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A primazia do autorregramento da vontade na celebração de convenção processual sobre meios probatórios

Se há convenção que afasta a produção de prova supostamente relevante à solução da lide, não cabe irresignação com fundamento no princípio da ampla defesa.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Atualizado em 7 de fevereiro de 2023 13:15

Quando da edição do novo Código de Processo Civil, o espírito do legislador de 2015 buscou trazer ao ordenamento jurídico institutos capazes de permitir às partes processuais mecanismos para uma demanda ainda mais cooperativa e efetiva, à luz do previsto em seu artigo 6º, além de demais princípios basilares que consagram as garantias fundamentais do processo.

Vale dizer que, no CPC de 1973, exageradamente subjugado à forma e, por consequência, pouco eficiente, permitia-se a celebração de negócios jurídicos processuais desde que tipificados, não restando qualquer margem à autonomia da vontade para além do que estava expresso na legislação.

A exemplo da nova sistemática do processo civil, uma das normas de maior inovação no CPC está contida no artigo 190, que ampliou as hipóteses de convenções processuais, permitindo às partes a customização das regras sobre ônus, poderes, faculdades e deveres no bojo da ação, desde que o objeto da lide trate de direitos que admitam autocomposição - os chamados direitos disponíveis -, excetuando-se, assim, composições que versem sobre direitos indisponíveis.

No que diz respeito ao ajuste entre particulares sobre seus ônus enquanto partes processuais, a convenção sobre a produção de prova vem sendo objeto de aprofundado estudo doutrinário, dividindo-se os entendimentos quanto ao nível de restrição da liberdade para limitar os meios probatórios que deve ser conferido a autores e réus, levando-se em consideração o poder instrutório do juiz e o interesse público inerente ao processo.

Nesse sentido, cabe salientar que o CPC/2015, diferentemente do Código anterior, foi promulgado sob a vigência da Constituição Federal de 1988, a qual traz, no caput de seu artigo destinado aos direitos fundamentais (art. 5º), a garantia inviolável à liberdade e à igualdade de todos. Assim, considerando a acertada tendência à constitucionalização do direito privado, é inequívoca a conclusão de que as novas normas processuais civis se inspiraram nos valores da Carta Magna para dar maior autonomia aos litigantes.

Contudo, disso decorre a indagação acerca da (não) possibilidade de sobreposição da vontade dos particulares em desfavor do interesse e finalidade públicos, em especial o princípio da segurança jurídica, que se perfaz a partir da coisa julgada.

Isso porque, consoante é brilhantemente lecionado por Marinoni1, lhe parece plenamente possível que a restrição dos meios de provas pelas partes possa influir na convicção do magistrado ao decidir a demanda, o que geraria uma prestação de tutela jurisdicional imperfeita, tornando a coisa julgada inviabilizada.

Como exemplo, pense-se no caso de as partes decidirem que não deve haver produção de prova pericial no processo que integram, mas tão somente os demais meios probatórios. A perícia, contudo, pode se mostrar essencial à elucidação da controvérsia, e sua não realização faria com que o juiz decidisse de maneira precária, se afastando da verdade real dos fatos, e, portanto, inviabilizando a coisa julgada.

Consequentemente, a segurança jurídica restaria vilipendiada, o que por certo influenciaria de maneira negativa na formação de precedentes judiciais, e, com isso, na solução de litígios de terceiros, subsistindo grave óbice à tutela da finalidade pública. Dessa forma, demonstra o professor que, à luz do caput do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, a ausência de segurança jurídica decorrente da limitação da convicção judicial ofende os princípios constitucionais da liberdade e igualdade.

Voltando-se ao exemplo dado, caberia ao magistrado se sobrepor à vontade dos particulares, ponderando e concluindo que a prova pericial se mostrou imprescindível à elucidação do imbróglio objeto de sua tutela jurisdicional, com a devida fundamentação para tanto.

Com efeito, o processualista também fundamenta seu posicionamento acerca da relativização da convenção sobre provas no art. 503, § 2º, CPC, que trata da possibilidade de exclusão da coisa julgada na hipótese de "restrição à produção de prova".

O negócio jurídico processual referente aos meios probatórios, portanto, deve ser utilizado para delimitar a prova fundamental e inafastável para o devido esclarecimento dos fatos controvertidos do litígio, estando autorizado o magistrado a concluir pela necessidade da produção de uma prova, eis que a convenção contrária obstaria sua convicção.

Paralelamente, há doutrinadores que optam por posicionamento díspare quanto à questão.

Em trabalho publicado na Revista Eletrônica de Direito Processual2, Marco Félix Jobim e Bruna Bessa de Medeiros, fazendo referência justamente a uma das obras de Marinoni, partem de um ponto de vista filosófico a fim de concluir pela necessidade de vinculação, tanto das partes quanto do juiz, às restrições aos meios de prova definidos por convenção processual, prestigiando o princípio da liberdade.

No artigo, discorre-se sobre a impossibilidade de se alcançar a verdade real dos fatos, porquanto seria inviável desvincular-se das subjetividades de cada indivíduo - partes, juiz ou testemunhas -, ao tentar reconstruir acontecimentos passados. Em contrapartida, entendem que os meios probatórios se destinam a comprovar tão somente as alegações trazidas pelas partes e controvertidas entre si, e, com isso, possibilitar o convencimento do juiz com base na verossimilhança de cada prova.

Ainda, apontam que o próprio Código traz limitações à produção probatória, por diversos motivos, inclusive o direito a não produzir prova contra si mesmo. No mesmo sentido, aduzem que, com fundamento no princípio do devido processo legal, a prova não se trata de um dever das partes, mas tão somente um ônus.

Ou seja, o poder instrutório do juiz sofre restrições do próprio diploma, o que põe em xeque o entendimento de que a tutela jurisdicional deve se basear, a todo e qualquer custo, na verdade real dos fatos. Em complementação a isso, há alto grau de subjetividade na reconstrução dos acontecimentos pretéritos, o que é inerente à pessoa humana e óbice que jamais será completamente superado pelo Poder Judiciário.

Para além disso, o entendimento dos autores se fundamenta, em grande medida, na valorização da autonomia da vontade, seguindo a esteira vanguardista, e com forte valoração constitucional, do CPC/15.

No Estado Democrático de Direito, em suas palavras, o juiz deve aplicar não apenas a norma fruto do processo legislativo, mas também aquela decorrente da livre convenção das partes. Em igual sentido, levando-se em consideração que uma das regras basilares do ordenamento jurídico é a ideia de que um direito é capaz de restringir outro, aplica-se à hipótese a possibilidade do direito ao autorregramento da vontade (à luz do princípio da liberdade) ser valorizado em face de outras garantias legais.

Ainda, aduzem que invariavelmente a convenção das partes sobre provas atinge o bojo do poder instrutório do juiz, mas que, diante dessa situação, deve prevalecer a ideia de que esse se submete àquela, concluindo-se pela vinculação do juiz ao negócio jurídico processual, ressalvadas as exceções legais, a exemplo do caso de vulnerabilidade da parte que celebra a convenção (trazida não só pelo CPC, mas também pelo art. 51, VI, do Código de Defesa do Consumidor).

Diante da contraposição doutrinária, e numa interpretação à luz dos princípios constitucionais de 1988, norteadores das normas processuais, entende-se que a valorização da autonomia da vontade das partes para a convenção de meios probatórios é ideia que mais se aproxima do espírito inovador do legislador do CPC/15, desde que com a adequada representação processual e não se tratando de casos de vulnerabilidade processual exacerbada.

Para além disso, se há convenção que afasta a produção de prova supostamente relevante à solução da lide, a coisa julgada decorrente da convicção fragilizada do magistrado é fruto, naturalmente, da vontade da parte sucumbente em convencionar livremente, não lhe cabendo irresignação com fundamento no princípio da ampla defesa.

Nada obstante, à vista da ponderação de Marinoni sobre possíveis prejuízos à formação de precedentes, e, por consequência, a casos análogos futuros, a conclusão empírica sobre eventuais violações à segurança jurídica e à tutela da finalidade pública demandará maior tempo, com estudo de casos concretos em que haja autorregramento da vontade das partes em decidir como pretendem comprovar, no caso do autor, seus direitos, ou, no caso do réu, de fato extintivo, impeditivo ou modificativo do direito do autor.

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1 MARINONI, Luiz Guilherme. "A convenção processual sobre prova diante dos fins do Processo Civil". In Revista de Processo. ano 44. N. 288. Fevereiro 2019. pp. 127-152

2 JOBIM, Marco Felix. MEDEIROS, Bruna Bessa de. "O impacto das convenções processuais sobre a limitação de meios de prova". In Revista Eletrônica de Direito Processual. Volume 18, número 1. Janeiro a Abril de 2017. pp. 325-345.

João Mello

João Mello

Advogado do escritório Leonardo Amarante Advogados Associados.

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