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Licenças personalíssimas: uma análise sobre a possibilidade de compartilhamento com terceiros

Na ausência de anuências expressas, ante os comentários ventilados, tais convênios devem ser interpretados com base nos princípios já consagrados da matéria contratualista.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Atualizado às 08:25

O contexto pandêmico, notadamente marcado pelo distanciamento social, tratou de impulsionar os regimes de teletrabalho. Para o correto desenvolvimento de suas atividades, entes públicos e privados passaram a demandar de sobremaneira a utilização de serviços digitais. Ante a essa crescente transição, os desenvolvedores de software têm despendido tempo e capital na criação de novas tecnologias que, uma vez disponíveis no mercado, são usualmente comercializadas como licenças.

Este texto tem por finalidade explorar o uso de licenças personalíssimas, isto é, licenças de titularidade exclusiva, cuja principal natureza é a determinação prévia, por parte do prestador, dos usuários que utilizarão em conformidade o serviço. Em contrapartida, o avanço da interconexão, seja no ambiente laboral ou familiar, popularizou extraordinariamente a prática do compartilhamento de logins - evidentemente, prática que ocasiona a frustração dos legítimos interesses das empresas desenvolvedoras, tornando imperativo a análise do tema.

Nesta seara, a título de exemplo, com vistas a mitigar mais danos, a plataforma Netflix estuda cobrar multas de usuários que compartilharem login no Brasil, assim como vem praticando em outros países (EXAME, 2022). Esse meio de regulação foi recebido com surpresa pelo público geral, pois o compartilhamento indiscriminado das chaves de acesso é um ato recorrente. Porém, de há muito, tal feitura é expressamente vedada pelo prestador que, inclusive, tratou de normalizá-la, conforme disposto no art. 4.2 dos Termos de Uso:

O serviço Netflix e todo o conteúdo acessado por intermédio do serviço Netflix destinam-se exclusivamente para uso pessoal e não comercial, portanto, não podem ser compartilhados com pessoas de fora da sua residência (...). (grifo nosso)

No ordenamento pátrio, a proteção jurídica dos programas de computador encontra-se chancelada na Lei n. 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, geralmente chamada de Lei do Software, que dispõe sobre a proteção da Propriedade Intelectual de tais ativos, bem como sua comercialização. Houve a opção, por parte do legislador, de prosseguir com entendimento adotado no acordo TRIPS e equalizar o regime de proteção de software ao conferido às obras literárias, respaldado, também, na Lei de Direitos Autorais. Não é objeto do presente texto, todavia, adentrar às questões atinentes aos direitos morais, mas, sim, à óptica patrimonial.

Os termos de uso destas licenças, também chamados de End User License Agreement (EULA), ou contratos de licenciamento, cumprem um papel fundamental na regulamentação da relação entre desenvolvedor e usuário, sendo responsável por delimitar as garantias e as obrigações das partes. Embora tais termos de uso, por vezes, sejam classificados como contrato de adesão, uma vez que limitam o poder de negociação dos aderentes, suas cláusulas devem ser respeitadas, a fim de também garantir segurança jurídica ao proponente, salvo se consideradas abusivas pelo ordenamento jurídico. Revela-se, ademais, que nessa transação, em regra, não ocorre a transferência de certos direitos e/ou titularidade, mas tão somente a possibilidade de o licenciado usar o software.

Quando os Termos de Uso de uma licença mencionam, explicitamente, que a conta é de uso exclusivo do usuário, não devendo, portanto, ser compartilhada com terceiro, tem-se uma licença personalíssima, que pode ou não ser acessada por mais de um aparelho. Não reside nenhuma dúvida quanto à legalidade da limitação prevista no contrato, precipuamente porque a maioria das empresas que licenciam depende da renovação e de novos usuários para o exercício regular do negócio. Nesse cenário, o compartilhamento indevido de login seria um abuso de direito, isto é, aproveitamento indevido contrário ao sistema jurídico.

Contudo, a temática torna-se mais instigante quando a ação de limitar o compartilhamento para terceiros ou alienígenas à relação previamente pactuada entre licenciante e licenciado não está taxativamente disposta nas cláusulas de utilização. Panorama este que poderá ser motivado por cláusulas imprecisas, cujo exercício hermenêutico torna-se limitado ou por ausência de atenção com a matéria. Não obstante, por vezes, StartUps que se dedicam ao desenvolvimento de softwares não contam com departamentos jurídicos robustos e, assim, tais regulações não são consideradas como prioritárias. Independente do fato gerador, impõe-se o seguinte questionamento em disputas desta natureza: a interpretação deverá se basear na égide consumerista ou não?

Ao verificar uma relação de consumo, o licenciante deverá descrever expressamente as condições que regerão a relação de exploração da obra intelectual. Isto pois, o Código de Defesa do Consumidor tratou de normatizar a descaracterização de cláusulas dúbias e de difícil interpretação, ao prever interpretação favorável ao consumidor no art. 47 e especial cuidado às normativas que atuam no sentido de proibir o exercício do consumo no art. 54, §4. Dessa forma, em caso de vedação do compartilhamento, tal proibição deverá ser de fácil e imediata interpretação, e, ainda, estando os desenvolvedores obrigados ao seu destaque. Ou seja, somente quando estes pontos forem previamente cumpridos, o interesse do desenvolvedor na limitação do compartilhamento de login terá amparo legal, como ocorre nos Termos de Uso supracitados da Netflix.  

Cabe, todavia, analisar quando a relação de consumo será aplicável. Em caráter geral, esse tipo de relação se impõe na existência de um consumidor, fornecedor e o objeto que será transacionado: produto ou serviço. Nota-se que o legislador cuidou de tipificar as características necessárias para a qualificação do "consumidor", seja de cunho material ou por equiparação. Em consonância, o Superior Tribunal de Justiça, através da aplicação da Teoria Finalista Mitigada, tem ampliado o conceito de modo a enquadrar a pessoa física ou jurídica que, quando do fato concreto, esteja em vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica em relação ao fornecedor, conforme Informativo no 548 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): 

DIREITO DO CONSUMIDOR. CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO DE CONSUMO ENTRE PESSOAS JURÍDICAS.

Há relação de consumo entre a sociedade empresária vendedora de aviões e a sociedade empresária administradora de imóveis que tenha adquirido avião com o objetivo de facilitar o deslocamento de sócios e funcionários. O STJ, adotando o conceito de consumidor da teoria finalista mitigada, considera que a pessoa jurídica pode ser consumidora quando adquirir o produto ou serviço como destinatária final, utilizando-o para atender a uma necessidade sua, não de seus clientes. No caso, a aeronave foi adquirida para atender a uma necessidade da própria pessoa jurídica - o deslocamento de sócios e funcionários -, não para ser incorporada ao serviço de administração de imóveis.

A partir do reposicionamento da obra intelectual em produto ou serviço, na condição de licenças, em consonância com o art. 3, caput, do Código de Defesa do Consumidor, esses objetos auxiliam no enquadramento do desenvolvedor em fornecedor. Isto pois, este sujeito, através do exercício da criação, passará a integrar o fluxo comercial habitual, contribuindo com a comercialização e a distribuição do invento.  

Por um outro lado, quando o aderente não é nem vulnerável e nem destinatário final, alegar relação de consumo não encontra fundamento, razão pela qual há termos de uso que são firmados estritamente sob a legislação cível, especialmente quando o aderente é uma empresa consolidada e especializada no segmento do software. A respeito deste entendimento, há julgados proferidos em Tribunais diversos, a exemplo desse recente proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

PROCESSUAL CIVIL. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CONTRATO DE LICENÇA DE USO DE SOFTWARE. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO CONFIGURADA. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. VALIDADE. PROVIMENTO. Recurso de agravo de instrumento contra decisão que, em ação de rescisão contratual cumulada com pedidos de restituição dos valores adimplidos e de pagamento de verba compensatória moral, reconheceu a existência de relação de consumo e, por via de consequência, afastou a arguição de incompetência do juízo fundada em cláusula de eleição de foro. A sociedade agravada, na qualidade de consumidor intermediário, visto que adquiriu o produto com o fim de dinamizar e instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição constante no artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor. Possível a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor a consumidores profissionais, porém, desde que demonstrada, em concreto, a vulnerabilidade ou hipossuficiência, o que não se verificou na presente hipótese. Não se estando diante de relação de consumo, e por não demonstrada a hipossuficiência da sociedade agravada ou a inviabilidade do acesso ao Poder Judiciário, deve-se reputar válida a cláusula de eleição de foro, mesmo em se tratando de contrato de adesão. Superioridade do porte empresarial de uma das contratantes, que também não é suficiente para afastar a cláusula de eleição de foro, vez que não demonstrada a incapacidade financeira, jurídica ou técnica da sociedade agravada para demandar na comarca indicada no contrato. Recurso provido.

(TJ-RJ - AI: 00684904020218190000, Relator: Des(a). ADOLPHO CORREA DE ANDRADE MELLO JUNIOR, Data de Julgamento: 09/06/2022, NONA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/06/2022)

Ou seja, por não se tratar de uma relação de consumo, o art. 47 do Código de Defesa do Consumidor não tem eficácia frente ao contrato. Por conseguinte, o compartilhamento de login de licenças personalíssimas, mesmo sem vedação contratual expressa, não encontra respaldo no ordenamento jurídico. Ao cominar a violação da boa-fé contratual e o dano injustificado aos interesses comerciais do desenvolvedor, torna-se evidente a caracterização do abuso de direito. Este contexto é enfatizado precipuamente porque os termos de uso deverão ser interpretados de forma restritiva1, de modo a proteger os titulares da obra, isto é, os desenvolvedores, conforme os artigos 4 e 49, V, da Lei de Direitos Autorais.

Em termos fáticos, o desenvolvedor que resolve celebrar um instrumento adotando regulações proibitivas no sentido de restrição no quantum de usuários, delimitação do raio geográfico de uso e/ou atribui ao seu ativo valores distintos de royalties baseados na outorga de uma ou mais condições, o faz exercendo regularmente sua titularidade patrimonial. E na ausência de anuências expressas, ante os comentários ventilados, tais convênios devem ser interpretados com base nos princípios já consagrados da matéria contratualista.

Ante ao exposto, considerando a possibilidade de incidência ou não de relação de consumo, recomenda-se que o documento regente das condições de utilização da licença entre o desenvolvedor e o usuário final - termos de uso ou contratos de adesão - seja dotado de clareza e de fácil entendimento, especificamente no que compete às normas proibitivas, a fim de garantir mais segurança jurídica, uma vez que o compartilhamento de login nos casos de licenças personalíssimas é um ato antijurídico indenizável, qualificado como violação de direitos autorais.

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1 Não raro, algumas vozes da doutrina ecoam no sentido da defesa de uma interpretação ampliativa da tutela autoral. Inobstante, tais autores tratam de equalizar a tutela autoral com a efetivação dos direitos sociais - notadamente, educação e cultura. Dessa forma, mesmo a frente crítica ao viés pro autorem é incapaz de descaracterizar o abuso de direito nos casos de danos injustificados aos interesses do desenvolvedor.

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BRASIL. Lei 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras providencias. Brasília: DF, 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9609.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.609%20%2C%20DE%2019,Pa%C3%ADs%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.

BRASIL. Lei 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília: DF, 1998. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm>.

EXAME. Netflix quer acabar com o compartilhamento de senha entre usuários. 2022. Disponível em: https://exame.com/pop/netflix-quer-acabar-com-o-compartilhamento-de-senha-entre-usuarios/. Acesso em: 02 jan. 2023.

SOUZA, Carlos Affonso Pereira. Abuso de Direito nas Relações Privadas: contratos, direitos autorais, relações de consumo, liberdade de imprensa, comércio eletrônico. Elsevier: Rio de Janeiro, 2013.

SOUZA, Carlos Affonso Pereira. Abuso do Direito Autoral. 2009. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

NETFLIX. Termos de Uso. 02 de novembro de 2021. Disponível em: https://help.netflix.com/pt/legal/termsofuse?rev=67337. Acesso em: 20 dez. 2022.

 

Victor Lima

Victor Lima

Líder da equipe de Antipirataria Digital e License Compliance da Kasznar Leonardos Advogados. Cofundador da LAPI-UFRJ.

Antonio Freitas

Antonio Freitas

Graduado em Relações Internacionais pela PUC/Rio. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Pesquisador e Colaborador de Contencioso da Kasznar Leonardos.

Rafael Lacaz Amaral

Rafael Lacaz Amaral

Advogado e Sócio de Kasznar Leonardos Advogados. Especializado em Contencioso Judicial em Propriedade Intelectual. Coordenador da equipe de Antipirataria Digital e License Compliance.

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