Configuração do dano existencial no ambiente de trabalho
O presente artigo busca compreender o conceito de dano existencial, seu surgimento, seu valor como bem jurídico autônomo e independente, além de sua configuração dentro do ambiente de trabalho.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Atualizado às 17:18
Evidente que o Direito como ferramenta de pacificação social sempre esteve atrelado ao contexto histórico de cada época. Tão verdade é que os direitos de primeira geração surgiram justamente para limitar as violações desencadeadas pelos abusos do Poder Público - fomentando a valorização da liberdade dos cidadãos.
Em momento posterior, após o mundo ter experimentado a profunda obscuridade humana durante as duas guerras mundiais, o debate e fortalecimento dos direitos fundamentais tornaram-se ainda mais essenciais no ordenamento jurídico internacional, de tal forma que a preservação dos direitos intrínsecos à natureza do ser humano passou a ser um dever de todos, e não somente do Poder Público.
Portanto, o fenômeno também é aplicável ao Direito do Trabalho no que diz respeito às modificações das relações de trabalho ao longo da história, principalmente quando analisado pós Revolução Industrial e, atualmente, no ápice da Globalização.
Nesse sentido, o Direito do Trabalho é responsável por acompanhar as relações trabalhistas para reestabelecer o equilíbrio entre os anseios do Capitalismo, fomentado ainda mais pelos fenômenos globais, e a preservação dos direitos trabalhistas, visando evitar, principalmente, a precarização do trabalho e garantir o respeito aos direitos fundamentais dos operários (ROSÁRIO, 2013). É crucial que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana seja compreendido como base indispensável de qualquer ordenamento jurídico.
Exatamente nesse contexto surge o debate a respeito do dano existencial, que neste artigo será enviesado dentro do ambiente laboral. Sua existência remota da década de 1950, na Itália, como forma de ampliar o conceito de responsabilidade civil para atender os anseios da sociedade. Na ocasião, os julgados formalizaram o entendimento de que determinados danos não eram um evento por si só, mas a consequência de um evento lesivo (CIOCCARI; SANTOS, 2021).
Nessa perspectiva, o dano existencial é uma espécie de prejuízo imaterial, ainda que seja distinto do dano moral, matéria essa que será estudada com maior profundidade posteriormente.
Sendo assim, o dano existencial é aquele que atinge o complexo de relações que desenvolvem e fomentam a personalidade da vítima. Em outras palavras, o sujeito experimenta graves limitações em sua vida pessoal em razão da conduta ilícita praticada por outrem (ROSÁRIO, 2013).
Nas palavras de Hidemberg Frota:
O dano existencial constitui espécie de dano imaterial ou não material que acarreta a vítima, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, afetivo-sexual, intelectual, artística, científica, desportiva, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retomar sua vida de relação (de âmbito público ou privado, sobretudo na seara da convivência familiar, profissional ou social) (FROTA, 2013).
Há de se dizer, portanto, que o dano é caracterizado quando o indivíduo não consegue realizar atividades essenciais para sua vivência, como o lazer, o convívio em família, as relações sociais, a prática religiosa, o desenvolvimento de atividades criativas, a prática de esportes, entre tantas outras.
Trata-se de um dano total ou parcial, permanente ou temporário, a depender do caso concreto, podendo ser uma única atividade ou várias atividades que o sujeito deixou de praticar em virtude do ato lesivo gerado (CIOCCARI; SANTOS, 2021). É uma violação direta do projeto de vida e dos bens elementares da vítima no que diz respeito à formação de sua personalidade.
O dano existencial comumente é dividido pela Doutrina em duas categorias: danos ao projeto de vida e danos à vida de relação.
A primeira categoria ocorre quando o ato lesivo praticado atinge o projeto de vida da vítima, isto é, atingindo suas expectativas pessoais, suas aspirações profissionais, o convívio familiar, etc, acabando por tolher sua liberdade de escolha no que diz respeito ao seu próprio projeto existencial (CIOCCARI; SANTOS, 2021).
Há de se dizer, portanto, que o projeto de vida constitui parte importantíssima da dignidade da pessoa humana, pois ali habita a autonomia da vontade do sujeito em determinar o seu próprio destino. O dano existencial, por essa perspectiva, ataca os objetivos pessoais do indivíduo, privando-o de concretizar seus sonhos e desejos.
A segunda categoria, danos à vida de relação, ocorre quando o ato lesivo impede que o sujeito satisfaça os seus prazeres por meio de atividades recreativas, como o esporte, a cultura, o cinema, teatro, turismo, entre outras (CIOCCARI; SANTOS, 2021). Essa modalidade abarca a esfera social, profissional, afetiva e familiar.
Adiante, trazendo o conceito de dano existencial para o ramo do Direito do Trabalho, depreende-se que o prejuízo ocorre quando a conduta patronal afeta o projeto de vida do trabalhador e o desenvolvimento de sua personalidade, prejudicando a experiência das relações sociais, do convívio familiar e do lazer.
Logo, o dano existencial no ambiente de trabalho pode ocorrer de várias formas. O empregador, por exemplo, pode suprimir direitos irrenunciáveis do trabalhador, ou seja, aqueles que compõem o patamar civilizatório mínimo, como o descanso semanal remunerado, férias, intervalos, entre outros.
Um exemplo clássico seria do empregado que não usufrui férias e que diariamente exerce uma jornada exaustiva acima dos limites legais, enfrentando tanto o adoecimento físico quanto o psicológico. A sobrecarga laboral impede que o trabalhador desfrute das atividades cotidianas da vida, prejudicando suas experiências profissionais e pessoais (ROSÁRIO, 2013).
Por outro lado, também é corriqueiro que o dano existencial seja configurado em decorrência do assédio moral no ambiente de trabalho, responsável por ocasionar depressão, dores físicas e ideias suicidas a depender da gravidade de cada caso concreto. Sendo assim, o dano existencial afeta a esfera patrimonial, no que diz respeito à capacidade laboral, e a esfera psíquica, quando analisado mediante o terror psicológico, sofrimento, angústia, abatimento e demais prejuízos aos projetos de vida (CIOCCARI; SANTOS, 2021).
Outro exemplo da configuração do dano existencial é o trabalho em condição análoga à escravidão - ainda comum nos dias atuais. O trabalhador é submetido ao labor em condições subumanas no que diz respeito à jornada de trabalho, às condições de higiene do ambiente laboral, entre outros fatores.
Para fins legais, o conceito é apresentado no Art. 3º da Instrução Normativa nº 91/2011 do antigo Ministério do Trabalho e Emprego, vejamos:
Art. 3º. Para os fins previstos na presente Instrução Normativa, considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente:
I - A submissão de trabalhador a trabalhos forçados;
II - A submissão de trabalhador a jornada exaustiva;
III - A sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho;
IV - A restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho;
V - A vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
VI - A posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Há de se dizer, ainda, que a Reforma Trabalhista (lei 13.467/17) flexibilizou a negociação das condições de trabalho em determinados casos. Ocorre que tal mudança pode agravar ainda mais o Poder de Direção do empregador no ambiente laboral, tornando o trabalhador ainda mais vulnerável, tendo em vista a relação vertical de poder entre as partes (FERREIRA; SANTANA, 2019).
Destaca-se, contudo, que a negociação e disposição dos direitos de personalidade, intimamente ligados à esfera existencial do indivíduo, é vedada em nosso ordenamento jurídico - ainda que isso não seja respeitado categoricamente em algumas relações. A autonomia dos contratantes deve respeitar os limites estabelecidos pela natureza dos direitos fundamentais, a fim de evitar o exacerbado abuso dos mais poderosos diante dos mais fracos.
Na mesma esteira, o Princípio da Proteção do Trabalhador como parte mais frágil da relação de trabalho é uma ferramenta útil para evitar os abusos cometidos pelo empregador, garantindo ao operário uma vantagem jurídica como forma de compensar o desnivelamento econômico entre as partes.
Nessa toada, os arts. 6º, 196 e 226 da Constituição Federal asseguram uma série de direitos inegociáveis ao trabalhador, a exemplo da educação, saúde, alimentação, família, entre outros, que não podem coexistir em um contexto de configuração do dano existencial.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
Com o intuito de se aprofundar ainda mais no tema é importante relatar a distinção entre dano existencial e dano moral, assunto delicado e comumente afetado pela doutrina e jurisprudência.
O primeiro passo é compreender que uma mesma conduta pode gerar diversos danos como consequência, tanto de ordem patrimonial quanto extrapatrimonial, visando a proteção integral do ser humano e o ressarcimento dos prejuízos.
Por essa perspectiva, torna-se equivocada a interpretação restritiva do conceito de dano moral como gênero. A doutrina tem formulado o entendimento certeiro de que o dano moral é uma espécie de dano extrapatrimonial, além do dano existencial e do dano estético, configurando, portanto, bens jurídicos distintos e independentes (FERREIRA; SANTANA, 2019). Enquanto o dano moral é auferido de maneira subjetiva, o dano existencial é constatado de forma objetiva na vida do trabalhador.
O dano existencial representa a lesão de um bem jurídico diverso da moral, isto é, que afeta diretamente os interesses do trabalhador, as relações familiares, afetivas e sociais, práticas religiosas e o lazer, prejudicando seu projeto de vida e o desenvolvimento de sua personalidade. Não está necessariamente ligado à ideia de dor ou sofrimento, características inerentes ao dano moral.
Nota-se, portanto, que o dano existencial é prolongado no tempo, acarretando em um prejuízo econômico mais acirrado do que a simples dor ou descompensação caracterizadas pelo dano moral, tendo em vista o abatimento de todo o projeto de vida do trabalhador - sua existência, a desconstrução do próprio ser. É tolhido o direito de escolha em detrimento da necessidade de sobrevivência, tão somente (FERREIRA; SANTANA, 2019).
Logo, há de se concluir que o dano moral e o dano existencial são bens jurídicos distintos e independentes, sendo, portanto, plenamente possível a cumulação de pedidos em virtude da caracterização como dano autônomo.
Entretanto, importante mencionar que a simples alegação de dano existencial em virtude de práticas como a prorrogação da jornada de trabalho não é suficiente para comprovar a existência do fato danoso. Para tanto, é crucial trazer aos autos uma narrativa adequada comprovando o dano, a conduta ilícita do empregador e o nexo causal entre eles, tendo em vista ser do trabalhador o onus probandi (ROSÁRIO, 2013).
Nesse sentido, o dano existencial não pode ser presumido (in re ipsa), exigindo que o trabalhador apresente nos autos as provas suficientes para configuração do prejuízo experimentado.
Sendo o trabalhador parte frágil e hipossuficiente na relação de emprego, parece-me que cumprir com esse ônus é deveras ocioso, devendo o empregado valer-se de provas testemunhais, gravações do ambiente de trabalho, conversas ou ligações. A depender do caso há quem diga que a falta de presunção do dano pode configurar prova diabólica, dada sua complexidade e escassez (FERREIRA; SANTANA, 2019).
Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que o dano existencial é figura distinta do dano moral, sendo ambos cumuláveis em decorrência do caso concreto por serem bens jurídicos independentes e autônomos.
Nesse sentido, o dano existencial é mais profundo do que o dano moral, perdurando durante o tempo e com aferição objetiva no projeto de vida da vítima. Portanto, por se tratar de um desgaste, uma violação direta aos sonhos, lazer, práticas religiosas, relações afetivas, sociais e profissionais do sujeito, a sua configuração pode ocorrer até mesmo no ambiente laboral em virtude de condutas ilícitas do empregador, como jornadas exaustivas, trabalho análogo à escravidão, assédio moral, não concessão de férias, etc.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Constituição Federal. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 nov. 2022.
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