Profissionalização da gestão de finanças do futebol brasileiro
Apesar de não haver dados sólidos ou balanço divulgado pelos clubes-empresas que viabilize a análise do impacto da SAF na administração em termos gerais e na gestão dos ativos intangíveis, a estrutura empresarial formal e uma visão negocial sobre o desporto podem potencializar os investimentos nas marcas.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2022
Atualizado às 07:38
A agudez da crise financeira experienciada pelos clubes brasileiros nos últimos anos desencadeou diversos debates sobre novas formas e estratégias de gestão das agremiações esportivas, culminando na recente edição da lei 14.193/2021, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol, conhecida pelo acrônimo SAF.
O primordial objetivo da SAF é incentivar os clubes brasileiros a constituírem uma sociedade empresária, fundando a figura do clube-empresa, com prerrogativas específicas que, além de implementar um novo modelo de gestão no futebol brasileiro, oferece mecanismos para a regularização das finanças dos clubes de médio a longo prazo.
Isso porque, muito embora não fosse proibida a constituição dos clubes como sociedades empresárias antes da edição da Lei da SAF, a esmagadora maioria das agremiações esportivas optou pela sua constituição em forma de associação civil sem fins lucrativos, notadamente pelo regime de tributação enxuto e simplificado, que era bem mais atrativo aos seus associados.
Contudo, se por um lado a organização do clube como associação civil carregava vantagens tributárias, de outro, os mecanismos de gestão ficaram em segundo plano, suscitando graves e estruturais problemas financeiros e de governança. Não por outro motivo, a lei da SAF vai além das normas societárias usuais e dispõe sobre normas de governança e de financiamento para a atividade esportiva nas modalidades feminina e masculina, dando nova roupagem à gestão do futebol brasileiro.
Aos clubes que optem pela constituição da SAF, a lei dispõe em seu art. 2º três métodos possíveis para tanto, quais sejam, (1) por meio da transformação do clube de futebol em Sociedade Anônima do Futebol; (2) pela cisão do departamento de futebol do clube e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol, para os casos em que o clube possui e pratica outras atividades esportivas para além do futebol, tais como basquete e remo; ou (3) pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
Independentemente da forma eleita para a constituição da SAF, o clube deverá observar, para além da própria Lei da SAF, a Lei Pelé e a Lei das Sociedades Anônimas no que couber, visto sua aplicação subsidiária, como prevê o art. 1º da Lei da SAF. Ademais, embora não expressamente mencionado pela Lei da SAF, o Código Civil, que contém uma parte geral destinada a sociedades como um todo, também é aplicável, tanto assim que a Lei da SAF alterou dispositivo do Livro II.
Quanto à governança, a Lei da SAF se preocupa em desenhar a estrutura necessária para a gestão do clube, dedicando-se até mesmo a descrever os requisitos e impedimentos para os cargos de administração, direção e fiscalização, de modo a garantir a administração profissional das finanças e conferindo maior transparência e segurança jurídica, bem como tornando o clube mais atrativo aos investimentos.
Alinhada às práticas de boa governança, a Lei da SAF também dispõe sobre a emissão de ações ordinárias de classe A para subscrição exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica que o constituiu, concedendo-lhe assim o direito à deliberação sobre temas sensíveis.
Avança a nova legislação, especialmente, no que diz respeito ao seu financiamento, ao permitir que os clubes emitam seus próprios debêntures, denominando-os de "debêntures-fut", com características remuneratórias próprias e destinação específica, notadamente no desenvolvimento de atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionadas às atividades típicas da SAF, assim como em seu estatuto social.
No que tange à tributação, a Lei da SAF impõe o pagamento mensal e unificado, nos cinco primeiros anos-calendário da constituição da SAF, à alíquota de 5%, do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas, da contribuição para o PIS/Pasep, da contribuição Social sobre o Lucro Líquido, do COFINS e da contribuição previdenciária que lhe couber, disposta na lei 8.212/91.
A alíquota devida pela SAF regride no sexto ano-calendário, passando então a incidir 4% sobre os impostos acima mencionados. Assim é que as alíquotas de tributação previstas pela lei materializam um grande incentivo - talvez o mais relevante - aos clubes na aderência da SAF como forma de organização societária.
Mas não é só. No que concerne às dívidas preexistentes, a Lei da SAF prevê que estas remanescem com a associação civil, oferecendo duas modalidades de quitação das obrigações: o regime centralizado de execuções ou a Recuperação Judicial ou Extrajudicial - o que constitui exceção às disposições da Lei de Recuperação Judicial e Falências (lei 11.101/2005), que não permitem o deferimento e processamento de Recuperação Judicial e Falência para associações sem fins lucrativos.
O regime centralizado de execuções possui regramento próprio descrito pela Lei da SAF, mas se assemelha razoavelmente ao processamento da recuperação judicial e falência, especialmente ao instituir uma lista preferencial de credores e a necessidade de apresentar um plano de credores no qual o clube ficará adstrito.
Inicialmente, o clube que aderir ao regime centralizado de execuções terá seis anos para pagar a todos os seus credores, podendo obter dilação desse prazo por mais quatro anos, desde que ao término do sexênio tenha havido o pagamento de ao menos 60% do passivo original.
No que se refere à propriedade intelectual, a Lei da SAF concede ao novo proprietário do clube-empresa o direito de exploração sobre os ativos porventura existentes, sendo certo que eventual modificação da marca deve ser autorizada pelo clube originário, titular das ações ordinárias da classe A, independentemente do percentual da participação no capital votante ou social. Ademais, a Lei permite que as marcas sejam transferidas pelos clubes como meio de integralização do capital social.
Embora o tratamento à propriedade intelectual conferido pela Lei da SAF seja bastante sucinto, com a profissionalização da gestão do futebol por intermédio da introdução de um novo modelo de organização do clube, a perspectiva para os investimentos nas marcas é otimista, tanto em decorrência da usual busca por lucros, como, em especial, pelo interesse existencial e afetivo dos torcedores em ver prosperar o seu clube do coração.
Apesar de não haver dados sólidos ou balanço divulgado pelos clubes-empresas que viabilize a análise do impacto da SAF na administração em termos gerais e na gestão dos ativos intangíveis, a estrutura empresarial formal e uma visão negocial sobre o desporto podem potencializar os investimentos nas marcas, maximizando o proveito econômico sobre a prática esportiva.
Isabelle Ilicciev Lage
Advogada especialista em Propriedade Intelectual no escritório Di Blasi, Parente & Associados.
Felipe Barros Oquendo
Atua no contencioso e consultivo referente à Propriedade Intelectual e Concorrência Desleal, bem como em Direito Desportivo e do Entretenimento.