A controvérsia sobre o stay period na mediação antecedente aos processos de insolvência
Assim, a rigor, devedora não poderia sequer requerer novamente a tutela nem com base em novo fato juridicamente relevante nem com base no mesmo fato perigoso já preexistente (crise financeira e risco de constrições patrimoniais).
quinta-feira, 15 de dezembro de 2022
Atualizado às 07:52
Não é novidade que a lei 11.101/05 ("LFRE") foi atualizada pela lei 14.112/20 com o fim de aprimorar, por meio da reforma e da inclusão de dispositivos mais efetivos, a legislação que regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária no Brasil.
Desde a sua promulgação, há quase dois anos, muito se discute as alterações legislativas instituídas no sistema de Insolvência, seus desafios e alcances. Entretanto, até hoje, pouco se falou sobre a criação e devida aplicação do art. 20-B da LFRE, que prevê a possibilidade de serem instauradas mediação ou conciliação antecedentes (ou incidentais) a processos de recuperação judicial em determinadas hipóteses, tal qual a hipótese contida no inciso IV, ou seja, quando já houver "negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial".
O §1o do art. 20-B é claro ao prever que, sendo o caso do inciso IV - e já havendo, portanto, negociação em andamento com os credores da companhia em crise financeira - é facultado à empresa ajuizar Tutela de Urgência Cautelar, requerendo a suspensão de todas as execuções promovidas contra ela pelo prazo de 60 dias.
Sem prejuízo da disposição contida na LFRE, a regra geral prevista no art. 308 do CPC é de que, uma vez efetivada a tutela de urgência pelo magistrado, o pedido principal deve ser formulado em 30 (trinta) dias, sob pena de haver cessação da eficácia da decisão liminar. Em outras palavras, segundo a dicção do CPC, caso não ocorra o ajuizamento da ação principal neste prazo de 30 dias fixado pela lei processual, a medida liminar deixa de produzir efeitos e, consequentemente, o requerente da tutela de urgência retorna ao seu status quo, sem a proteção anteriormente concedida.
Neste ponto, já é de se destacar que, a despeito da previsão contida na lei processual, a lei recuperacional nada dispõe acerca da necessidade de apresentação do pedido principal (no caso, o pedido de recuperação judicial) no prazo de 30 dias sob pena de a liminar deixar de produzir efeitos. Pelo contrário: a LFRE, como visto, prevê expressamente e sem nenhuma margem para dúvidas que a decisão liminar permanecerá vigente e válida por 60 dias, período que deve ser utilizado para que as negociações, já iniciadas antecipadamente no curso da mediação, sejam levadas a cabo.
Este artigo tem como objetivo refletir e comentar aquilo que parece ser (ou deveria ser) óbvio: a lei especial (LFRE) prevalece sobre a lei geral (CPC), motivo pelo qual a suspensão das ações promovidas contra o devedor deve, necessariamente, obedecer aos 60 dias determinados na LFRE, independentemente do prazo de 30 dias previsto no art. 308 do CPC, sob pena de fazer letra morta do aqui tratado art. 20-B, §1o e de violar, sobretudo, os preceitos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), além de todo o racional da legislação que rege a Insolvência no Brasil.
Mesmo antes das alterações da LFRE, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já encorajava a realização de mediação/conciliação em processos de recuperação judicial, com o intuito de tornar mais eficaz e satisfatórias as tratativas e as tentativas de composição entre devedores e credores.
Para além do CNJ, grande parte da doutrina e muitos dos profissionais que atuam na área de Insolvência há muito já entendem que o estímulo às negociações é bastante vantajoso porque beneficia (i) o devedor em crise financeira, que busca o reperfilamento de dívida e seu soerguimento financeiro; (ii) o credor, cujo maior objetivo é receber o valor que lhe é devido no menor prazo e nas melhores condições possíveis; e (iii) o poder judiciário, que, evidentemente, é diretamente privilegiado quando da resolução célere de conflitos.
Independentemente das divergências acadêmicas e dos diferentes pontos de vista acerca da real eficácia da mediação em contextos envolvendo empresas em crise econômico-financeira, fato é que a mediação foi uma aposta da reforma legislativa de 2020.
É neste contexto que o art. 20-B, §1o passou a fazer parte da LFRE, dispondo, expressamente, sobre a possibilidade de realizar, como medida antecedente a um eventual pedido de recuperação judicial (ou falência), procedimento de mediação/conciliação a fim de estimular a resolução de litígios entre devedores e credores, que têm a oportunidade de transigir em ambiente monitorado e coordenado pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) ou por câmara mediadora especializada.
A suspensão das execuções pelo prazo de 60 dias é necessária a fim de que, durante o período de negociação, os envolvidos na mediação atuem de forma transparente e calcados de boa-fé, sem que a parte devedora sofra constrições capazes de prejudicar a continuidade das tratativas e de impactar ainda mais o seu fluxo de caixa, já asfixiado em razão do endividamento cujo reperfilamento se pretende. E neste cenário colaborativo, durante a suspensão, se de um lado a devedora tem condições de proteger o seu caixa provisoriamente, de outro lado, os credores têm a oportunidade de negociar a reestruturação e as condições de adimplemento do passivo existente.
Como bem esclarece o professor Fábio Ulhoa Coelho, "A inexigibilidade temporária das execuções contra o devedor em dificuldade é, como todos sabem, uma condição imprescindível à criação de um ambiente propício à negociação racional. A disciplina da questão da suspensão da exigibilidade pela Reforma de 2020 (abrindo duas alternativas para isso) pode perfeitamente ser lida como a previsão de uma possível "nova fase" no processo judicial, que visa contribuir para a superação da crise das empresas".
A medida busca, portanto, resguardar o resultado útil da mediação e do eventual processo de recuperação judicial que, se ajuizado posteriormente em razão do resultado infrutífero das tratativas, iniciará em estágio mais avançado e maduro, pois já terá havido conversas preliminares entre as partes e stakeholders do processo.
No momento da distribuição da Tutela de Urgência Cautelar nos moldes do art. 20-B, §1o, cabe à empresa devedora demonstrar a existência dos elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, assim como comprovar que a mediação já foi efetivamente iniciada - exigência da lei. Ainda, para que a tutela pretendida seja deferida, a parte requerente também deve atender aos requisitos necessários para o ajuizamento de pedido de recuperação judicial, conforme previsto no art. 48 da LFRE.
Uma vez preenchidas todas as exigências legais, a liminar será deferida pelo magistrado e a tutela jurisdicional em caráter cautelar, efetivada.Está mais do que claro que a LFRE autoriza a suspensão das execuções contra a devedora, pelo prazo de 60 dias, quando a empresa requerente da Tutela de Urgência Cautelar já estiver em fase de negociação da dívida.
O procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente está previsto no capítulo III do CPC, a partir do art. 305, sendo que o art. 308, caput, por sua vez, preconiza o seguinte:
Art. 308. Efetivada a tutela cautelar, o pedido principal terá de ser formulado pelo autor no prazo de 30 (trinta) dias, caso em que será apresentado nos mesmos autos em que deduzido o pedido de tutela cautelar, não dependendo do adiantamento de novas custas processuais.
Para o professor Humberto Theodoro Júnior, o entendimento é de que:
Isto é, mesmo nas tutelas urgentes cautelares, em que o promovente não necessita desde logo anunciar o pedido principal, este, a seu tempo, será formulado nos próprios autos em que ocorrer o provimento antecedente ou preparatório, sem necessidade de iniciar uma ação principal apartada. Não haverá, como se vê, dois processos. Ainda que o caso seja de tutela urgente antecedente, tudo se passa dentro de um só processo.
Desta forma, o que se conclui é que a pretensão do mérito não pode ficar estagnada no tempo e é por este motivo que o CPC fixa o prazo (peremptório) de 30 dias para que o pedido principal seja apresentado.
Neste contexto, questiona-se: não havendo o ajuizamento da recuperação judicial (pedido principal) no prazo de 30 dias determinado pelo CPC, haveria a cessação da eficácia da decisão que determinou a suspensão, por 60 dias, das execuções promovidas contra a empresa devedora - requerente da Tutela de Urgência Cautelar em caráter antecedente? Parece evidente que não, justamente em razão do prazo de suspensão previsto na LFRE.
A LINDB, que disciplina os critérios para a correta aplicação das normas jurídicas, estabelece que os princípios da especialidade, hierarquia, cronologia e do diálogo das fontes devem ser observados e pré ponderados quando houver antinomia ou divergência entre leis, assunto que há muito já foi esclarecido pela doutrina processualista de forma bastante aprofundada.
Ao compreender e empregar as normas e conceitos sedimentados pela LINDB de forma adequada, a conclusão que se tira é de que a LFRE
(i) é a legislação específica que dispõe sobre procedimentos recuperacionais, motivo pelo qual se sobrepõe ao CPC sob a luz dos critérios da especialidade e da hierarquia;
(ii) é posterior ao CPC, porquanto as alterações da lei recuperacional entraram em vigor no ano de 2021, prevalecendo sobre ela o critério da cronologia;
(iii) busca uma interpretação sistemática de seus dispositivos, a fim de que os seus principais objetivos (soerguimento de empresas viáveis e manutenção da atividade econômica) sejam alcançados, o que leva a crer que, com base no critério do diálogo das fontes, ela também deve predominar.
O prazo de 60 dias previsto na lei especial está intimamente ligado ao ajuizamento do pedido de recuperação judicial, que poderá ocorrer ou não, a depender do resultado das negociações realizadas na fase pré-processual, por meio da mediação instaurada.
A prática jurídica, inevitavelmente, levará ao debate sobre a fixação desse prazo de 60 dias: esse período é suficiente para se atingir o objetivo da lei, qual seja o de estimular e concluir as negociações em ambiente controlado? A discussão é válida, entretanto, fato é que, nos termos da lei, esse foi o lapso temporal concedido e que deve ser aplicado para que as tratativas aconteçam, podendo-se afirmar, com segurança, que jamais foi aventada pelo legislador a possibilidade de redução da eficácia da liminar em razão do não ajuizamento da recuperação judicial em 30 dias, fixado segundo a sistemática do CPC.
Sendo assim, eventual aplicação equivocada do art. 308 do CPC na hipótese do art. 20-B, §1o afrontaria o racional da LFRE e os próprios critérios fixados pela LINDB, haja vista que uma recuperação judicial precipitada, ajuizada ainda dentro do período de negociação, evidentemente colocaria fim às conversas e encerraria qualquer possibilidade de acordo entre devedor e credores, que se veriam forçados a participar de um processo recuperacional prematuro e absolutamente desconexo à intenção e aos princípios do instituto recuperacional. Haveria, portanto, violação ao objetivo e à previsão expressa da lei especial.
É importante destacar, ainda, que o §1.o do art. 20-B não força o devedor a ajuizar recuperação judicial. Como ensina o professor Manoel Justino, "o fato de ser concedida essa tutela não obriga o pedido posterior de recuperação; no entanto, a tutela só poderá ser concedida com a prova de que, se necessário, estará a peticionária apta ao pedido de recuperação".
Assim, qualquer interpretação que venha a defender a aplicação do art. 308 em detrimento da LFRE, inevitavelmente, ofende o devido processo legal, pois impede as partes de exercerem suas faculdades de natureza processual, notadamente no que diz respeito à possibilidade de negociarem legitimamente, durante o prazo de 60 dias (em que estão suspensas as execuções) a elas concedido, antes da distribuição forçada de um pedido de recuperação judicial em 30 dias.
Vale lembrar que o devido processo legal, na condição de direito fundamental, garante às partes gozarem de todos os meios jurídicos disponíveis em seu favor, cabendo ao judiciário prestar (ou não prestar) a jurisdição tal qual prevista na legislação.
Como decorrência do devido processo legal, tem-se ainda o princípio da efetividade - também conhecido como "processo justo". Por meio do "processo justo", busca-se a tutela jurisdicional que, evidentemente, só pode ser disponibilizada à parte que de fato tenha interesse em pleitear e obter determinado provimento jurisdicional. Assim, não poderia a lei geral obrigar a parte - no caso, a empresa devedora - a ajuizar processo de recuperação judicial em prazo inferior ao previsto na lei específica, ou seja, ainda durante a fase pré-processual e negocial, pois sequer haveria interesse do devedor na obtenção de qualquer tutela jurisdicional, especialmente porque ainda vigente a suspensão da LFRE.
Não menos importante para a reflexão aqui trazida, destaca-se, ainda, o princípio da proporcionalidade, já que, seguindo os conceitos instituídos pela LINDB, é necessário relativizar qualquer regra que venha a criar um obstáculo desproporcional e desarrazoado ao direito da parte (ou à lei especial). Neste sentido, o art. 5º da LINDB dispõe expressamente que o magistrado, ao aplicar a lei, sempre deve atender aos fins sociais a que ela se dirige.
Com base nisso, não seria razoável exigir que a parte distribuísse pedido de recuperação judicial a título de ação principal em 30 dias, em atenção ao CPC e, concomitantemente, em afronta ao próprio instituto da insolvência e em detrimento dos próprios credores e da própria tutela jurisdicional liminarmente efetivada.
Tenha-se em mente que o próprio CPC de 2015 procurou incentivar a autocomposição, por meio da mediação, que é justamente o que prevê a LFRE ao autorizar a distribuição de Tutela Cautelar de Urgência com a suspensão das demandas promovidas contra o devedor e a criação de um ambiente negocial, a fim de evitar processos de recuperação judicial desnecessários.
Diante disto, eventual compreensão pela necessidade de ajuizamento de pedido recuperacional antes do transcurso do prazo de 60 dias previsto pelo §1.o do art. 20-B é, sem nenhuma dúvida, também afrontando as diretrizes do próprio CPC.
A este respeito, vale salientar o quanto previsto no parágrafo único do art. 309 do CPC, que dispõe que, tendo havido a cessação da eficácia da tutela cautelar, como regra geral, não é possível à parte renovar o pedido. Trazido o dispositivo à baila do processo de recuperação judicial, bem da verdade é que o parágrafo único do referido art. 309 simplesmente preconiza que, caso a suspensão das execuções contra o devedor perdesse a sua eficácia em razão do não ajuizamento da recuperação judicial em 30 dias (prazo indevidamente empregado e em afronta à LFRE), a empresa em crise econômico-financeira sequer poderia renovar o pedido de proteção por mais 30 dias, a fim de totalizar os 60 dias previstos na LFRE.
Assim, a rigor, devedora não poderia sequer requerer novamente a tutela nem com base em novo fato juridicamente relevante nem com base no mesmo fato perigoso já preexistente (crise financeira e risco de constrições patrimoniais).
Ou seja, a má aplicação do CPC em detrimento da LFRE significa simplesmente, atravancar as negociações, estrangular a empresa requerente da tutela cautelar e afrontar o interesse dos próprios credores envolvidos na mediação, aniquilando o art. 20-B, §1º da lei recuperacional.
A melhor interpretação da LFRE não é, de forma alguma, no sentido de que o pedido de recuperação judicial, na condição de ação principal, deve ser ajuizado em 30 dias após efetivada a tutela de urgência concedida nos termos do art. 20-B, §1o da LFRE, sob pena de a suspensão das ações promovidas contra o devedor se tornar inócua e de a empresa em crise econômica ainda se ver obrigada a responder por eventuais prejuízos causados aos credores, na forma do art. 302 do CPC.
Embora se aplique à LFRE o CPC, assim como o Código Penal e o Código de Processo Penal, no que couber, a legislação recuperacional e falimentar também traz uma série de normas específicas que devem ser observadas, priorizadas e bem aplicadas.
Assim, se a lei especial trouxe previsões de cunho material e processual inerentes à própria dinâmica da legislação que regula a insolvência no Brasil, a exemplo da aqui tratada suspensão das ações pelo prazo de 60 dias, não poderia o magistrado valer-se da previsão contida na lei geral para cercear o direito de devedores e credores à negociação prevista na LFRE, sob fundamento de que o CPC o autorizaria a fazê-lo.
Beatriz Leite Kyrillos
Advogada da equipe de Reestruturação e Insolvência do Felsberg Advogados. Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC-SP e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP.