A negativa de cobertura e a prerrogativa da cobrança pelos serviços prestados por hospitais
Para fins de celeridade processual e boa-fé, é importante que o estabelecimento hospitalar em questão conste como parte terceira interessada.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Atualizado às 07:40
O alcance da cobertura de procedimentos médicos por operadoras de saúde e a negativa de atendimento é tema complexo e com alta taxa de judicialização, como demonstram as discussões sobre o rol taxativo da Agência Nacional de Saúde - ANS (lei 14.454/02, ADIn 7193 e ADPFs 986 e 990). Não obstante, fato é que, enquanto o beneficiário do plano de saúde/paciente e a operadora discutem a quem cabe a responsabilidade do pagamento dos procedimentos, um terceiro, o hospital, fica esperando pelo recebimento do serviço que prestou, e isso é um aspecto que deve ser adequadamente endereçado.
Na perspectiva financeira, construir e manter um ambiente hospitalar requer alto investimento. Para os hospitais privados, o pagamento pelos serviços prestados é fundamental para a remuneração da equipe médica, enfermeiros e demais prestadores de serviços, a compra de medicamentos e insumos, e os investimentos e manutenção de equipamentos e instalações.
Porém, além dos aspectos materiais, a tutela da saúde humana é composta por diversos microssistemas que regulamentam o funcionamento daquilo cotidianamente chamado por "direito médico". Em outras palavras, não há funcionamento de um estabelecimento hospitalar sem que exista a sua subsunção às diretrizes emanadas pelos órgãos de medicina, farmácia, nutrição, psicologia, fisioterapia etc., sem prejuízo de outros agentes, de modo que manter toda essa estrutura de acordo com todas as regulamentações impostas, requer enorme contraprestação pecuniária.
Nessa lógica, a fim de ampliar o acesso à ambientes hospitalares privados cada vez mais modernos, planos de saúde cumprem papel primordial, sem os quais muitos brasileiros não poderiam custear diversos procedimentos médicos e hospitais não poderiam oferecer serviços de excelência de forma satisfatória, considerando que a parcela de pessoas que possuem condições de arcar com os valores de uma contratação de forma particular, é ínfima.
Desse modo, fora do SUS, as operadoras de planos de saúde são o elo entre pacientes e hospitais, intermediando a contratação e pagamento dos serviços médico-hospitalares, sendo imprescindível que as seguradoras esclareçam todas as dúvidas e indiquem de forma compreensível ao beneficiário, quais os seus deveres e direitos, principalmente em relação a cobertura de procedimentos e carências do plano contratado.
Quando ocorrem divergências sobre o acesso a determinados serviços, cobertos ou não pelo plano de saúde, a questão deve ser resolvida entre consumidor e plano de saúde. Contudo, é frequente o ajuizamento de demandas judiciais de beneficiários/pacientes não só contra as operadoras de saúde, mas também contra os hospitais. Isso porque, na maioria das vezes, o paciente procura atendimento de emergência no hospital, onde se constatada a necessidade de determinado procedimento ou tratamento, cuja cobertura é negada pelo plano de saúde, usualmente sob alegação de inexistência de cobertura em virtude da modalidade do plano contratado.
Ainda que, em muitos desses casos, a obrigação de pagar as despesas geradas no hospital é, por força de previsão contratual, do plano de saúde, em caso de negativa inicial de cobertura e início do tratamento, acaba-se por estabelecer-se uma relação contratual entre o paciente e/ou responsável financeiro com o hospital por meio da assinatura de termos de ciência e responsabilidade sobre as condições gerais para admissão e tratamento. Não é incomum que esses termos prevejam a possibilidade de que, havendo qualquer recusa ao pagamento de contas hospitalares pelo plano de saúde, os custos sejam repassados integralmente aos responsáveis financeiros ou até mesmo ao próprio paciente.
A jurisprudência tem consolidado o entendimento de, diante da negativa de cobertura da operadora, atribuir a responsabilidade financeira ao beneficiário. Em 2021, quando do julgamento do REsp. 1.842.594/SP, o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, atribuiu à beneficiária do plano de saúde que contratou hospital, a responsabilidade de arcar com as despesas após a negativa do plano de saúde. De acordo com o ministro, no contrato firmado, a beneficiária do plano, em caso de eventual recusa da operadora, se responsabilizou perante o hospital pelo pagamento da internação e, esse, no caso em questão, prestou serviço com excelência, inexistindo vício na prestação de serviço médico-hospitalar. Na decisão, o ministro ressalvou que eventual abuso da negativa de cobertura da internação pela operadora do plano de saúde, poderá ser discutido em ação autônoma, de modo que essa possibilidade não afasta a legalidade da cobrança, bem como o contrato de prestação de serviço médico-hospitalar:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICO-HOSPITALARES. DEMANDA AJUIZADA PELO HOSPITAL EM DESFAVOR DO RESPONSÁVEL PELO PACIENTE (CONTRATANTE), EM RAZÃO DA NEGATIVA DE COBERTURA DO PLANO DE SAÚDE. AUSÊNCIA DE OMISSÃO OU CONTRADIÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DOS DÉBITOS GERADOS COM A INTERNAÇÃO HOSPITALAR. CLÁUSULA CONTRATUAL EXPRESSA IMPUTANDO A RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DAS DESPESAS AO CONTRATANTE, NO CASO DE RECUSA DO CUSTEIO PELA OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE. ILEGITIMIDADE DO HOSPITAL EM DISCUTIR A SUPOSTA ABUSIVIDADE NA NEGATIVA DE COBERTURA PELA OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE. QUESTÃO QUE CONFIGURA RES INTER ALIOS ACTA. SERVIÇOS MÉDICO-HOSPITALARES DEVIDAMENTE PRESTADOS. REFORMA DO ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE IMPÕE. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO PROVIDO. (STJ - REsp.: 1842594 SP 2019/0303865-6, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 23/2/21, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 2/3/21)
Ou seja, ainda que o paciente ou o seu responsável financeiro entendam que a recusa do plano de saúde em pagar os serviços utilizados tenha sido abusiva, essa abusividade não pode ser estendida ao hospital, visto que este atuou no exercício regular de um direito. Isso porque as cobranças das despesas geradas no atendimento médico-hospitalar se mostram perfeitamente lícitas, de modo que, a conduta dos hospitais em cobrar o valor devido não configura abuso de direito, mas sim, uma tentativa de ver asseverado o recebimento por um serviço prestado.
Além disso, a cobrança pelo hospital dos serviços que foram prestados, está respaldada no art. 188, I do Código Civil, o qual aduz que um ato praticado no exercício regular de direito é desprovido de ilicitude.
Dessa forma, as discussões perante o Judiciário giram em torno da abrangência, e eventuais abusos nas negativas, de cobertura pelo plano de saúde. Portanto, tal situação não pode atingir o hospital em questão, sendo ele parte passiva ilegítima nessas demandas judiciais. Todavia, para fins de celeridade processual e boa-fé, é importante que o estabelecimento hospitalar em questão conste como parte terceira interessada, tendo em vista que assim poderá realizar a cobrança perante a parte legítima.
Eduardo Szazi
Doutor em Direito Internacional, Vice-Presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/PR e sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.
Jéssica Caroline Tragancin Ribeiro
Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados e pós-graduanda em Master of Laws (LL.M) em direito civil e processual civil pela Fundação Getúlio Vargas - FGV.
Bruna Werlang
Advogada especialista em comércio internacional. Atua na área de compliance e contratos. Tem experiência em direitos humanos, propriedade intelectual e direito internacional público.