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O segredo e as emendas do relator: o orçamento secreto como ofensa à democracia

O uso das emendas do relator, ao ocultar o efetivo requerente da despesa orçamentária e a finalidade política do uso da verba, viola a democracia pela ausência de transparência e usa o segredo como prática autoritária.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Atualizado às 15:50

1. Considerações gerais sobre o orçamento secreto

O orçamento público, instrumento de natureza legal que concretiza a adoção das medidas públicas e escolhas políticas, pressupõe o respeito à transparência fiscal e das informações, além do acatamento ao princípio republicano, em obser-vância à utilização da coisa pública ao interesse comum, e à democracia, devendo ser publicadas as informações relevantes à coletividade.

Contudo, a existência do que atualmente conhece-se como orçamento secre-to é juridicamente reprovável, uma vez que sua prática impõe opacidade à motiva-ção quanto a transferência das verbas públicas, potencializando o patrimonialismo, prática comum no Brasil.

Atualmente o Supremo Tribunal Federal - STF julga as Arguições de Des-cumprimento de Preceito Fundamental - ADPF's 850, 851, 854 e 1014 que questi-onam a constitucionalidade do orçamento secreto.

Segundo a Ministra Rosa Weber, o orçamento secreto, ou emendas do rela-tor, é "o esquema por meio do qual favorecidos os integrantes da base parlamentar do Executivo mediante liberação de emendas orçamentária em troca de apoio legis-lativo no Congresso Nacional, utilizado o instrumento das emendas do relator para ocultar a identidade dos parlamentares envolvidos e a quantia (cota ou quinhão) que lhes cabe na partilha informal do orçamento"1. Tal artifício oculta o requerente da despesa, já que indica apenas o Relator-Geral do orçamento, intermediador da verdadeira pretensão, secreta ao público.

A indevida utilização das emendas de relator para ocultar fins escusos, favo-recendo a corrupção por meio do segredo, atentando frontalmente contra a demo-cracia brasileira.

2. O conhecimento da motivação jurídica como impositivo democrático: a verdade como fundamento de validade.

A transparência acerca da motivação jurídica dos atos administrativos e le-gislativos, como na manifestação atos legais orçamentários, importam à democracia. É por meio do conhecimento da verdade que a realidade sociopolítica é percebida e conhecida pelos diversos setores sociais, possibilitando à população a ciência dos atos parlamentares, no caso específico deste artigo, da utilização do orçamento pú-blico.

A democracia deve basear-se no conhecimento de informações que sejam verdadeiras, a fim de imprimir legitimidade à tomada de decisões e de poder. Habe-rmas afirma que:

Graças a base de validez da comunicação voltada para o entendimento mú-tuo, um falante pode, por conseguinte, ao assumir a garantia de resgatar uma pretensão de validade criticável, mover um ouvinte à aceitação de sua oferta de ato de fala e assim alcançar para o prosseguimento da interação um efeito de acoplagem assegurando a adesão2.

A verdade é fundamental para o fortalecimento do regime democrático, fir-mando confiabilidade à democracia no que tange aos argumentos trazidos no pro-cesso político, seja no embate eleitoral, seja na análise crítica à atuação parlamen-tar, esta que deve ser divulgada e conhecida para a própria fiscalização pelo povo, ou mesmo na publicidade dos atos governamentais em respeito à coisa pública.

A verdade, assim, surge como premissa de validade, que se põe firmemente após o conhecimento de fatos, criando elementos legítimos a serem trazidos a um debate constante, próprio da democracia.

3. O segredo dos atos parlamentares como ofensa à democracia

O vocábulo segredo é tomado de empréstimo da obra de Bobbio, Democra-cia e Segredo, considerado pelo autor como elemento contrário à democracia, pois a ocultação da verdade é utilizada para o encobrimento das reais motivações do go-verno em exercício. Além disso, esclarece-se que o segredo ora referido não questi-ona a necessária proteção à privacidade ou mesmo ao interesse público ou social - ainda que tais institutos sejam, por vezes, utilizados desonestamente para atuação autoritária -, mas questiona a atuação do Estado sem a necessária motivação ou sem o devido esclarecimento aos cidadãos, ainda que conhecida a verdade pelos agentes governamentais. 

Neste tom, Bobbio declara que "A democracia é idealmente o governo do poder visível, isto é, do governo cujos atos de desenrolam em público e sob o contro-le da opinião pública"3. Ademais, frisa que "a democracia sempre foi contraposta a qualquer forma de autoritarismo, a todas as formas de governo em que o sumo po-der é exercitado de modo a ser subtraído na maior medida possível dos olhos dos súditos"4. Assim, Bobbio traz a relevância do conhecimento da verdade para trans-parência democrática e conhecimento dos fatores decisórios àqueles que sofrerão as consequências dos atos governamentais.

A democracia, regime que, por definição etimológica, "é o governo ou poder do povo"5, traz a necessidade de que ele seja sujeito de interlocução com o Estado, devendo produzir os atos governamentais em público, não apenas para conheci-mento público, mas para que sejam objeto de análise, questionamento, aprovação - ou reprovação -, sendo essa participação cada vez mais fluida, potencializada pela evolução dos meios de comunicação.

Se por um lado a democracia é o regime em que as ideias e planos são co-nhecidos, debatidos e relembrados, por outro lado vale lembrar que o enfraqueci-mento democrático ou ausência ocorre quando se pratica o segredo como procedi-mento governamental, quer seja pela censura, justificativas inverídicas ou por meio da propagação de notícias falaciosas.

As emendas de relator, ou orçamento secreto, ocultam o efetivo requerente da despesa orçamentária para que, em benefício próprio, beneficie-se da destina-ção financeira que será aplicada para finalidades privadas, fato que facilita práticas antirrepublicanas, como a corrupção.

Segundo Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia."6. A opacidade decorre da ausência de verdade, ou seja, da existência do segredo. O desconhecimento da real finalidade a ser alcançada pelo orçamento público é aten-tatório à democracia.

Não basta compreender que a atuação antidemocrática é sinônima apenas de regimes totalitários ou ditatoriais, havendo, nas contemporâneas conformações políticas denominadas democracias, atos que se configuram como atentatórios à democracia, tal como a ocultação dos motivos dos atos políticos.

Ora, o segredo existe além da não expressão das informações relevantes ao processo democrático, mas, também, pela expressão de informações falaciosas que encobrem os verdadeiros motivos dos agentes governamentais que retiram os pres-supostos de validade de um agir comunicativo, segundo referido por Habermas7. Portanto, mesmo regimes considerados democráticos, por terem seguido regras elei-torais e previsão formal de direitos individuais e coletivos, no que tange à participa-ção político-eleitoral, estão sujeitos à violação dos preceitos democráticos.

De fato, considerando a afirmação de Norberto Bobbio de que "democracia é idealmente o governo do poder visível, isto é, do governo cujos atos se desenro-lam em público e sob o controle da opinião pública"8, o que se vê historicamente é que em diversos Estados, tais como no Brasil, a tomada de decisões é baseada na ausência da verdade e encobrimento dos reais motivos, fato que se repete ao longo da história.

O que se vê em terras pátrias é a repetição de uma política de segredo prati-cada pelo Estado, procedimento largamente adotado pelos diversos períodos auto-cráticos. Percebe-se que historicamente o Estado pátrio atua de forma autocrática, autoritária, nos moldes destacados por Bobbio:

Há duas formas de governo, opostas uma à outra: democracia e autocra-cia. A democracia avança e a autocracia retrocede conforme o poder seja cada vez mais visível e os arcana imperii, os segredos de Estado, deixam de ser uma regra e se convertem em exceção, uma exceção que se recolhe em âmbitos sempre mais restritos e categoricamente estabelecidos9.

Se Bobbio afirma que numa democracia em estado progressivo o segredo deixa de utilizado para progressivamente adotarem-se procedimentos vinculados à verdade, o que se percebe em muitos Estados, dentre eles o Brasil, é o enfraqueci-mento democrático ante a adoção, ou pretensão de adoção, de atos autoritários, se-cretos ou injustificados.

Há falta de legitimidade quando o processo democrático, que envolve em si a necessidade de revigoramento constante das razões de seus agentes, é furtado da comunicação mútua entre os politicamente envolvidos. Bobbio frisa que "É como dizer nas relações humanas, seja entre Estados, o manter em segredo um propósito e o mantê-lo assim por não se poder apresentá-lo em público, é por si só a prova de fogo da sua imoralidade."10, devendo considerar que, num processo democrático, a manutenção das práticas em segredo seria igualmente imoral.

O segredo é prática comum quando os interesses particulares dos gover-nantes, em violação à res publica, sobressaem ao interesse público, impondo o des-conhecimento dos fatos, agora de forma oficial, maculando o necessário controle dos atos pelos diversos indivíduos. A impossibilidade da crítica e do embate político é a proteção dos atos autocráticos. A publicidade potencializa o risco de o autorita-rismo ruir, ante o conhecimento das reais motivações e consequente análise plural dos sujeitos governados.

A adoção do segredo como prática estatal representa risco à imprescindível comunicação em democracia, encobrindo a verdade, ressonando num cíclico vício de práticas repetitivas dos erros outrora cometidos.

Conclusão

O segredo é constantemente adotado em Estados totalitários ou ditatoriais ou mesmo naqueles em que a democracia não se efetivou de modo consistente, como no Brasil, sendo empecilho que fere a conhecimento dos atos e argumentos im-prescindíveis ao agir comunicativo, próprio da democracia.

Deve-se ter em vista que os atos praticados em segredo podem surgir com distinta roupagem ou potencializados por meio de novos elementos, como no orça-mento secreto, em que os reais motivos dos parlamentares são encobertos por moti-vações privadas.

É importante que o STF declare a inconstitucionalidade das emendas de rela-tor a fim de que impedir o prosseguimento desta violação à democracia e fomente maior discussão quanto à transparência no uso do orçamento público.

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1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamen-tal 854. Relatora: Min Rosa Weber, 14 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF854.VOTO.PRESIDENTEMINISTRAROSAWEBER.pdf. Acesso em 15 ago. 2022. 

2  HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p.80.

3 BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo. 1ª Ed. São Paulo: Unesp, 2015. p. 29

4 Ibid. p. 29.

5 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. Vol. 1: o debate contemporâneo. São Pau-lo: Editora Ática, 1994. p.40.

6 BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo. 1ª Ed. São Paulo: Unesp, 2015. p. 35.

7 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

8 BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo. 1ª Ed. São Paulo: Unesp, 2015. p. 29

9 Ibid, p. 40

10 Ibid. p. 59.

Bruno Ribeiro Machado

Bruno Ribeiro Machado

Advogado tributarista e professor universitário. Sócio do escritório Machado Lima. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV. Especialista em Direito Tributário pela PUC/MG.

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