brasil é a diversidade dos povos. Afinal, mais da metade da população é negra ou parda. Por isso, uma dúvida recorrente de várias pessoas é: "como provar que sou negro no concurso público?".
A Lei de Cotas no Brasil foi aprovada em 2014, e está previsto que 20% das vagas em concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos devem ser direcionadas às pessoas pretas e pardas.
A lei faz parte de uma política de inclusão que vem se desenvolvendo no Brasil, que visa compensar uma realidade histórica de exclusão de pessoas pretas ou pardas de cargos historicamente ocupados por brancos.
Até porque essa exclusão tem origem na forte escravidão negra do início da história do país.
Assim, a lei pretende garantir a ocupação desses cargos por pretos e pardos de modo a equilibrar o padrão socioeconômico de todas as pessoas.
Porém, na prática, a aplicação das normas trazidas pela lei são bastante complexas. Isso porque a cor de uma pessoa não é algo muito objetivo.
É preciso admitir que preto ou pardo, além de serem cores de pele, são expressões de raça. Portanto, podem ser determinadas de várias formas em uma pessoa.
No entanto, conforme a lei, para concorrer às vagas destinadas às cotas raciais, a pessoa candidata deve apresentar apenas a autodeclaração. Mas a candidatura pode ser anulada se for identificada fraude.
Autodeclaração nas cotas raciais de concursos públicos
No momento de preencher a inscrição, o próprio candidato declara que é preto ou pardo e, com isso, concorrerá às vagas reservadas para cotistas.
Portanto, não é necessário apresentar documentos para comprovar sua cor para concorrer às cotas raciais.
Basta que a pessoa que se entenda preta ou parda, marque essa opção no documento e já concorrerá às vagas.
Em um primeiro momento, essa "falta de fiscalização" pode soar um tanto negligente.
No entanto, o processo ocorre dessa forma porque provar que é negro no concurso público é uma questão muito sensível.
Dessa forma, essa comprovação só deve ocorrer quando houver suspeita ou denúncia de fraude.
Nesse caso, a autodeclaração visa ampliar a política de inclusão, enquanto permite que qualquer pessoa que se identifique racialmente com as cores preta ou parda possa pleitear seus direitos.
Para isso, cada um deve se basear em uma visão de si mesmo e, portanto, das eventuais injustiças sociais que já tenha sentido em razão disso.
Sendo assim, a eventual anulação não visa, em um primeiro momento, perseguir pessoas que não se enquadrem em critérios objetivos do que é uma pessoa preta ou parda.
Mas apenas evitar que a ideologia por trás da política de inclusão seja distorcida e, assim, que pessoas que não sofram as consequências da desigualdade sejam beneficiadas de modo indevido.
Processo de anulação com direito a contraditório e ampla defesa
Você que se pergunta "como provar que sou negro no concurso público?" e chegou até aqui, já viu que, para cumprir os requisitos previstos em lei, basta firmar uma autodeclaração.
Ou seja, é preciso ter senso social, racial e étnico. A definição da raça do indivíduo vai muito além do físico. Ela abrange a dor da discriminação histórica ocorrida no país.
Por isso, após a autodeclaração, só haverá fiscalização da real condição do candidato se, primeiramente, ele for aprovado. Além disso, deve haver suspeita de fraude.
Nesse sentido, a Lei de Cotas traz a hipótese de anulação da candidatura quando houver fraude. Veja:
"Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis".
Portanto, é importante observar que a lei fala em constatação de declaração falsa. Isso significa que a mera suspeita de fraude jamais levará à anulação da candidatura ou do resultado.
Para isso ocorrer, é preciso que a organização do concurso verifique se, de fato, houve falsidade na declaração.
Sendo assim, se há constatação de declaração falsa, necessariamente há um processo de apuração de falsidade.
Ampla defesa no processo de suspeita de fraude
O processo para avaliar uma possível fraude é feito, em primeiro modo, pelo próprio órgão em que o candidato ocupa a caga destinada aos negros e pardos.
Não há uma regra de qual procedimento o órgão deverá seguir, tampouco como o procedimento deve ser feito.
Por isso, ao se perguntar "como provar que sou negro no concurso público", é ideal verificar as normas e regras que regem cada órgão, para ter uma noção prévia das etapas do processo e de como a investigação é feita.
Vale destacar, no entanto, que é crucial que o processo siga um trâmite legal que garanta o acesso do candidato em todas as fases, bem como o direito ao contraditório e a ampla defesa.
E é justamente isso que traz a segunda parte do artigo que comentei acima da Lei de Cotas.
A lei fala em "procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e ampla defesa".
Nesse caso, você deve entender que jamais haverá anulação da candidatura sem poder se manifestar sobre a questão antes do resultado final.
O contraditório e a ampla defesa são princípios constitucionais para garantia do direito de defesa.
Assim, qualquer procedimento administrativo ou judicial deve dar chances para que ambas as partes, em igualdade, possam defender suas razões.
Caso o candidato chegue nessa etapa, já é ideal procurar um advogado especialista na área. Esse profissional vai prestar informações sobre o passo a passo do processo.
Como faço para provar que sou negro no concurso público?
No momento da sua inscrição, você não precisa provar que você é negro ou pardo para concorrer as vagas destinadas às cotas raciais no concurso público, apenas se autodeclarar preto ou pardo.
Contudo, se houver suspeita de fraude na autodeclaração, a anulação da candidatura ensejará um processo administrativo.
Nele você terá total direito à defesa, para demonstrar que não houve fraude e, assim, que você se entende de fato como uma pessoa preta ou parda.
Nesse momento, talvez você precise comprovar que é uma pessoa preta ou parda na acepção da lei, e faz jus às cotas raciais, pois se enquadra nos fatores socioeconômicos que ensejam a criação da política de inclusão.
De início, é importante ter em mente que a cota não é para todas as pessoas economicamente hipossuficientes, mas apenas para pessoas pretas e pardas.
O fato de eventualmente experimentar desigualdades sociais não significa que você já tenha experimentado o racismo, o que se busca reverter com essa política especificamente.
Então, uma maneira eficiente para comprovar que você se encaixa nas cotas raciais, é apresentando uma foto, desde que seja evidente que você é preto ou pardo.
Se não for possível demonstrar pela foto, é importante se apresentar pessoalmente à banca do concurso.
Filhos de pais negros
Em algumas situações, a raça pode ser considerada subjetiva para certas pessoas. Isso porque os filhos brancos de pais negros podem se identificar que pertencem a raça negra.
Nesse caso, se estiverem presentes as características fenotípicas das raças preta ou parda, pode ser possível informar que se encaixa na raça, porque pode
Por fim, se você for filho de pais pretos ou pardos, mas for branco, ou de qualquer outra raça, e não possuir nenhum traço fenotípico, muito provavelmente não estará de fato incluído na política de cotas.
Isso porque, apesar de poder ver de perto as adversidades que o racismo gera, isso não está impresso em seu corpo. Portanto, sua inclusão pela política não é uma prioridade.
Assim, durante o processo administrativo que será conduzido para apurar fraude na autodeclaração, será possível suscitar todas essas questões.
Além disso, você deve estar disposto a se defender, para haver de fato a inclusão racial e para que o processo não afaste candidatos que se entendem pretos e pardos por medo da anulação.
Conclusão
A lei das cotas raciais surgiu como uma tentativa de compensar os negros pela dor da discriminação sofrida durantes anos a fio.
A discriminação vai muito além dos aspectos econômicos, eis que, em todas as classes sociais, há relatos de racismo, preconceito e dor, independente da renda dessa pessoa.
Inclusive, esse é mais uma das razões que fazem com que a lei determine que somente a autodeclaração já é suficiente para se declarar como negro ou pardo.
Cada pessoa sabe em seu íntimo as dificuldades que carrega. Para alguns, essas dificuldades são ainda maiores tão somente em razão da cor. Assim, a lei buscou, com a autodeclaração, tornar o processo mais brando.
Até porque, aquele que carrega traços e história negra, não poderia passar por processos ainda mais dolorosos para comprovar uma condição ao ingressar no concurso público.
Por isso, só haverá o processo de investigação e a devida comprovação das características, se houver indícios de fraude.
E nesse momento, são várias as hipóteses de defesa. Elas vão além das características físicas, mas também de demonstrações de preconceitos, fotos de familiares e narrativas da história do ser.
Agnaldo Bastos
Advogado atuante no Direito Administrativo, especialista em causas envolvendo concursos públicos e servidores públicos, Sócio Proprietário do escritório Agnaldo Bastos Advocacia Especializada.