MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. Impactos da lei 14.532/23 na legislação antidiscriminatória

Impactos da lei 14.532/23 na legislação antidiscriminatória

Lucas Caldas Lafayette Stockler e Adler Morais Costa

Com a correta capitulação dos crimes nos registros de ocorrência policial, até a efetiva atuação dos órgãos judiciais, mediada pela participação propositiva e fiscalizadora do Ministério Público.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Atualizado às 07:40

  1. Introdução

No dia 11 janeiro de 2023, entrou em vigor a lei 14.532/23, que, em um só ato, alterou a lei 7.716/89 (Lei dos Crimes Raciais) e o Código Penal, endurecendo, de um modo geral, a resposta do ordenamento jurídico a condutas consideradas racistas. Pretende o presente artigo comentar as mudanças e inovações decorrentes da lei, tecendo, ainda, breves considerações acerca de seu impacto na criminalização da homotransfobia.

  1. O novo tipo penal de Injúria Racial e outras inovações da lei 14.532/23

A mudança mais marcante provocada pela norma está na criação de um novo tipo penal para a injúria racial junto aos crimes previstos na lei 7.716/89, isto é, o art. 2º-A. Outrora reduzida a mera qualificadora do delito de injúria "comum", a ofensa a dignidade ou ao decoro de outrem, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional foi promovida a um delito autônomo, tendo sua pena sido alçada para o mínimo de dois e máximo de cinco anos de reclusão (quando antes era fixada entre um e três anos de reclusão), além de multa e todos os demais efeitos da incidência dessa lei.

O aumento da reprimenda legal para a prática da injúria racial era uma pauta de ativistas do movimento negro brasileiro, tendo em vista que quase nunca uma ofensa racista era imputada como qualquer dos crimes de racismo previstos na lei 7.716/89, mas sempre como injúria preconceituosa, tipificada no art. 140, §3º, do Código Penal, cujas consequências penais eram, em comparação aos delitos da outra lei, mais brandas. A opção pela aplicação da injúria preconceituosa frente aos delitos da lei 7.716/89 se dava "em função de um entendimento que se formou nos tribunais brasileiros que criava diferenciação entre ofensas dirigidas a uma pessoa individualmente (injúria) e a uma coletividade (racismo)"1.

Com o advento da lei 14.532/23 e a inclusão de um novo tipo penal para a injúria racial na Lei dos Crimes Raciais, a legislação penal deu um passo importante para uniformizar sua postura perante o racismo. Notoriamente, o bem jurídico protegido pela lei 7.716/1989 possui a especial proteção do art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal, sendo todos os delitos lá tipificados inafiançáveis e imprescritíveis. A prática de qualquer crime dessa lei pode acarretar a perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular, nos termos dos art. 16 e art. 18 da lei.

Além disso, aqueles processados pela prática do novo crime de injúria racial não farão jus ao benefício da suspensão condicional do processo (art. 89 da lei 9.099/95), aplicável à injúria preconceituosa. Isto, pois a pena mínima do novo tipo legal superou o mínimo de um ano, deixando de atender a um dos requisitos do instituto. Igualmente, em que pese a injúria racial seja punida com reprimenda que se adequa aos requisitos objetivos à apresentação de proposta de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), a 2ª turma do STF decidiu, em 6/2/23, nos autos do RHC 222.599, de relatoria do Min. Edson Fachin, que o instrumento de consenso não cabe em caso de racismo e injúria racial. Nesse sentido também são as orientações internas do Ministério Público dos estados de Ceará, Pernambuco, Piauí e São Paulo.

Ademais, no terreno das inovações legislativas da lei 14.532/23, também merecem atenção os aumentos de pena dos novos art. 20-A e art. 20-B, incluídos na lei 7.716/89, que, respectivamente, preveem um aumento de um terço até metade das penas dos crimes que ocorram em um contexto ou tiverem o intuito de descontração, diversão ou recreação2 e o mesmo quantum de aumento, na hipótese de crimes de injúria racial (art. 2º-A) e de discriminação (art. 20), caso sejam praticados por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.

Doutro lado, em consequência direta da criação do novo tipo legal da injúria racial, a norma do §3º do art. 140 do Código Penal teve seu alcance severamente diminuído. A qualificadora do delito de injúria "comum" subsiste, mas apenas para qualificar as injúrias que se valham de elementos preconceituosos referentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Anteriormente, a injúria qualificada tencionava aumentar a pena das ofensas destinadas a grupos minoritários, diminuídos através de elementos atrelados ao seu grupo social - sejam as ofensas racistas, xenofóbicas, etaristas, capacitistas ou de intolerância religiosa. Com as alterações da nova lei 14.532/23, o legislador optou, conforme acima, por conferir tratamento mais grave às condutas racistas e xenofóbicas, ao mesmo tempo em que reservou às outras condutas preconceituosas o tratamento usual do Código Penal. Surge na legislação, assim, uma diferenciação de tratamento entre preconceito e racismo onde, antes, inexistia.

Por outro lado, curiosamente, chama atenção o fato de que o preconceito religioso permaneceu com sua reprimenda dividida entre o Código Penal e a lei 7.716/86. Em que pese tenha a lei 14.532/23 endurecido a reprimenda legal do crime de discriminação religiosa, tipificado pelo Art. 20 da Lei de Crimes Raciais, a nova lei manteve a injúria com uso de elementos religiosos junto ao Código Penal, na qualificadora do §3º do Art. 140.

Sobre o delito de prática, induzimento ou incitação à discriminação (art. 20 da lei 7.716/86), vale destacar que a lei 14.532/23 endureceu a pena a ele cominada através da inclusão de dois novos parágrafos. Destarte, caso a conduta seja praticada em contexto desportivo, religioso, artístico ou cultural, a pena pelo delito será fixada entre dois a cinco anos de reclusão, podendo ainda resultar na proibição de frequentar de locais análogos ao da prática do delito pelo período de três anos (§2º-A); incorrendo na mesma pena quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas, sem prejuízo da pena correspondente a eventual violência praticada (§2º-B).

  1. Impactos na criminalização da homotransfobia

A homotransfobia, por sua vez, permaneceu relegada ao ostracismo pelo  legislador, que não incluiu, em quaisquer dos dispositivos criados ou alterados, elementos normativos que façam referência direta à população LGBTQIA+. Não obstante a inércia legislativa, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, referente à proteção contra atos e ofensas LGBTQIA+fóbicos, aplica-se às inovações da lei 14.532/23.

Em 2019, no julgamento conjunto da ADO 263 e do MI 4.7334, a Suprema Corte reconheceu a mora do Congresso Nacional para incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBTQIA+ e decidiu, por maioria, pelo enquadramento da homofobia e da transfobia nos tipos penais definidos na Lei do Racismo (lei 7.716/89) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria, compreendendo a homotransfobia como uma expressão de racismo social.

Adicionalmente, antes da promulgação da lei 14.532/23, fora reconhecido na Suprema Corte que a utilização de elementos referentes à orientação sexual e à identidade de gênero também constituíam elemento típico do delito de injúria qualificada pelo preconceito (Art. 140, §3º, do Código Penal). A esse propósito, o Ministro Ricardo Lewandowski reconheceu, em decisão monocrática proferida nos autos da Reclamação 39.0935, que a injúria homofóbica configurava o delito de injúria qualificada:

Conforme decidiu esta Suprema Corte nas ações invocadas como paradigmas, "as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na lei 7.716, de 8/1/89, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, 'in fine')". Nessa mesma linha de orientação, é possível que, pelo menos em tese, a conduta imputada ao suposto autor do fato seja enquadrada como injúria qualificada, prevista no § 3º do art. 140 do Código Penal, a exemplo do que ficou definido em relação ao crime de homicídio qualificado pelo motivo torpe, referido na tese paradigma.

As referidas decisões do STF confirmam, portanto, a possibilidade de se aplicar as alterações trazidas pela lei 14.532/23 às ofensas injuriosas atentatórias contra a dignidade e contra a honra de membros da comunidade LGBTQIA+, em decorrência da orientação sexual ou da identidade de gênero da pessoa ofendida. Isso porque, conforme exposto no excerto acima, para a Suprema Corte, a homotransfobia traduz expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social.

  1. Comentários sobre a natureza da ação

Com a mudança da injúria racial do Código Penal para a lei 7.716/86, a natureza da ação penal também deve sofrer significativa alteração, deixando de ser pública condicionada à representação do ofendido para ser pública incondicionada.

Antes da lei 14.532/23, a persecução penal da injúria que se valesse de elementos de raça, cor, etnia ou procedência nacional dependia da representação criminal do ofendido para que o Ministério Público pudesse oferecer denúncia em desfavor do autor do fato, nos termos do art. 145, parágrafo único, do Código Penal - sendo possível, inclusive, que a vítima retratasse sua representação até antes do oferecimento da denúncia (art. 102 do Código Penal e art. 25 do Código de Processo Penal) -; agora, com a nova lei, a atuação do parquet independe desta manifestação de vontade.

Neste aspecto, há de se considerar que a inserção do novo tipo penal no rol da Lei dos Crimes Raciais e a consequente "elevação" da injúria racial para um delito de ação penal pública incondicionada representa uma virada no entendimento antes mencionado sobre o direcionamento das ofensas racistas. Não é exagero considerar que, com a promulgação da nova lei, o legislador enfim reconheceu que a utilização de elementos racistas em uma injúria ofende não simplesmente a vítima direta do delito, em sua individualidade, mas todo um grupo minoritário que se vê diminuído pela verbalização do racismo alheio. Hoje, é legalmente reconhecido que a injúria racial atinge a coletividade de tal forma que sua persecução penal independe da pessoa da vítima, podendo ser iniciada por qualquer um do povo.

  1. Conclusão

Por fim, importa destacar que, nestes breves comentários sobre o impacto da lei 14.532/23 na legislação antidiscriminatória, não se discute a eficácia do direito penal no enfrentamento das violências racistas e homotransfóbicas presentes na sociedade brasileira. Não obstante, há de se reconhecer que a persecução criminal dos delitos, a que se referem as recentes inovações legais e jurisprudenciais antidiscriminatórias, dependerá do empenho do sistema de justiça criminal, desde a investigação policial, com a correta capitulação dos crimes nos registros de ocorrência policial, até a efetiva atuação dos órgãos judiciais, mediada pela participação propositiva e fiscalizadora do Ministério Público.

----------

AMPARO, Thiago de Souza; PIMENTEL, Amanda. A equiparação de injúria racial e racismo: avanços e reconhecimento na legislação antirracista. Disponível em https://portal.fgv.br/artigos/equiparacao-injuria-racial-e-racismo-avancos-e-reconhecimento-legislacao-antirracista. Acesso em 14/2/23.

2 Para ofensas racistas comumente consideradas como piadas, contextos em que haveria "falta de intenção" em ofender alguém, ver MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

3 STF - ADO: 26, Rel. Min. Celso de Mello, Dje. 13/6/19.

4 STF - MI: 4733, Rel. Min. Edson Fachin, Dje. 13/6/19.

5 STF - RCL: 39.093, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Dje. 24/4/20.

Lucas Caldas Lafayette Stockler

Lucas Caldas Lafayette Stockler

Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC (2019) e em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (2021). Bacharel em Direito pela PUC-Rio (2016). Membro do IBCCrim. Advogado associado ao escritório Fragoso Advogados.

Adler Morais Costa

Adler Morais Costa

Mestrando em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst (2021). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (2019). Advogado associado ao escritório Fragoso Advogados.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca