Advocacia e ciência de dados (1): a importância da gestão e governança de dados para as bancas de advogados
Em resumo, a ciência de dados e a gestão e governança destes dados são aliados do advogado.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2022
Atualizado às 08:36
Entrando na terceira década do século XXI, a importância dos dados para os serviços ofertados pelos advogados é notória e inquestionável. Conhecer a probabilidade de entendimento dos tribunais, de determinada comarca ou de certo magistrado sobre tema jurídico específico (jurimetria), ou saber que determinado tipo de contrato ou aquisição de produto gera maior problema, é elemento essencial ao advogado e sua banca serem inseridos na advocacia 5.0 e tomar a melhor decisão, seja na fase processual ou pré-processual.
Mas, para se atingir este fim, mister que o advogado adote mindset voltado a gestão e governança de dados, zelando pela qualidade do dado que produz. Ao final deste processo, perceberá que os dados são realmente "o novo petróleo", ou melhor, um ativo de valor para seu escritório.
I. Descoberta dos dados
Mas essa visão não é nova! Os dados foram descobertos pelas sociedades empresárias nos anos 80, quando os sistemas de arquivos foram substituídos pelos mainframes. Naquele período, consolidou-se novos postos de trabalho, como o de administrador de banco de dados e de administrador de dados. Enquanto o primeiro atuava com a administração de database, apoio e modelagem de dados, o segundo traduzia informação e regras de negócio.
Nos anos 90, os computadores pessoais se popularizaram e os dados deixaram os mainframes e passaram a ser tratados nestes microcomputadores, em fenômeno conhecido como downsizing. O modelo de trabalho neste período sustentava-se em três pilares: modelagem de dados, administração de banco de dados e gestão de dados. As empresas começaram a investir em setores responsáveis por administração de dados.
No início dos anos 2000, a administração de dados sofreu um declínio, pois não acompanhou a evolução tecnológica daquela década. Mas, a partir de 2005, o surgimento de sistemas de gerenciamento de relacionamentos com clientes, passou a demandar mais o perfil de profissional voltado à administração de dados, pois foi neste período que as empresas passaram a adotar práticas de business inteligence para apoiar a tomada de decisões estratégicas. Até então, o administrador de dados era visto como função tática e não estratégica.
Mas, em 2010, tudo mudou! Os dados foram redescobertos, mas o crescimento desordenado das empresas, ocasionado por fusões, aquisições e reestruturações, culminou com bancos de dados e um excessivo de dados sem qualidade, com dados redundantes e não confiáveis. Os grandes grupos econômicos começam a trabalhar com conceitos de big data e uma quantidade inimaginável de dados passa ser processada a cada dia.
Além dos dois problemas já citados acima, de redundância e não confiabilidade de dados, outros dois também são realidade: ausência de governança e gestão de dados. É preciso dizer, desde já, que não se resolve estes problemas sem uma equipe multidisciplinar, mas com profissionais capazes de compreender os dados e sua importância.
II. Processo de evolução do dados
Mas, antes de adentrar na gestão e governança de dados e sua importância é preciso nivelar alguns conceitos básicos sobre esse tema e entender o processo de evolução do dado: metadado, informação, conhecimento e sabedoria.
Quando falamos em dados, nos referimos à matéria prima necessária para que se conseguir a informação, esta sim necessária à tomada de decisão estratégica. Os dados são a base essencial que se torna informação, gerando conhecimento e sabedoria empresarial.
Metadados representam os significados dos dados. Correspondem ao conteúdo técnico do dado (estrutura, formato, tamanho) e o conteúdo negocial (definições, conceitos, grau de relevância).
A informação, por sua vez, é o dado processado ao qual se atribui algum significado. Assim, em um banco estruturado de dados em que determinado campo traz valores negativos (-100000), uma vez tratado, processado, torna-se informação de um saldo negativo (-US$ 100.000,00).
Com a informação em mãos, passa-se a um processo de conhecimento, que corresponde ao conjunto de regras de manipulação e caracterização da informação. É o conhecimento que possibilita a solução de problemas e tomada de decisão estratégicas. No mundo bancário, por exemplo, a informação de saldo negativo de US$ 100.000,00 pode trazer o conhecimento jurídico de superendividamento, se a dívida decorrer de uma relação de consumo.
Neste caso, diante da possibilidade de aplicação das alterações trazidas pela lei 14.181/21, é o último estágio deste processo de evolução de dado que auxilia a tomada de decisão. A sabedoria é a utilização eficaz do conhecimento. Sabendo do superendividamento e riscos do processo de repactuação de dívidas previsto no Art. 104-A, é que se reflete sobre todas as possiblidades jurídicas e toma-se a melhor decisão, que traduz menor risco.
III. Ciclo de vida e qualidades do dado
Nestas etapas, percebe-se um ciclo de vida do dado e, neste contexto, surge o cientista de dados, como profissional responsável por analisar o dado, cruzar dados, descobrir novas tendências e novos conjuntos de informações e combinações que agreguem valor à informação, conhecimento e sabedoria das empresas.
Todo dado possui um ciclo de vida e este ciclo precisa ser gerenciado. Os dados podem ser extraídos, exportados, importados, migrados, validados, editados, atualizados, limpos, transformados, convertidos, integrados, segregados, agregados, referenciados, revisados, relatados, analisados, garimpados, salvos, recuperados, arquivados, restaurados e, finalmente, eliminados. Em cada etapa desta, precisa ser gerido a fim de garantir as qualidades que se deseja para um dado.
E que qualidades são estas tão desejadas aos dados de uma empresa? Adesão ao negócio, unicidade, integridade, confiabilidade, manutenibilidade, performance, legibilidade e disponibilidade.
A adesão ao negócio indica que o dado e metadado adere em sua totalidade ao negócio da empresa. Se o dado não é relevante ao próprio objeto social da empresa, não há como elevá-lo ao patamar de ativo.
A unicidade do dado reflete a sua exclusividade dentro do sistema da empresa. Sem repetição de conteúdo e de conceito. Um sistema estruturado com informações repetidas de dados promove-se a redundância e possiblidade de violação da confiabilidade por possível divergência.
A integridade do dado indica que ele atende a todas as regras de restrições, conduzindo à sua confiabilidade.
A confiabilidade diz respeito a atualidade e a certeza de que o dado não possui erros e que seu uso não afetará negativamente o resultado que se almeja alcançar com ele. Por exemplo, um dado errado ou dados errados em um relatório cria falsa realidade e afeta a decisão estratégica.
Manutenibilidade indica o baixo custo de manutenção do dado ou metadado, quando há solicitação de mudança que possa afetá-lo.
Performance indica o tempo de resposta e acesso ao dado quando necessário utilizá-lo.
Legibilidade diz respeito a facilidade de compreensão do dado ou metadado. Para esta característica, a forma que se constrói a aplicação e se estrutura o dado pode ser determinante para garantir essa qualidade.
Disponibilidade indica que o dado ou metadado é conhecido e está disponível no momento em que seu uso se torna necessário.
Sem estas qualidades, um dado ou metadado não se converterá em ativo, tornando inócua sua gestão e governança. Para atingi-las, mister mudança de cultura corporativa e dos colaborados.
IV. Gestão e governança de dados
A estrutura de gestão e governança de dados pode variar, conforme inúmeras variáveis. Mas para se conseguir alcançar dados com as qualidades acima descritas, necessário se faz refletir nas atividades em torno do sistema e dos dados que, ao final, executadas, garantirão as características descritas.
A gestão de dados é a disciplina que diz respeito ao planejamento, controle e entrega de dados e informação. Inclui o desenvolvimento, execução e supervisão de planos, política, programas, projetos, processos, práticas e procedimentos que controlam, protegem, distribuem e aperfeiçoam o valor dos ativos de dados e informações.
No guia DAMA-DBOK, estabelece-se algumas funções, especialidades de trabalho para efetivação do gerenciamento de dados e informações, cuja função central pertence à Governança de Dados.
A Governança de Dados é a função que representa o exercício da autoridade e controle de estratégias, políticas, regras, procedimentos, papéis e atividades envolvidas com ativos de dados. No em torno da Governança estão outras funções igualmente importantes como:
(i) Gestão de Arquitetura de Dados (define as necessidades de dados conforme estratégia da empresa);
(ii) Gestão de Desenvolvimento de Dados (representa as atividades de dados durante desenvolvimento de sistemas: modelagem, requisitos do dado, projeto, implantação e manutenção de BD);
(iii) Gestão de Operação de Dados (responsável pela manutenção dos dados ao longo do seu ciclo de vida);
(iv) Gestão de Segurança dos Dados (responsável pelas políticas de segurança e prover adequada autenticação, utilização, acesso e auditoria de dados);
(v) Gestão de Dados Mestres e de referência (definem e controlam atividades para garantir a consistência e visões únicas desses dados);
(vi) Gestão de Data Warehousing e Business Inteligence (provisão de dados para suporte de decisões estratégicas);
(vii) Gestão da Documentação e Conteúdo (dedicado à implementação e controle de armazenamento proteção e acesso aos dados não estruturados);
(viii) Gestão de Metadados (gestão e armazenamento de metadados); e
(ix) Gestão de Qualidade de Dados (voltada para a garantia da qualidade do dado com proposito de medir, avaliar, melhorar a qualidade do dado).
Todas essas funções visam o completo gerenciamento de dados e informações, conforme dissemos alhures, com vista a transformação dos dados empresariais em ativo. Não necessariamente cada função será exercida por um profissional exclusivo, mas estes olhares distintos dos dados e sistemas, alinhados com as políticas da autoridade responsável pela governança dos dados, correspondem, ao nosso sentir, à melhor prática de gestão de dados.
V. Concluindo...
E como o processo de evolução dos dados, o ciclo de vida dos dados, as qualidades dos dados, a gestão e governança dos dados podem auxiliar a atividade de advocacia?
Ora, neste ponto a ciência de dados é importante base para a tomada de decisão e análise de riscos. A medição de aceitação de argumentos jurídicos (jurimetria) representa uma base de dados a permitir adotar diferentes estratégias processuais a partir de objetos específicos de demandas ou causas de pedir e pedidos recorrentes submetidos a um mesmo julgador, além de direcionar com menor risco o cliente em Dispute Resolution Alternatives, por exemplo. Isso acarreta redução de riscos de diversas naturezas, jurídico, processual, financeiro, contratual e de imagem para o escritório, viabiliza maior assertividade nas decisões, elevação de receitas e amplia a visão em inovação.
O conhecimento e mapeamento sobre produtos e serviços mais arriscados para o negócio de seu cliente aproxima a banca de advogados ao cliente solidificando o relacionamento, permite aperfeiçoar procedimentos internos de seus clientes, ampliar seus fluxos de receitas, melhorar a qualidade de produtos e serviços dele e ajudar a estabelecer diferenciação competitiva.
Em resumo, a ciência de dados e a gestão e governança destes dados são aliados do advogado. No conjunto, tornam-se um produto em si mesmo, um ativo do escritório, comercializável, e o conhecimento adquirido a partir de sua análise transforma-se em oportunidades de negócios e, por conseguinte, em faturamento.
Sérgio Jacob Braga
Gestor-técnico da banca Ferreira e Chagas Advogados