A declaração "universal" dos direitos humanos só para alguns...
Parcela da sociedade que criticava os direitos humanos, demonizava o devido processo legal, amaldiçoava a presunção de inocência, curtia troças e trocadilhos ("direitos pros manos"), acaba de descobrir, na prática, a relevância dos direitos fundamentais do homem.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Atualizado às 08:32
Ainda lambendo as feridas da mais traumática de todas as guerras, o mundo "civilizado", através da ONU, produziu em 10 de dezembro de 1948 um dos documentos mais lidos e traduzidos da História: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Ao longo de seus 30 artigos, a DUDH consagra valores básicos ao ser humano, como liberdade, igualdade e fraternidade, tríade da revolução francesa, dela se espargindo uma série de direitos fundamentais.
Além de balizas óbvias - como o repúdio à escravidão e repulsa a legislações iníquas e estamentais - o documento é perpassado por uma clara perspectiva democrática, deixando expresso que as limitações a que todos devemos nos sujeitar tem por objetivo "... o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros (...) e do bem-estar numa sociedade democrática" (art. 29, item 2).
A DUDH traz em seu fecho a limitação mais clara ao abuso de direito, inclusive para inibir qualquer espasmo de inspiração fascista, seja de viés elitizante, estamental ou de derrubada dos valores democráticos:
"Artigo 30: Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos".
Pois o que parecia lógico, natural, arraigado concretamente na evolução do processo civilizatório, veio se mostrando ao longo do tempo frágil, intangível e abstrato para alguns brasileiros. Para muitos, aliás.
Um grupo de "patriotas", com evidente autoproclamação de superioridade moral - "gente de bem" -, passou paulatinamente a se entender ultramerecedor e portador de mais e melhores direitos. Em seus devaneios megalômanos - e tão moralistas quanto distorcidos ou hipócritas -, sua ideia de "pátria" confundiu-se com o próprio grupo. A "pátria" deles é... deles e só deles! Sendo assim, é claro, somente esses "patriotas" podem e sabem como defendê-la.
"Bandido bom é bandido morto!", bradam esses bravos. "Os presidiários são vagabundos que recebem teto e comida do Estado"; "não merecem que se gaste papel com processo"; "presunção de inocência é coisa pra bandido ficar impune".
Mas como diz o ditado, "todo dia sai de casa um otário e um malandro. Quando os dois se encontram...".
Sob o epíteto de um grupo de "patriotas" se esconde, em verdade, um amontoado de abestados, que, como sói ocorrer, vem a ser instrumentalizado por espertalhões (em geral, covardes e ambiciosos).
O segundo domingo de 2023, com um século de retardo, testemunhou a reprodução na Praça dos Três Poderes, de forma medíocre e ignorante, da mesmíssima lógica que ambientou o nazi-fascismo europeu.
Uma horda de pessoas intelectualmente preguiçosas que idolatram o tosco, o simplório, só porque mais a seu alcance. Nada melhor do que deter um conveniente e auto-afagante carimbo para o joeiramento do bem e do mal. Em sua pátria particular, esses "patriotas" seguem suas próprias leis. Mais que isso, são seus próprios juízes: bandidos são os outros, já que "nós somos gente de bem"; assim, as leis penais são feitas para os outros...
Em sua ótica, esse grupo não erra, por isso nunca haverá razão para ser punido. Também não pode sofrer derrotas ou revezes. Tem um quê - aliás, todos os "quês" - de toque divino. É a receita do fanatismo, do obscurantismo, da negação à ciência.
Resultados eleitorais, esse grupo só respeita os que lhe atendem. Se um "patriota" é eleito (seja do grupo dos otários ou dos malandros), deve assumir o cargo. Mas se for de fora da tribo, diz-se que o sistema eleitoral é fraudulento e favorece um "bandido". O qual, se empossado, deve ser derrubado. Tudo a bem da "pátria"...
O problema é quando passam do ponto.
Foi o que ocorreu no 08 de janeiro.
É o momento em que deixam de ser ativistas bizarros, patéticos, anacrônicos e se tornam antidemocratas perigosos e nocivos. Terroristas mesmo.
Trata-se da designação adequada aos que praticam atos que são tipificados pela legislação ocidental em peso como sendo de terrorismo.
O vocábulo "terrorismo" tem conteúdo material próprio, óbvio, semanticamente autoexplicativo, internacionalmente consagrado, muito bem entendido pelo constituinte brasileiro de 1988, que, inclusive, disse-o insusceptível de graça ou anistia. Ainda que o legislador ordinário, eventual e inconstitucionalmente, venha a claudicar, limitar ou positivar algum jogo de palavras...
O que se viu, em suma, foi uma organização composta por "gente de bem", engenhada para perpetrar crimes, que, em desrespeito ao resultado do processo eleitoral, que é a principal marca de uma democracia, terminou por vandalizar os prédios que abrigam os Poderes da República. Destruíram estruturas, mobiliários, equipamentos. Saquearam. Como bestas selvagens, porcos-do-mato, os "patriotas" defecaram e urinaram em salas e corredores...
Eis que alguns acabam presos em flagrantes.
As bestas selvagens se transformam em "pets".
Mas são "pets" que falam, choram e reclamam por "direitos humanos".
E a eles fazem jus! Haverão de receber aquilo que sempre negaram aos que eles próprios não rotulam como "gente de bem".
Uma vez presos, devem ser ouvidos por um juiz responsável pela custódia; a acusação por órgão atribuído e imparcial; direito a advogado e à ampla defesa; ao devido processo legal; o processo e julgamento conduzido por juiz competente e imparcial; condições dignas de encarceramento, se for o caso. E também à presunção de inocência, até o advento do trânsito em julgado de eventual decisão condenatória.
E que os golpistas terroristas sofram punições próprias aos crimes respectivos. Nem mais, nem menos.
Veja-se que do modo mais dolorido - com direito a choque de realidade - pode se ter iniciado um processo de desintoxicação autoritária e conversão civilizatória dessa "gente de bem". Não só dos detidos, mas dos homiziados e simpatizantes (os malandros, não: esses são "barrigada perdida", minoria de parasitas encontradiça em qualquer tempo, em todo lugar).
Aos potenciais reeducandos, fica aqui uma sugestão de leitura inicial: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (tem versão em quadrinhos).