Novo Ano Judiciário - Reflexões sobre Justiça Criminal
Alavancar o acesso à Justiça é parte da construção de um Estado Democrático de Direito inclusivo e igualitário, capaz de incorporar às metas do Ano Judiciário o simbolismo da subida da rampa pelo Presidente da República que tanto emocionou o país.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023
Atualizado às 08:02
Há muitos temas candentes na Justiça Criminal, e nossa sugestão é marcar o Ano Judiciário de 2023 com um esforço inédito para estabelecer metas de democratização do acesso à Justiça para os próximos quatro anos. É preciso agir com coragem, mas sem reinventar a roda ou começar do zero a delimitação de prioridades e agendas que possam acelerar este processo.
Em 16 de janeiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atualizou seu portfólio de ações do programa Fazendo Justiça, elencando 29 frentes estratégicas para o ciclo de 2023. O programa, executado em parceria com a ONU e o Ministério da Justiça, busca acelerar transformações no campo da privação de liberdade. Os tribunais superiores, presididos pelas ministras Rosa Weber e Maria Thereza, dispõe do arcabouço de pesquisas produzidas pelo CNJ para nortear e instigar mudanças efetivas. Mesmo sem investimentos vultosos, o cenário está aberto para transformar e superar a máquina de moer carne (humana) que ainda caracteriza o sistema punitivo brasileiro.
Enquanto o STF zelava por preservar o regime democrático para todos os brasileiros, o STJ encampou com destemor a tarefa de fazer revisões profundas para assegurar postulados constitucionais como a presunção de inocência, o direito de produzir prova e a intimidade da casa contra o arbítrio estatal. Os julgados produzidos no último biênio, em especial, tiveram a coragem de incorporar a realidade à teoria, reconhecendo de maneira histórica o viés racista de um sistema que ainda não consagra o princípio da igualdade de todos perante a lei.
Não há injustiça maior do que privar uma pessoa de sua liberdade por um crime que ela não cometeu. O Innocence Project Brasil tem como foco o sentido contrário, de libertar cidadãos injustamente condenados que mofam nos presídios de norte a sul do país. Infelizmente, não são poucos. É um imenso e irrenunciável desafio encontrar caminhos para evitar erros tão dolorosos, aprimorando engrenagens da Justiça para minimizar a chance de erros. Esta é uma reflexão imperiosa neste início do Ano Judiciário, especialmente após os avanços recentes que tivemos nesta direção.
Destaque-se a reformulação da jurisprudência sobre o reconhecimento pessoal, incorporando estudos científicos que demonstram o caráter falho e passível de erro desse meio de prova e estabelecendo que a identificação feita ao arrepio das regras não pode justificar uma condenação (HC 598.886/SC, relator Ministro Rogerio Schietti). Joguemos luz também sobre a reafirmação do direito constitucional à inviolabilidade do domicílio, com limites para o ingresso da polícia sem mandado judicial sob a pretensa autorização franqueada por alguém acuado (HC 5112.418/RJ, Ministro Rogerio Schietti).
Outra contribuição paradigmática foi a definição do cômputo em dobro do período de privação de liberdade para pessoa presa em situação degradante, aplicando-se em boa hora resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos (RHC 136.961/RJ, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca). Não menos importante foi a aplicação da teoria de origem francesa da perda de uma chance, reafirmando o ônus do órgão acusador de produzir as provas que demonstrem a dinâmica dos fatos narrados na denúncia (AREsp 1.940.381/AL, Ministro Ribeiro Dantas).
Esses julgados encontraram ampla acolhida nas duas Turmas Criminais do STJ, avançando milhas na construção de entendimentos mais conectados com a realidade do país e de seus díspares territórios. Só para se ter uma ideia, o novo entendimento sobre a prova de reconhecimento já foi replicado em mais de 300 decisões no âmbito do STJ. Tudo isso foi feito sem ativismo judicial ou contorcionismos interpretativos.
Questiona-se como amplificar o alcance das decisões das Cortes Superiores em matéria penal sem transgredir a independência judicial. Por mais pueril que possa parecer, a resposta está no diálogo. Os primeiros meses do Ano Judiciário de 2023 se prestam a encontros institucionais que pacifiquem o dissenso sobre a melhor forma de aplicar a lei, buscando compreender e debater as razões por trás da formação dos precedentes.
Com base no extenso diagnóstico do Governo de Transição, o Ministério da Justiça criou a Secretaria de Acesso à Justiça. A nova Secretaria pode liderar tal esforço, em conjunto com o time plural e comprometido do Ministro Flavio Dino, apostando no diálogo respeitoso e no pressuposto de que os atores do Direito, como regra, desejam construir uma sociedade mais justa, segura e humana. Alavancar o acesso à Justiça é parte da construção de um Estado Democrático de Direito inclusivo e igualitário, capaz de incorporar às metas do Ano Judiciário o simbolismo da subida da rampa pelo Presidente da República que tanto emocionou o país.
Dora Cavalcanti
Advogada criminal, sócia da Cavalcanti Sion Advogados.