Um passo à frente no combate ao racismo
É louvável a intenção do legislador com as alterações que promoveu, fortalecendo o combate às práticas racistas tão presentes em nossa sociedade.
sexta-feira, 13 de janeiro de 2023
Atualizado às 08:47
Na última quarta-feira foi sancionada pelo Presidente da República a lei 14.532/23 que altera o Código Penal e a Lei do Crime Racial (7.716/89) - mais comumente chamada de Lei Caó -, para, dentre outras modificações, "tipificar como crime de racismo a injúria racial". A nova legislação, aprovada durante a cerimônia de posse das Ministras Sônia Guajajara (Ministério dos Povos Indígenas) e Anielle Franco (Ministério da Igualdade Racial), em solenidade com grande carga simbólica, elevou penas, criou a figura qualificada do racismo em contexto religioso, desportivo, artístico ou cultural e inovou em causas de aumento, fortalecendo o combate ao racismo no âmbito penal.
Antes mesmo de tratar das relevantes modificações legislativas, vale relembrar que a injúria racial foi introduzida no Diploma Penal em lei publicada no ano de 19971, que previa como ilícita a conduta de "injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade e o decoro" quando o agente se utilizasse de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem (§3º do artigo 140), complementada, anos mais tarde, em 2003, pela expressão "à condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência"2.
Assim, com a previsão de pena de reclusão 1 a 3 anos, o legislador pretendeu diferenciar o crime contra a honra subjetiva comum daquele cometido por discriminação ou preconceito - sobretudo racial -, retirando-o da esfera de competência do Juizado Especial Criminal e impedindo a utilização de alguns dos mecanismos de solução consensual, tais como a transação penal e a composição civil de danos, mantendo apenas a possibilidade de suspensão condicional do processo e a necessidade de apresentação de queixa-crime para o processamento da apuração de sua prática.
Mais de uma década passada, em 2009, foi aprovada a lei 12.033, que modificou a redação do parágrafo único do artigo 145, para exigir representação formal para os processos envolvendo a injúria qualificada, mantendo-se, no mais, a definição legal e suas penas. Diferentemente dos demais crimes contra a honra que se submetem ao processo por queixa-crime, portanto, a injúria racial passou a ser processada mediante ação pública condicionada à representação.
Por sua vez, o crime de racismo, disposto no artigo 20 da lei 7.716/89, originalmente previa a pena de 2 a 5 anos de reclusão e multa para aquele que "praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional"3. Nova lei publicada em 1997, diminuiu a pena para 1 a 3 anos de reclusão e multa para a conduta de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional, mantida a pena privativa de liberdade mais elevada de 2 a 5 anos para as figuras qualificadas do delito, uma para condutas ilícitas relacionadas ao nazismo e outra para o racismo praticado por meios de comunicação social ou por publicacão de qualquer natureza (Lei 9.459/97).
Para além de suas elevadas penas, o crime de racismo presente na Lei Caó sempre foi considerado grave justamente por ser um dos poucos delitos considerados inafiançáveis e imprescritíveis por previsão expressa da Constituição Federal (artigo 5º, inciso XLII).
Logo se percebe que, embora ambos tenham como pano de fundo a discriminação e o preconceito de raça, a injúria racial e o delito de racismo são crimes diversos, sobretudo porque o primeiro trata necessariamente de uma ofensa à honra e à imagem de um indivíduo específico, enquanto que o segundo consiste em uma prática discriminatória que atinge toda a coletividade alvo da conduta ilícita.
Não obstante a evidente distinção entre os tipos penais, o que se observou, na prática dos tribunais, foi uma série de acusações de racismo sendo desclassificadas para injúria racial e, por consequência, inúmeros processos encerrados ou sequer iniciados em razão do escoamento do prazo decadencial. Situações gravíssimas, portanto, que não receberam qualquer tipo de resposta estatal.
Com a finalidade de atribuir a relevância devida ao crime de injúria racial e solucionar os históricos equívocos em sua aplicação, a lei 14.532/23 retirou este tipo penal do artigo 140 do Código Penal e o introduziu, de modo independente, no artigo 2º-A da lei 7.716/1989, com importantes modificações.
A pena prevista para aqueles que o praticam passa a ser superior (reclusão de 2 a 5 anos e multa) àquela cominada ao crime de racismo prevista no caput do artigo 20 (reclusão de 1 a 3 anos e multa) e a sua apuração e processamento tornam-se independentes de qualquer tipo de impulso por parte da vítima, ou seja, não mais dependem de representação, sendo um crime de ação penal pública incondicionada.
O crime passa, também, a ter previsão de acréscimo de metade da pena, quando a conduta for cometida em concurso de duas ou mais pessoas (parágrafo único do artigo 2º- A) e de ? até a metade quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação (artigo 20-A), sendo mantida, ainda, a adição de ? à pena quando praticado em face de funcionário público (artigo 20-B). Já quanto às causas de aumento anteriormente previstas no artigo 141 do Código Penal, estas não mais se aplicam à injúria racial, porque atinentes exclusivamente aos delitos descritos no Capítulo V do referido diploma legal.
Destaca-se, ainda, que o legislador não replicou as hipóteses de exclusão do crime previstas no artigo 142 do Código Penal para o novo tipo penal, diferenciando-o, assim, da injúria simples. Não há, contudo, qualquer vedação legal expressa à sua eventual aplicação subsidiária.
O delito de racismo, ainda que em menor extensão, igualmente, sofreu consideráveis alterações.
Às figuras qualificadas já previstas anteriormente punidas com pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa, somou-se a prática do crime no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público (artigo 20, § 2º-A) ou por intermédio das redes sociais e da rede mundial de computadores (artigo 20, § 2º). Nas mesmas penas incorrerão, de igual modo, aqueles que impedirem ou empregarem violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas (artigo 20, § 2º-B).
Ainda nova pena restritiva de direitos foi prevista especificamente para o chamado racismo desportivo, religioso, artístico ou cultural, consistente na proibição de frequentar locais destinados a essas atividades por 3 anos (artigo 20, § 2º-A).
E, com exceção daquela atinente ao concurso de pessoas, as causas de aumento inseridas pela nova lei para o crime de injúria racial também se aplicam ao delito de racismo.
Resta claro, portanto, que a intenção, por parte do legislador, não era outra senão recrudescer a punição de condutas racistas e preconceituosas, pois, em suas palavras, os dispositivos penais, da forma como postos e aplicados, "têm se mostrado incapaz de puni[-las] com boa dose de proporcionalidade"4.
Alinhado a tal objetivo, inclusive, ainda antes da promulgação da lei, a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo elaborou a Orientação Conjunta 1/205, em sede da qual recomendou que os membros do Ministério Público evitassem qualquer tipo de instrumento de consenso (transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo) nos procedimentos investigatórios e processos criminais envolvendo crimes de racismo, compreendidos neste conceito todos aqueles tipificados na lei 7.716/89 e à injúria racial, àquele tempo prevista no artigo 140, §3º, do Código Penal.
Mesmo diante dessa recomendação interna da Procuradoria-Geral de Justiça, observa-se pela pena mínima cominada aos crimes previstos na nova lei que, sob a perspectiva dos critérios objetivos, seria cabível a propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do Código de Processo Penal.
Dentre erros e acertos, a novel legislação vai ao encontro de precedente histórico do Supremo Tribunal Federal advindo do julgamento no Habeas Corpus 154.248/DF. No caso em questão, consideraram os ministros, por maioria, que o crime de injúria racial é uma espécie do gênero racismo, sendo, portanto, imprescritível, à luz do disposto na Constituição Federal6. Embora tal entendimento seja apenas aplicável ao caso concreto e nele se tenha concluído tão somente pela impossibilidade de reconhecimento do instituto da prescrição - pois era exatamente o reconhecimento da extinção da punibilidade pela ocorrência do prazo prescricional que se visava com a impetração -, a equiparação dos delitos tornou possível, para alguns, a utilização do precedente para negar de fiança nos casos de injúria qualificada pelo elemento racial.
É louvável a intenção do legislador com as alterações que promoveu, fortalecendo o combate às práticas racistas tão presentes em nossa sociedade. Embora com atraso, o país vem reconhecendo a existência do racismo estrutural e a necessidade de extirpá-lo, buscando coibir práticas discriminatórias e criar condições de igualdade para todos, independente de sua origem, raça, sexo, cor ou religião.
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1 Lei 9.459/1997.
2 Lei 10.741/2003.
3 As mesmas penas eram previstas no mesmo artigo para crime relacionado ao nazismo (Lei nº 8.882/1994).
4 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1341907&filename=Tramitacao-PL%204566/2021%20(N%C2%BA%20Anterior:%20PL%201749/2015). Acesso em 12.01.2023.
5 Disponível em: https://biblioteca.mpsp.mp.br//PHL_IMG/AVISOS/206-Aviso%202020.pdf. Acesso em 12.01.2023.
Maíra Beauchamp Salomi
Advogada criminalista, mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.