O pós-8 de Janeiro de 2023
As dependências do Supremo Tribunal Federal, seus acervos técnico e de memória (inclusive com seu museu recentemente reinaugurado) são pilares do Brasil e de sua cultura jurídica, os quais, juntamente à Constituição Federal, jamais serão abalados.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023
Atualizado em 19 de janeiro de 2023 09:29
A visão do Direito em torno das cenas registradas na Praça dos Três Poderes, no último dia 08 de janeiro, entretém-se em apurar a responsabilização de envolvidos a partir de tipos legais infringidos e suas consequências, tudo sob a guia das complexidades e garantias processuais.
Diante do amontoado de cenas gravadas, fotos, depoimentos, postagens e perícias, certamente o tempo dará um desfecho com as sanções cabíveis a quem, nos termos da lei, desventurou-se em destruir bens púbicos inestimáveis.
Em meio a destroços e mesmo no calor dos fatos recentes, ao menos uma parte da percepção psicológica daquele domingo fatídico já pode ser objeto de uma reflexão colhida por pessoas que visitaram, assim como estes autores, a cena deixada pós-vilipêndio.
A sensação de ver, pessoalmente, uma das edificações mais importantes do conjunto histórico-arquitetônico reconhecido pela UNESCO, como patrimônio mundial (1987), virado do avesso é, no mínimo, uma tormenta inenarrável.
Fosse um terremoto ou acidente da natureza a romper com as linhas harmônicas de cada obra nas paredes, o alinhamento dos bustos de alguns baluartes da liberdade, entre tantos outros estragos, o episódio guardaria alguma logicidade ou aceitação.
Entretanto, chega-se ao limiar do espanto constatar que a tentativa de arruinamento partiu de pessoas conscientemente empenhadas no afã da pilhagem de artefatos infungíveis de um prédio público que, fora sua importância simbólica e histórica, pertence a todos e a cada um dos brasileiros, do passado, de hoje e do futuro.
Entre a sensibilização de muitos, o comprometimento de alguns e a insensibilidade de outros, este manuscrito enfoca o porquê de ainda ser possível ouvir a narrativa, embora minoritária, de que o ataque famigerado à Corte "teve sua razão de ser" ou, pior, "teria sido um mal necessário", palavras ouvidas e ainda presentes.
A psicologia social certamente trabalhará investigações adequadas quanto aos indícios de possível ignorância pluralística1 de indivíduos que se isolaram no julgamento de que toda a sociedade errou, menos eles, além da eventual dissonância cognitiva2 revelada por atitudes conflitivas de quem crê proteger o bem comum destruindo e agredindo instituições públicas. O tempo dirá.
Mas, o referencial aqui escolhido é a obra de Ann Kaplan em torno do atentado de 11 de setembro de 20013, para quem há relevância nas primeiras impressões do impacto gerado por atitudes humanas próximas à barbárie em pleno século XXI.
A professora nova-iorquina ajuda a compreender que mesmo diante de selvagerias, alguns contextos políticos, econômicos e culturais podem gerar a esterilização perceptiva de grupos sociais quanto às naturais reações que se espera diante de atrocidades, isto é, de repulsa à destruição.
A percepção de perdas materiais e imateriais decorrente de violência gratuita obviamente varia para cada indivíduo, cada qual com sua formação e seus diferentes sensos estéticos4. Qual o valor de pinturas e retratos na parede? Quem foi, e o que fez, Rui Barbosa ou Victor Nunes Leal?
Kaplan encontra uma identidade perceptiva coletiva a situações traumáticas quando o que foi objeto da destruição esteve integrado à proximidade ou empatia de quem a testemunhou (mesmo de longe), isto é, com algum valor ético partilhado. Entre concidadãos, haveria uma tendência de impacto em relação aos habitantes de um mesmo local atacado.
Foi constatado que alguns discerniram com indiferença a queda das torres gêmeas, o que revelou sinais de absoluta falta de humanidade e compaixão. Guardadas as comparações devidas, anuir ou mesmo se calar à tentativa de predação da Suprema Corte brasileira aponta para sinais de incompreensão plena do que seja civilidade.
O pacto social brasileiro é o Brasil e suas marcas indeléveis, onde cada um tem o compromisso austero de crescer dentro de uma ordem que é, a um só tempo, provedora de nossas liberdades e guardiã das regras de poder, do seu balanceamento, da alternância e da representatividade.
Nesse contexto, o prédio que ostenta em sua fachada a Justiça esculpida com tanto carinho por Ceschiatti, é apenas um palco para que as lutas de ideias e direitos sejam formalmente endereçadas e dirimidas.
É memorável a visão do saudoso mineiro Wander Tanure (um dos servidores públicos que acompanhou a transição da Corte, do Rio para Brasília), quando repetia: "como pode um lugar acomodar tanto conflito diário e, entra gente sai gente, permanece tão sóbrio e equilibrado?".
Respondemos a Tanure, que não experimentou a tristeza de constatar, em vida, o segundo domingo do ano de 2023: o Supremo Tribunal Federal é o patamar das regras maiores de preservação brasileira, no qual a selvageria vai sempre encontrar limites e os interesses conflitantes hão sempre de ser pacificados.
Se a pior jogada do enxadrista é tentar virar o próprio tabuleiro, a destruição deliberada das dependências onde a última palavra sobre legalidade é dada importa na opção, por parte de uma minoria insensibilizada, de abandono da cultura jurídica. É lastimável.
A frieza ou o desprezo à situação vivenciada na sede do STF é sinal quase desumano quanto à perda do valor e da racionalidade encartadas na mais básica noção de autopreservação. Constá-lo faz parte do convívio com as diferenças somatórias, e não deletérias. Aceitá-lo, não. Compreendê-lo e buscar uma ponte edificadora, sim.
As dependências do Supremo Tribunal Federal, seus acervos técnico e de memória (inclusive com seu museu recentemente reinaugurado) são pilares do Brasil e de sua cultura jurídica, os quais, juntamente à Constituição Federal, jamais serão abalados.
Para além de impressões traumáticas, do imediato sobressai a certeza austera de honradez da Suprema Casa que não sucumbe nem ruirá a investidas tiranas. Ao revés, está mais fortalecida, assim como a cidadania brasileira.
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1 DODO, Obadiah. Exposing "Pluralistic Ignorance" to Reduce Youth Violence in Political Spaces. International Journal of Strategic Decision Sciences, v. 13, n. 1, p. 4, 2022. SARGENT, Rikki H., LEONARD S. Newman. "Pluralistic ignorance research in psychology: A scoping review of topic and method variation and directions for future research." Review of General Psychology. v. 25, n. 2, p. 178, 2021.
2 Festinger, Leon. A theory of cognitive dissonance. Vol. 2. Stanford University, p. 28, 1962.
3 Kaplan, E. Ann. Trauma culture: The politics of terror and loss in media and literature. Rutgers University Press, 2005.
4 A melhor tradução do conjunto de perdas em circunstâncias cujo comportamento causador é inexplicável está no termo trauma, utilizado por Kaplan, muito embora "trauma" tenha diversas definições na psicologia social e na sociologia. Bond, Lucy, and Stef Craps. Trauma. Routledge, 2019.