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Guarda unilateral e o princípio do melhor interesse

É dever indeclinável do juiz estabelecer os períodos de convivência, sendo que o descumprimento imotivado da deliberação judicial pode implicar na redução de prerrogativas de qualquer dos genitores.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Atualizado às 08:09

O conservadorismo que insiste em se manter nos dias de hoje, fruto de um machismo estrutural, ainda impõe a divisão de papéis sob a respectiva do gênero.

A extrema glorificação da maternidade nada mais é do que a tentativa de convencer a mulher de que nasceu para ser mãe, esposa, pura, recatada e do lar.

Relega à condição de mera reprodutora, sempre assumiu sozinha os encargos da maternagem, excluindo o pai dos deveres de cuidado. A ele é reservado o papel de provedor.

Esta diferenciação, no entanto, não encontra eco na legislação atual, que não distingue os papéis parentais.

A Constituição da República consagra como garantia fundamental, o princípio da igualdade entre homens e mulheres (CR, art. 5ª, I).  Ao tratar da família, assegura igualdade de direitos e deveres ao homem e à mulher (CR, art. 226, § 5º), atribuindo a ambos os encargos decorrentes da criação e educação dos filhos (CR, art. 229).

Durante o casamento e a união estável, o Código Civil atribui aos dois pais os deveres decorrentes do poder familiar, e somente é exercido por um deles, na falta ou impedimento do outro (CC, art. 1.631). 

Independentemente da situação conjugal, compete ao par o pleno exercício do poder familiar, entre ele,  o de dirigir a criação e a educação dos filhos (CC, art, 1,634, I). Havendo divergência, não prevalece a vontade de nenhum deles. É atribuído ao juiz o encargo de dirimir eventuais controvérsias (CC, art. 1.631).

Com o rompimento do casamento ou união estável dos pais, acaba o vínculo da conjugalidade, mas se mantêm inalteradas as relações paterno-filiais. Basta estabelecer o regime de convivência dos filhos com ambos os genitores (CC, Art. 1.632).

Apesar de fazer uso de terminologia inadequada, a lei civil prevê a guarda unilateral e a compartilhada (CC, art. 1.583). Mas dá preferência ao regime de compartilhamento, que prevalece mesmo quando existe situação de beligerância entre os genitores. É suficiente que ambos estejam aptos a exercer o poder familiar (CC, art. 1.584, § 2º).

No entanto - e absurdamente -, a lei admite que um dos pais, sem a necessidade de apresentar qualquer justificativa, abdique do dever de convívio com o filho, hipótese em que é atribuída ao outro a guarda unilateral (CC, art. 1.584, § 2º).

E, mesmo desistindo de exercer os deveres decorrentes do poder familiar, o não guardião pode solicitar informações ou prestação de contas sobre assuntos ou situações que afetem a saúde física e psíquica e a educação dos filhos (CC, art. 1.583, § 5º). Ou seja, quem não assume qualquer responsabilidade, tem o direito cobrar e fiscalizar a atuação de quem sozinho assumiu todos os ônus e encargos para com os filhos.

Ora, se a lei atribui a ambos os pais a responsabilização conjunta e o exercício dos direitos concernentes ao poder familiar dos filhos comuns, não há como admitir que um deles, por vontade própria e imotivadamente, abra mão de tais responsabilidades.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, sem estabelecer qualquer diferenciação entre guarda unilateral e compartilhada, atribui o exercício da autoridade parental em igualdade de condições, impondo aos dois o dever de sustento, guarda e educação dos filhos, além de responsabilidades compartilhadas no cuidado e na educação dos mesmos (ECA, art. 22, parágrafo único).

Via de consequência, sequer é possível que os pais, ainda que por consenso, atribuam a somente um deles a guarda unilateral. O acordo não pode ser referendado pelo Ministério Público e nem chancelado pelo juiz.

Quando um dos pais se abstém de compartilhar a convivência, falta com os deveres inerentes do poder familiar, o que configura abuso de autoridade, e pode ensejar não só a suspensão (CC, art. 1.637), mas até mesmo a perda do poder familiar (CC, art. 1.638).

Também pode ensejar o reconhecimento da ocorrência de abandono afetivo e ser enquadrado no delito de abandono de incapaz (CP, art. 133).

Deste modo, a guarda unilateral somente pode ser imposta judicialmente e isso quando comprovado, por estudo técnico-profissional de equipe interdisciplinar, que a convivência com um dos genitores coloca o filho em situação de sofrimento ou perigo. 

Mas há mais. Descabido a lei estabelecer que na guarda compartilhada o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada (CC, art. 1.583, § 2º). Ora, mesmo na guarda unilateral também é necessário estabelecer regime de convivência.

Para atender o melhor interesse da prole, é indispensável o estabelecimento de períodos de conivência, nem que seja de forma assistida, com avaliações periódicas para subsidiar o juiz na tomada de decisão sobre a manutença ou não da guarda unilateral.

Outro absurdo da lei é prever o estabelecimento de uma base de morada do filho com um dos genitores (CC, art. 1.583, § 3º). Como a lei admite a possibilidade de as pessoas terem dupla residência e duplo domicílio (CC, arts. 70 e 71), nada justifica a eleição de uma única residência. Quando o filho se encontra com um deles, lá é sua moradia, que se alterna quando está convivendo com o outro. Afinal, o filho tem duas famílias, duas casas, dupla residência. 

Deste modo, é dever indeclinável do juiz estabelecer os períodos de convivência, sendo que o descumprimento imotivado da deliberação judicial pode implicar na redução de prerrogativas de qualquer dos genitores (CC, art. 1.584, § 4º).

O fato é que não há como admitir a eleição da guarda unilateral, o que desatende ao direito de convivência com ambos os pais afrontando o melhor interesse de crianças e adolescentes que merecem a especial proteção do Estado, com absoluta prioridade.

Maria Berenice Dias

VIP Maria Berenice Dias

Advogada, desembargadora aposentada e vice-presidente nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família.

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