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A globalização, as novas tecnologias e a proteção das marcas

A presente questão merece reflexão das empresas detentoras das marcas objeto de cuidado e proteção, para que não tenham surpresas e se vejam surpreendidas na indesejável circunstância de serem impedidas de usar suas próprias marcas no ambiente virtual.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Atualizado às 08:41

Atualmente, muito se fala sobre estarmos vivendo em plena época da "transformação digital", que pode ser definida, basicamente, como o processo de usar tecnologias digitais para mudar a maneira como as pessoas, empresas e organizações operam e se relacionam.

Também não é novidade que a pandemia serviu como catalizador para a transformação digital. Um dos efeitos do isolamento social foi forçar as pessoas a operar banco, fazer reuniões de trabalho, estudar e até promover encontros entre amigos e familiares de forma virtual e por meio de aplicativos de seus telefones celulares.

Além disso, muitas empresas também tiveram que se adaptar rapidamente para atender às mudanças no comportamento do consumidor, incluindo o crescimento do comércio eletrônico e do uso de aplicativos de delivery de alimentação e compras.

Nesse contexto é que muito avançaram as inovações tecnológicas, por exemplo,  com os aplicativos de reunião virtual, de comércio eletrônico, de transportes, de compra de alimentos, open banking, Pix, o promissor metaverso e agora o avanço, a passos largos, das Inteligências Artificiais.

Assim, muitas áreas da sociedade sofreram modificações, tiveram que se adaptar e foram impactadas.  Entre os setores mais impactados, embora muitas pessoas ainda sequer tenham percebido essa particularidade, o de Propriedade Intelectual merece especial destaque e cuidados.

Sem entrar no mérito de questões como o Direito Autoral das Inteligências artificiais, ou a territorialidade no metaverso, que desfiam estudos particulares e com profundidade que os temas exigem, vale colocar foco no impacto das novas tecnologias especificamente sobre a proteção das marcas.

O registro de uma marca é o processo pelo qual uma empresa ou indivíduo busca proteger um signo visualmente distintivo que serve para identificar seus produtos e/ou serviços, com todo conteúdo de valor que encerra consigo.

O registro de uma marca gera ao seu titular um direito de sua utilização exclusiva no seu ramo de atuação em todo o território nacional e ainda permite, por meio de um tratado internacional denominado Protocolo de Madrid, a extensão da exclusividade para cerca de 100 países estrangeiros.

É nesse ponto que identificamos um dos primeiros impactos da globalização. O Protocolo de Madrid é um tratado internacional que permite que as empresas protejam suas marcas em vários países simultaneamente, através de um único pedido de registro centralizado. Foi criado pela Convenção da União de Paris (CUP), é administrado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), e no Brasil ocorre através do INPI.

Para fazer valer o Protocolo de Madrid, as empresas precisam primeiro depositar seus pedidos de registro de marca em seu país de origem. Em seguida, eles devem usar esse pedido ou registro como base para estender a proteção de suas marcas para outros países membros, de maneira uniforme e recolhendo as taxas administrativas.

Essa questão, que à primeira vista parece benéfica, pode trazer consequências negativas para o Brasil. Dois fatores devem ser considerados. O primeiro é a questão do custo de levar sua marca aos outros países por meio de Protocolo de Madrid. As taxas variam de país para país e são fixadas em Francos. A conversão da moeda, normalmente torna a utilização do Protocolo de Madrid cara para os padrões brasileiros, muitas vezes inviabilizando a extensão internacional da marca. O segundo fator é decorrência do primeiro. Em função das diferenças das moedas, ao mesmo passo que é carro para a empresa brasileira levar sua marca para o exterior, na mesma proporção é barato para as empresas estrangeiras trazerem suas marcas para o Brasil.

A soma desses fatores, levando em conta que a prioridade cronológica é um dos elementos essenciais do processo de registro de marca,  gera uma "corrida do ouro" e o risco de que empresas estrangeiras que se utilizam marca semelhante a marca existentes no Brasil ainda não levadas a registro tenham prioridade e possam impedir que a empresa brasileira utilize a marca.

Tal situação ganha mais relevância ao considerarmos que, ainda que o sistema marcário tenha a previsão de que cada país administre seu sistema de registro e a exclusividade outorgada ao titular tenha seus efeitos limitados ao território de cada país, por força da transformação digital e globalização da internet, as marcas registradas em cada país acabam por coexistir simultaneamente no ambiente virtual, podendo gerar nos clientes a impressão de que se trata da mesma empresa ou de um grupo econômico, tudo desaguando na combatida conexão ou confusão com a marca alheia e permitindo, até mesmo, a prática de concorrência desleal, aproveitamento parasitário e desvio de clientela.

A solução de tais conflitos é bastante complexa, pois ambas as marcas podem estar formalmente registradas em seus países de origem e seus titulares gozarem de exclusividade, cada um em sua nação e discussões sobre territorialidade em ambiente virtual é sempre deliciada.

Mas as mudanças não param aí. Quando passamos a pensar em termos de metaverso, a complexidade da situação cresce consideravelmente.

Vale fazer uma observação inicial, no sentido de que o metaverso deve ser considerado como uma efetiva ferramenta de comunicação imersiva tridimensional, e não mero local virtual fictício.

Três fatores devem ser levados em consideração quando falamos da proteção das marcas no metaverso.

O primeiro deles, como visto acima, no que toca às marcas que convivem na internet globalizada, é a questão da coexistência de marcas registradas em diversos países, coexistindo em um mesmo "ambiente". Ainda não existem regras para dirimir celeumas acerca da prioridade entre marcas registradas em países diferente que venham a colidir no metaverso, situação geradora de insegurança jurídica na solução em caso de conflitos marcários.

Para que se tenha mais segurança, urge a delineação de regras claras,  que podem ser estabelecidas por meio das políticas de uso das plataformas que compõem o metaverso, normatização por meio da OMPI, ou ainda, preferencialmente, por meio de tratados internacionais específicos.

Outro fator é a questão da competência territorial para dirimir eventuais conflitos entre marcas no metaverso. Poderia a plataforma que é uma empresa privada por meio de suas políticas de uso definir competência territorial para solução de conflitos entre marcas por meio de adesão dos usuários? Ou seria melhor se criar uma câmara para solução desses conflitos na OMPI?

Novamente, a questão do custo de procedimentos internacionais poderá impedir, dificultar ou inviabilizar que empresas brasileiras façam valer os seus direitos. Um processo judicial em alguns países estrangeiros tem custo impeditivo para a maioria das empresas brasileiras.

Por fim, outro elemento a ser considerado na proteção de marcas no metaverso é a questão da especificidade.

Como mencionado acima, os registros das marcas são direcionados a nichos específicos de produtos ou serviços estabelecidos pela NCL  (Classificação de Nice), que é uma classificação internacional exclusiva para fins de registro de marcas.

Assim, por exemplo, uma empresa que produz e comercializa pneus, ao proteger a sua marca deveria, ao menos em tese, direcionar seus pedidos de registro à classe NCL 12 (que representa entre outras coisas a produção de pneus), classe NCL 35 que representa o serviço de comercialização e ainda a classe NCL 37 para serviços de montagem, reparo e alinhamento de pneus.

Ao querer levar essa mesma marca para o metaverso, criando no "ambiente" virtual uma representação de sua empresa de pneus (gêmeo virtual) visando consolidar sua marca de pneus ou mesmo vender bens e experiência digitais, irá se deparar com o fato de que os registros de marca das quais é titular são insuficientes para lhe garantir exclusividade no metaverso, podendo até mesmo vir a ser impedida de utilizar sua marca no Metaverso, ainda que mesmo sendo titular para produção, comércio e serviços de pneus.

Afinal, as classes mencionadas acima, ainda que suficientes à proteção da produção de comercialização de pneus, simplesmente não abarcam os bens digitais, sendo necessário o registro da marca, também, para as classes que englobem bens e serviços digitais como, por exemplo, as classes NCL  9, 35, 41 e 42 a depender da estratégia definida pelo profissional responsável pelos registros.

E a questão problemática ocorre justamente nesse sentido. Se a empresa de pneus utiliza uma marca idêntica à de uma fábrica de sorvetes, no mundo físico, não há concorrência e, portanto, colidência, sendo perfeitamente possível a convivência pacífica das marcas, afinal, nenhum consumidor confundiria um pneu com um sorvete apenas por utilizarem uma marca idêntica ou semelhante.

No entanto, quando ambas resolvem explorar o metaverso e criar a versão digital de seus produtos, ambas estarão fornecendo aos seus clientes experiências e bens digitais que são arquivos eletrônicos, ou seja, o mesmo tipo de produto/serviço, ainda que sejam a representação digital de produtos diferentes. Assim, qual das duas empresas terá prioridade de utilização da marca no metaverso? Em tese, a que levar primeiro à registro nesse sentido, ou seja, temos mais uma "corrida do ouro".

Concluindo, diante da exposição e convivência imposta às marcas no ambiente virtual por força da globalização, e-commerce internacional, ou ainda do metaverso, torna-se necessária uma visão macro e global ao se estabelecer estratégia de proteção de marca, atualizando os objetos sociais da empresas para que seja possível levar as marcas a classes de produtos e serviços que englobem bens e serviços digitais, bem como permitam a proteção também no metaverso e em outros "ambientes" virtuais que eventualmente venham surgir, o que deve ser feito com especial atenção e celeridade, de modo a garantir a almejada proteção e fundamental exclusividade de utilização da marca.

Além disso, uma gestão profissional de proteção de marca, nos dias de hoje, não pode prescindir de atento monitoramento de utilização e violação das marcas, seja na internet, no metaverso ou outros "ambientes" virtuais que possam (e devem) surgir.

Finalizando, a presente questão merece reflexão das empresas detentoras das marcas objeto de cuidado e proteção, para que não tenham surpresas e se vejam surpreendidas na indesejável circunstância de serem impedidas de usar suas próprias marcas no ambiente virtual.

Walter Calza Neto

Walter Calza Neto

Sócio responsável pelo departamento de Propriedade Intelectual, Direito Digital e Proteção de Dados/Privacidade do Felberg Advogados Associados. Formado em Direito pela Universidade Mackenzie, atuante na área de Propriedade Industrial desde 2000. Possui Extensão em Propriedade Intelectual pela University Of Pennsylvania, Especialização em Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito, EBRADI e Extensão em Direito Da Propriedade Intelectual Pela Wipo Academy - World Intelectual Property Organization no ano de 2002. É DPO do Sport Club Corinthians Paulista.

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