As novas normas do governo federal para o setor de saneamento
Tais mudanças demonstram a clara intenção do Governo Federal em repartir as diversas competências do setor do saneamento básico entre as Secretaria-Executiva e Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental.
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023
Atualizado às 08:16
O Governo Federal logo em seus primeiros dias, causou um rebuliço no setor do saneamento básico com a edição das Medidas Provisórias 1.154/23 e 1.156/23 e dos decretos Federais 11.333/23 e 11.349/23, trazendo, basicamente, quatro grandes mudanças significativas.
A primeira mudança alterou a estrutura ministerial, desmembrando as competências do Ministério do Desenvolvimento Regional, para o recriado Ministério das Cidades, onde este passará a tratar, além de outros temas, sobre políticas setoriais de saneamento ambiental, a promoção de ações e programas de saneamento básico e ambientais, política de financiamento e subsídios de saneamento, planejamento, regulação, normatização e gestão da aplicação de recursos em politicas de saneamento básico e ambiental, participação na formulação das diretrizes gerais para conservação dos sistemas urbanos de água e para adoção das bacias hidrográficas como unidades básicas do planejamento e gestão do saneamento (interpretação sistemática do art. 20, incisos II ao VI da MP 1.154/23 c/c art. 1, incisos II a VI do Anexo I do Decreto Federal 11.333/23).
No âmbito destas modificações, foram recriadas no Ministério das Cidades, a Secretaria-Executiva e seus respectivos: (i) Departamento de Gestão Estratégica e Informações Urbanas e (ii) Departamento de Extinção da FUNASA, bem como a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, com seus respectivos: (i) Departamento de Repasses e Financiamento, (ii) Departamento de Saneamento Rural e de Pequenos Municípios, e, (iii) Departamento de Cooperação Técnica, que receberam, por transferência, uma série de competências antes incumbidas à Agência Nacional de Águas e Saneamento - ANA, como também à Fundação Nacional de Saúde - FUNASA (ora extinta). Haverá, portanto, uma articulação entre tais secretarias, gerando, assim, a segunda mudança significativa. (interpretação sistemática do art. 65 da MP 1.154/23 c/c art. 1; art. 2 §§ 1º e 2 da MP 1.156/23 c/c art. 2, inciso I, alínea "J", itens 2 e 3; art. 12, incisos IX; art. 14, incisos I e VI; art. 15, incisos I e IV; art. 22, incisos I ao XXXI; art. 23, incisos I e II; art. 24, incisos I ao V e art. 25, incisos I ao XIX, todos do Anexo I do decreto Federal 11.333/23).
Percebe-se assim, que tais mudanças demonstram a clara intenção do Governo Federal em repartir as diversas competências do setor do saneamento básico entre as Secretaria-Executiva e Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, seja retirando e/ou replicando as que competem à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA ou, ainda, transferindo as da extinta Fundação Nacional de Saúde - FUNASA.
Neste sentido, inclusive, destaca-se a terceira mudança significativa - que trouxe o maior alvoroço ao setor do saneamento - na medida em que a alteração da lei Federal 9.984/00, que criou a ANA, retirou do nome da agência, as palavras "Saneamento Básico" e a finalidade de "instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico" (art. 60 da MP 1.154/23).
Embora a retirada do nome e da finalidade supramencionada, aliada a superposição de várias competências entre órgãos governamentais, gere algumas incertezas, trazendo possíveis riscos a estabilidade e a segurança jurídica do setor - com probabilidade de danos irreversíveis a toda população brasileira de usuários e destinatários do saneamento básico, por falta de atratividade e investimento do mercado, que poderá obstaculizar a consequente universalização - vislumbramos uma possível alternativa jurídica.
A imprecisão técnica e a interpretação literal de forma isolada do conteúdo do art. 60 da Medida Provisória 1.154/23, não tem o condão necessário para retirar totalmente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA sua competência de instituir normas de referência para regulação dos serviços públicos de saneamento básico, conforme definido pela lei Federal no 14.026/20 - Novo Marco Legal do Saneamento Básico.
Isto porque, em que pese normas de referência tenham sido também atribuídas à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, o nome completo da agência permaneceu incólume no mesmo diploma legal de criação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA, bem como no Decreto Federal que vinculou a referida agência ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Além disso, a referida agência reguladora também manteve a competência para instituição de normas de referência na regulação dos serviços públicos de saneamento básico, razão pela qual existirá uma superposição de competências (interpretação sistemática dos arts. 1, 4-A e 4-B, com seus respectivos parágrafos e incisos da lei Federal 9.984/00 c/c art. 2, inciso IV, alínea "d" do Anexo I do decreto Federal 11.349/23).
E mais. Para complicar a complexidade do tema, a última mudança significativa, ao alterar a lei Federal 11.145/07 - Marco Legal do Saneamento - transferiu para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, outras tantas competências da ANA, dentre elas, a de estabelecer a metodologia e periodicidade do sistema de informações sobre os serviços públicos de saneamento básico - SINISA (art. 64 da MP 1.154/23). Como lidar então com essa dificuldade?
A questão de superposição de competência, especialmente em relação a programas, ações, políticas setoriais, políticas de financiamentos, planejamento, regulação, normas de referência e controle, embora complexa, por gerar prováveis confusões e possíveis decisões divergentes entre órgãos, tem uma alternativa jurídica que não é incomum na Administração Pública.
Abre-se antes um parêntese, para destacar que, via de regra, a centralização imposta nas Medidas Provisórias e Decretos Federais pelo Governo Federal, através da transferência das competências da ANA e da extinta FUNASA (órgãos da Administração Pública Indireta), para atribuição conjunta das Secretaria-Executiva e Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (órgãos da Administração Pública Direta), não é recomendável, por não se tratar da melhor técnica e escolha para realização das atividades de regulação, controle e fiscalização.
Desde a reforma administrativa da década de 90, o Brasil faz o caminho inverso, qual seja, a descentralização e delegação das atividades estatais de regulação, normatização, controle e fiscalização dos mais importantes setores da economia para agências reguladoras, visando, em tese, uma maior autonomia e independência de gestão da atividade estatal, baseada em critérios técnicos na busca de maior eficiência dos serviços públicos prestados e para gerar maior segurança jurídica aos setores, devido conferido à gestão mandatária sem interferência política (art. 21 da lei Federal 13.848/19).
Isto não impede, contudo, que, excepcionalmente, a regulação, normatização, controle e fiscalização sejam feitas de forma centralizada, utilizando-se do instituto da concentração administrativa, para atuação conjunta de órgãos da Administração Direta e Indireta, o que não se mostra como a técnica ideal, mas tampouco representa ilegalidade.
Em razão disso, para que não existam decisões divergentes entre os órgãos da Administração Direta (Secretaria-Executiva e Secretaria de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, bem como do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática) e da Administração Indireta (Agencia Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA), a fim de apaziguar os pontos mais conturbados, e para que não haja, ainda, a volatilidade das ações das empresas de saneamento no mercado - o que pode afastar os investimentos privados do setor - vislumbra-se, como alternativa, a criação de estrutura e/ou grupo de trabalho interministerial, com articulação e interoperalidade entre os órgãos envolvidos, para que as decisões sejam convergentes e deságue na edição de atos conjuntos, assim como ocorre em diversos casos no governo, através de Portarias Ministeriais Conjuntas.
Por fim, ressaltamos que o mais adequado e técnico, seria o retorno ao status quo ante, com os reparos eventuais cabíveis, mas caso isso não aconteça - como até o momento da edição do presente artigo não ocorreu - pugnamos para que esta interoperalidade de competências seja feita com a composição de pessoal altamente técnico, visando a manutenção da busca pela eficiência regulatória, normativa, de controle e fiscalização.
Marcus Vinicius Macedo Pessanha
Mestrando em Direito - Universidade Autônoma de Lisboa. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Pós Graduado em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Pós Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Gama Filho (UGF) Pós Graduado em Ciência Política pela Universidade AVM. Membro do IASP. Membro da Comissão de Direito da Infraestrutura da OAB/SP. Advogado em São Paulo.
Marcelo Lesniczki Campos
Pós-Graduado em Gestão Pública pelo Instituto de Educação e Pesquisa Roberto Bernardes Barroso do Ministério Público do Estado do RJ (IERRB/MPRJ). Pós-Graduado em Direito Tributário e Financeiro pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Gama Filho (UGF). Pós Graduando em Engenharia de Meio Ambiente e Saneamento pelo Centro Universitário União das Américas (UNIAMERICAS). Pós-Graduando em Direito Constitucional pelo Centro Universitário União das Américas (UNIAMERICAS). Membro da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado da OAB/RJ. Delegado da Comissão Luso-Brasileira de Advocacia e Estudos Jurídicos da 16ª Subseção da OAB/RJ.