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Americanas: a possível responsabilidade criminal dos diretores - parte 2, crimes contra sistema financeiro

O bem jurídico aqui tutelado é o patrimônio coletivo, especialmente dos investidores. O polêmico - visto ser excessivamente aberto - crime de gerir fraudulentamente instituição financeira é crime próprio, isto é, exige que tenha sido cometido pelas pessoas elencadas no art. 25. Nada impede, porém, a participação de terceiros fora da administração, haja vista o art. 29 e 30 do Código Penal.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Atualizado às 08:31

Nos últimos dias recebemos novas notícias da governança das Americanas. Agora outra empresa do triunvirato brasileiro, a AMBEV, foi acusada de "rombo" em razão de litígios tributários. Em nosso texto do dia 30 de janeiro, tratamos a respeito do crime de Insider Trading e apontamos outros vislumbrados nos artigos 3º, 4º, 6º, 9º e 10º da lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro de 1986 (LCSFN), os quais agora tratamos.1

Antes de detalharmos as tipificações, importante dizer o que vem a ser instituição financeira no art. 1º, visto que é por essa que podemos examinar diretamente a proteção do bem jurídico da lei, qual seja, Sistema Financeiro, cujo objetivo:

Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira: 

I - a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;

II - a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual.

Como se observa a lei foi taxativa e atualizada, muito embora podemos compreender a territorialidade das instituições através da Carta Circular 2345 do BACEN. Dentre as instituições podemos exemplificar: bancos comerciais, bancos múltiplos, bancos de investimento, de desenvolvimento, sociedades de crédito e financiamento, corretoras de títulos e valores mobiliários, sociedades de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, etc.2 Em outras palavras, o objetivo da lei é proteger a execução de metas e políticas monetárias e cambias com a preservação das instituições públicas e privadas.

Merece destaque a doutrina minoritária que afasta a LCSFN quando não há lesão sistêmica. Entretanto, José Baltazar e demais se posicionam ao contrário, já que: (i) várias lesões somadas atingem a totalidade do SFN; (ii) a lei nada diz a respeito dessa proporcionalidade; (iii) a adoção desta linha minoritária esvazia a proteção penal proposta.3

Além disso, nem todos os crimes são especiais, por isso, o art. 25 afirma que são penalmente responsáveis, nos termos da lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes. Assim se dá quando há referência expressa, como nos arts. 5º e 17, ou quando a condição de administrador, como nos arts. 4º, 6º, 9º e 11.

Art. 3º

Este artigo puni aquele que divulga informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira. O sujeito ativo, que pode ser qualquer pessoa, torna público, espalha, informação falsa, inverídica, incompleta ou omissiva por meio de qualquer meio, como rádio, imprensa, internet, televisão, etc. Atenta-se que notícia negativa ou sigilo, vide art. 18, não geram a tipificação.

Destaca-se que a consumação independe de resultado naturalístico o (TRF2, AP 20020201040573-6, Chalu Barbosa, OE, u., 27/02/2003; TRF3, AC 20006181001250-0, Nabarrete, 5ª T., u., 01/09/2003). Por outro lado, exige dolo específico, e caso não presente, é impossível incriminar os agentes.

Durante anos a empresa divulgou em seu portal relacionamento de investidores dados diversos do que são reais. E se, em outra situação houvesse a falsificação, mas não a divulgação? Não ocorreria esse crime, não impedindo outro, como o do art. 10. Ademais, este crime as Americanas é sujeita passiva secundária. Pune-se aquele que, por exemplo, divulga mensagem falsa a vários destinatários para prejudicar a empresa. Caso parecido seria aquele da TradersClub x Empiricus.

Art.4

O bem jurídico aqui tutelado é o patrimônio coletivo, especialmente dos investidores. O polêmico - visto ser excessivamente aberto - crime de gerir fraudulentamente instituição financeira é crime próprio, isto é, exige que tenha sido cometido pelas pessoas elencadas no art. 25. Nada impede, porém, a participação de terceiros fora da administração, haja vista o art. 29 e 30 do Código Penal

Cabe atentar que a mera função e posição pode gerar responsabilidade penal objetiva, nesse sentido, o poder decisório - acrescido de diretrizes determinadas pela instituição - nos dá o norte e certeza da imputação.

A conduta é gerir, ou seja, dirigir e exercer controle, e fraudar é um ato de má-fé de enganar ou prejudicar terceiro. A resolução 62/2022 da CVM diz que:

operação fraudulenta: aquela em que se utilize ardil ou artifício destinado a induzir ou manter terceiros em erro, com a finalidade de se obter vantagem ilícita de natureza patrimonial para as partes na operação, para o intermediário ou para terceiros;

Prova-se, portanto, o ardil com alteração da verdade ou natureza de documentos e operações. Por ser um crime formal e de perigo, independente ocorrência de dano, além de que - em regra, há posições contrárias - se exige conduta através da habitualidade, não apenas um ato isolado. Se assim for, atenta-se, não cabe crime continuado.

Ademais, pode ocorrer gestão fraudulenta por omissão? Para Bitencourt não há previsão legal, em razão do princípio da legalidade. Ocorre, no entanto, a discussão se é passível a existência na modalidade de crime omissivo impróprio, o que há jurisprudência (TRF-3 - HABEAS CORPUS: HC 5023496-21.2018.4.03.0000 SP).  Por outro lado, atenta-se que o elemento subjetivo é dolo livre e consciente de gerir fradulentamente, e deve ser provado.

No mesmo artigo temos a gestão temerária em parágrafo único. Temerário é aquilo arriscado de modo excessivo, que ultrapassa limites dos riscos aceitáveis. Mais uma vez criticamos por ser aberto demais o tipo, entretanto, o crime deve ser tratado a partir de caso a caso, observando o contexto. Nas Americanas existe essa probabilidade.

Aliás, não se requer obtenção de vantagem ou observar consequente prejuízo. O dolo, frisa-se, pode ser até dolo eventual. (STJ,RHC 6.368, Cernicchiaro, 6ª T., u., DJ 22/09/1997; STJ, REsp 706.005, Dipp,5ª T., u., 24/06/2005_

Art. 6º

Este crime trata de induzir ou manter em erro, sócio, investidor ou repartição pública competente, relativamente a operação ou situação financeira, sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente. Isso nos remeta ao ato de Sergio Rial divulgar as incoerências dos balanços contábeis.

Novamente é um crime especial do art. 25 em decorrência lógica. Induzir ou manter a erro, ou seja, realizar percepção de falsa realidade, seja pela sonegação da informação, seja por prestar informação. Dessa maneira, incabível modalidade culposa e desnecessário obtenção financeira.

Além disso, poderá ser absorvido pelo crime de sonegação, conforme o a julgado TRF4, AC 200570000342075, Néfi, 7ª T., u.10/12/2009.

Art 9º

É um tipo especial de falsidade ideológica, vejamos:

Art. 9º Fraudar a fiscalização ou o investidor, inserindo ou fazendo inserir, em documento comprobatório de investimento em títulos ou valores mobiliários, declaração falsa ou diversa da que dele deveria constar

O tipo tutela a inviolabilidade e a credibilidade do mercado de capitais.  Títulos e valores mobiliários podem ser certificados e extratos de ação, debêntures, notas promissórias. A mera inserção de declaração falsa ou diversa - sem necessidade de prejuízo - já gera consumação.

Art. 10

Outro mais específico na parte da falsidade está o art. 10, vez que fazer inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos contábeis de instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de distribuição de títulos de valores mobiliários é crime. Não se exige prejuízo ou vantagem de outro.

Pressupõe aqui como as pessoas mencionadas no art. 25 como sujeito ativo. Vale dizer que os auditores independentes externos não são responsáveis, de acordo com jurisprudência do STJ (HC 125.853, Napoleão, 5ª T., u.02/02/2010). Entretanto, caso a PwC tenha dolo  no caso das Americanas, isso é questionável. Aliás, na hipótese de "caixa 2", estamos do crime do art. 11 da LCSFN.

Nos parece, portanto, que a divulgação dos elementos ausentes na contabilidade das Americanas somada disseminação podem ter produzido esse crime, inclusive, em concurso, consoante arts. 69, 70, 71. Cabe atentar que demonstrativos contábeis são, dentre outros: (i) balanço patrimonial; (ii) demonstração de resultado; (iii) demonstração de lucros e prejuízos acumulados.

Conclusão

Apontamos inúmeros crimes neste e naquele texto de Insider Trading. Muitos deles deverão ser combinados e em concurso material, formal e crime continuado. Além disso, a imputação passará por crimes meios, que serão absorvidos e será hercúleo a responsabilidade de cada sujeito no caso Americanas. Não se deve, frisa-se, buscar a responsabilidade objetiva, por isso, em futura denúncia, o Ministério Público é obrigado a detalhar as condutas dos sujeitos ativos e provar se havia ou não papel de garantidor.

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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/380798/americanas-a-possivel-responsabilidade-criminal-dos-diretores 

2 Crimes contra o sistema financeiro nacional & contra o mercado de capitais / Cezar roberto Bitencourt, Juliano Breda. - rio de Janeiro : lumen Juris, 2010., p. 19.

3 Crimes Federais/José Paulo Baltazar Júnior - 11 ed - São Paulo: Saraiva, 2017, p. 591

4 Crimes contra o sistema financeiro nacional & contra o mercado de capitais / Cezar roberto Bitencourt, Juliano Breda. - rio de Janeiro : lumen Juris, 2010., p. 42

José Maurício Linhares Barreto Neto

VIP José Maurício Linhares Barreto Neto

É Coordenador da Promoção da Integridade da cidade de São Paulo, Mestrando FGV/SP, Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Criminalidade, sócio-fundador do Linhares Barreto Advogados.

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