Modalidade contratual "livre escolha" oferecida pelas operadoras de saúde
De tão viva, a discussão tem batido às portas do Poder Judiciário à procura de pacificação.
terça-feira, 24 de janeiro de 2023
Atualizado às 14:07
Introdução
De uns tempos para cá, muito se tem discutido sobre a modalidade livre escolha de prestadores de serviço de saúde e o respectivo reembolso de despesas. Basta uma simples pesquisa nos sites de busca para aparecerem, na tela, inúmeros artigos sobre o assunto.
De tão viva, a discussão tem batido às portas do Poder Judiciário à procura de pacificação, o que dificilmente ocorrerá nas atuais condições de pressão e temperatura: em um toma lá da cá, ambos os lados, operadoras de plano de saúde e prestadores não credenciados, se debatem em longas e elaboradas discussões jurídicas. E o fazem por uma razão simples: ambos têm razão, daí as decisões em vários sentidos que só se prestam a pôr lenha na fogueira.
É preciso, de pronto, afirmar que as operadoras, tão bem representadas pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), têm razão quando bradam por medidas que coíbam as fraudes que, cada vez mais, sangram seus cofres. Por outro lado, na mesmíssima proporção, têm razão as clínicas, laboratórios e profissionais da saúde que, embora não integrem as redes credenciadas, agem imbuídos da boa-fé: a justiça, portanto, está na medida das coisas!
Dito de outra forma, ambos os lados miram o mesmo inimigo: a fraude. E o erro, a nosso sentir, está na incapacidade de diálogo entre aqueles que, diuturnamente, trabalham em busca da efetividade do direito fundamental de acesso à saúde.
Ironicamente, enquanto as operadoras correm por um lado e os prestadores não credenciados correm por outro, o largo vão que se forma entre esses players é ocupado por aqueles indesejados que praticam fraudes cada vez mais sofisticadas, com o objetivo de prejudicar a parte hipossuficiente: o consumidor.
Não há mais espaço para essa visão pobre e binária de "nós e eles". O momento pede sensatez. Se há previsão contratual de livre escolha de prestadores, é preciso que, juntos, operadoras e prestadores não credenciados, estabeleçam boas práticas para coexistirem. O segredo para isso? Equilíbrio.
Certa vez, o famoso operador da bolsa de valores americana, Nicholas Nassim Taleb, questionou: "por que os Chefes de Estado e pessoas muito ricas, com acesso a todos esses cuidados médicos, morrem com a mesma facilidade que as pessoas normais?" E a resposta foi: "Bem, parece que acontece por causa de medicação e cuidados médicos excessivos."1
É o equilíbrio que faz a cura possível.
Em 22/11/22, por ocasião da conferência promovida pela FenaSaúde sobre prevenção e combate às fraudes na saúde suplementar2, Milva Pagano3 e Antonio Britto4 pontuaram a necessidade de racionalizar as demandas por exames, assim como a necessidade de tornar os procedimentos auditáveis e transparentes, sendo certo que a questão das fraudes contra convênios não será resolvida apenas pela persecução penal.
E, acrescentamos, a via da persecução penal é subsidiária, não se pode perder de vista a diretriz constitucional, sob pena de banalizar a força do Direito Penal. Claro que há casos em que a intervenção penal se faz necessária, mas desde que as vias coercitivas mais brandas se mostrem insuficientes, de maneira a materializar a justa causa que autoriza o jus puniendi.
I. Reembolso sem desembolso
Dentre as inúmeras práticas fraudulentas existentes, recentemente ganhou notoriedade aquilo que Rodrigo Falk Fragoso chamou de "fraude do reembolso sem desembolso"5. Segundo o Advogado, essa prática inviabiliza a proteção contida no Código de Defesa do Consumidor6 (que trata do direito à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços), além de configurar a conduta criminosa de propaganda enganosa7.
Em sua visão, o crime de propaganda enganosa se configura, na medida em que "[...] o prestador engana o consumidor ao afirmar que ele não terá que pagar pelos serviços", quando "[o] dado essencial omitido é o de que o contrato de seguro exige prévio desembolso. A omissão é juridicamente relevante porque induz o consumidor a aderir a prática não coberta pelo contrato. A ocultação dessa informação (hidden knowledge) constitui instrumento para o atingimento de propósitos financeiros escusos. Um vício de consentimento que prejudica o consumidor porque, com a eventual recusa da seguradora, ficará ele responsável pelo pagamento [...]"8 de valores "fixados não em razão do jogo da oferta e demanda, e sim pelas tabelas máximas de reembolso contratuais"9.
E, aqui, temos que admitir, Fragoso tem razão em grande parte de suas ponderações!
Suas preocupações, de fato, são legítimas, pois, de fato, há muita fraude em meio ao modelo de negócio da livre escolha por parte dos prestadores de serviços de saúde. Fragoso peca, no entanto, no ponto em que generaliza os players dessa modalidade que, frise-se, é absolutamente legal.
Sim, é bom que se diga, com todas as letras e grifos: o modelo de negócio de prestação de serviços de saúde por livre escolha é lícito e tanto quem oferece essa modalidade, quanto quem dela usufrui não comete crime. Essa é a regra!
E o que é uma fraude, senão a prática deturpada de uma conduta originalmente idônea; uma adaptação maliciosa de uma prática ética?
São as circunstâncias do caso concreto que vão diferenciar os prestadores idôneos, dos criminosos. São elas que irão, como se diz por aí, separar o joio do trigo.
A primeira questão a ser observada é a seguinte: se o prestador não credenciado informa as condições da contratação, inclusive sobre os valores de sua tabela própria de preços, a ponto de não viciar o consentimento do consumidor, não comete crime, ainda que, para isso, se valha de estratégia de marketing.
Isso porque a estratégia de marketing objetiva atrair o paciente para a rede não credenciada, o que pode ser feito, inclusive, de forma persuasiva. Já a propaganda enganosa, para restar caracterizada, exige a demonstração do dolo (conhecimento e vontade) de viciar a capacidade de livre escolha do consumidor.
Assim, se a existência de uma previsão penal visa a proteger um bem jurídico (no caso, as relações de consumo), a ausência de um vício de consentimento relativo à prestação de informações claras sobre as condições do negócio contratado é o que caracteriza a licitude dessa modalidade de contratação. Em outras palavras, o modelo de livre escolha, por si só, não é criminoso.
E é importante que se afirme esse fato, pois a crítica feita por Fragoso pode dar a impressão de que se trate de conduta criminosa, constatação equivocada que, automaticamente, parece proteger o fluxo de caixa das operadoras e não o consumidor, hipótese diametralmente oposta ao que estabelece o art. 1º, I, da lei 9.656/98.
Demonizar esse modelo de negócio como um todo não é o melhor caminho para coibir fraudes. Isso sim pode configurar propaganda apta a enganar o consumidor que, para ser convencido a contratar a operadora, é iludido com a possibilidade de usufruir qualquer serviço de saúde de sua preferência, mas, na prática, se vê compelido a usar apenas a rede credenciada, por medo de ser acusado de criminoso pela sua própria operadora contratada.
O sistema de livre escolha conta com autorização regulamentada no art. 12, VI, da Lei n.º 9.656/98, Anexo I, da Instrução Normativa 23, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), assim como nos itens 3, 4, 5 e 18 do Entendimento DIFIS n.º 8, de 21 de fevereiro de 2017, da mesma agência reguladora.
Merece destaque o item 18 dessa DIFIS que, em resumo, afirma que a operadora poderá exigir que o pedido de reembolso deva ser instruído ao menos com um documento hábil e idôneo que comprove a efetiva ocorrência da despesa. Frise-se: documento que comprove a despesa.
Aqui, surge um conflito interpretativo próximo àquele relacionado ao bem jurídico: de um lado, com o objetivo de dar efetividade ao acesso à saúde, se interpreta que despesa seja a própria ocorrência do serviço; por outro lado, com o objetivo de controlar o fluxo de caixa das operadoras, se interpreta que despesa seja o prévio pagamento do serviço.
Vamos ao exemplo para ficar mais claro. Imagine-se um laboratório não credenciado que atenda um consumidor que, sem vício de vontade, concorda com as cláusulas contratuais e faz seus exames lá. Há um custo para a prestação desse serviço, custo este suportado pelo laboratório, embora o consumidor não tenha feito o pagamento prévio. É incontestável que a despesa existiu e precisa ser reembolsada.
Ora, sejamos razoáveis, principalmente com os consumidores menos abastados que, com dificuldade, pagam seus planos de saúde e não querem se tratar na rede credenciada por quaisquer motivos que seja (distância, profissional, laboratório de confiança etc.). Não é porque não fizeram o pagamento prévio pela realização de seus exames que as despesas deixaram de existir, sendo esse o fato que justifica o reembolso: o fato de que existiu uma despesa que precisa ser reembolsada, como bem estabelece o item 18 do entendimento DIFIS n.º 8/2017, da ANS.
Por razões semelhantes, entende-se que não agiu com o costumeiro acerto a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar o Recurso Especial 1.959.929/SP.
Nesse julgado (cujo alcance se limita às partes daquele litígio, pois não tem caráter vinculante, embora possa influenciar decisões futuras), traçou-se um paralelo entre a situação aqui tratada e a cessão de direito ao reembolso do seguro DPVAT sem que haja o desembolso. Contudo, a falsa simetria do paralelo é evidente: o DPVAT é um seguro obrigatório, firmado com entes públicos e que, como em todas as disciplinas regidas pelo Direito Público, as partes envolvidas só estão autorizadas a fazer aquilo que é expressamente permitido.
Na relação entre entes particulares (que é o caso do contrato firmado entre operadora e consumidor ou entre prestador não credenciado e consumidor) o sistema é invertido, na medida em que tudo é permitido, exceto o que a lei proíbe, daí o erro da decisão da 3ª Turma do STJ que, claramente, fixou seu entendimento em premissa errônea, na linha do entendimento defendido por Fragoso10 que, em suma, diminui a eficácia do princípio lícito da livre escolha.
II - Reembolso assistido
Ainda segundo Rodrigo Falk Fragoso, para fechar a engenharia criminosa e finalmente obter a vantagem tida por ilícita, o prestador se utilizaria de uma ferramenta que ele chamou de "reembolso assistido", consistente no auxílio oferecido ao consumidor para requerer o reembolso junto à operadora, por meio do uso de seu login e senha de acesso à plataforma digital da operadora.
Ora, é preciso considerar que os sinuosos caminhos burocráticos para formalizar solicitações de reembolso muitas vezes acabam por desencorajar a sua utilização por parte dos assegurados, daí a conveniência do serviço de auxílio gratuito oferecido aos consumidores por parte dos prestadores de saúde.
Erra, Fragoso, ao taxar ilícita essa comodidade, quando, na verdade, o tal "reembolso assistido" é a materialização do que dispõe o próprio Código de Defesa do Consumidor11, no sentido de ser uma obrigação das operadoras de saúde a prestação adequada dos serviços12.
O "reembolso assistido", portanto, se presta a suprir a lacuna criada pelas operadoras que quase sempre disponibilizam plataformas eletrônicas cujo manuseio do sistema de reembolso por parte do usuário pode ser difícil - seja em razão da interface da plataforma; seja porque requer boa conexão à internet; seja porque necessário o upload de documentos (complicado para ser realizado por um celular, por exemplo, demandando um notebook ou desktop); seja porque o usuário pode ter dificuldade com o uso dos meios digitais (como a maioria dos idosos, por exemplo) etc.
Criminalizar condutas que, em verdade, são lícitas, não parece contribuir com a discussão posta e, como já se disse, a fraude é o inimigo comum que deve ser combatido pelas operadoras, em conjunto com os prestadores de saúde não credenciados que oferecem serviços em conformidade com a lei.
Conclusão
A correção e justiça nessa contenda, repousa, justamente, no afastamento de generalizações levianas e que confundem disposições cíveis com penais; repousa, também, no estreitamento de relações entre sujeitos sérios e dispostos a coibir práticas que são verdadeiramente fraudulentas, relações que, estreitadas, poderiam cooperar no cenário de elaboração de procedimentos claros que escapem das zonas cinzentas. Nos parece, portanto, ser o equilíbrio a cura para esse males.
1 TALEB, Nassim. Antifrágil. Tradução de Eduardo Rieche. 1 ed. Rio de Janeiro: Best Business, 2014, p. 166.
2 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dcAM8aQyXfU. Acesso em 17.01.2023, às 20:18.
3 Diretora Executiva da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (ABRAMED).
4 Diretor Executivo da Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANAHP).
5 FRAGOSO, Rodrigo Falk. A fraude do reembolso sem desembolso. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/358906/a-fraude-do-reembolso-sem-desembolso. Acesso em 17.01.2023, às 17:43.
6 "Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (...)"
7 "Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: (...) VII - induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária; (...)" - Lei n.º 8.137/90.
8 FRAGOSO, Rodrigo Falk. Ob. cit.
9 Idem.
10 FRAGOSO, Rodrigo Falk. Ob. cit.
11 "Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...) IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo; (...)".
12 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral. (...)" Código de Defesa do Consumidor.