O peso das características técnico-funcionais no exame de desenhos industriais
A exclusão à proteção de desenhos industriais baseados principalmente/exclusivamente em características técnicas/funcionais está presente em várias jurisdições, incluindo Canadá, Europa, Japão, Estados Unidos e, como mencionado anteriormente, Brasil.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2022
Atualizado às 08:54
No Brasil, desenhos industriais têm certas limitações para sua proteção, conforme definido pela Lei de Propriedade Industrial. Por exemplo, objetos ou padrões ornamentais contrários à moral e aos bons costumes ou contrários à liberdade de consciência ou de crença não são registráveis como desenhos industriais. Tais critérios são consideravelmente diretos e nem sempre aplicáveis ao examinar desenhos industriais. No entanto, outra exclusão à proteção levanta preocupações consideráveis quando os usuários buscam a proteção de desenhos industriais - aspectos essencialmente técnicos ou funcionais.
Nesse sentido, a LPI define no art. 100 que:
"Não' são registráveis como desenho industrial:
l - o que for contrário à moral e aos bons costumes ou que ofenda a honra ou imagem de pessoas, ou atente contra liberdade de consciência, crença, culto religioso ou ideia e sentimentos dignos de respeito e veneração;
II - a forma necessária comum ou vulgar do objeto ou, ainda, aquela determinada essencialmente por considerações técnicas ou funcionais.".
Assim, haveria quatro tipos de exclusão ao registro como desenho industrial definidos no art.100 (II) da LPI -
1) forma necessária comum;
2) forma vulgar;
3) considerações essencialmente técnicas; e
4) considerações essencialmente funcionais.
Aparte dessas exclusões específicas à proteção, todas as formas devem ter direito à proteção como desenho industrial, desde que os requisitos de registrabilidade sejam devidamente atendidos.
A forma necessária comum pode ser entendida como relacionada a formas com aparência ditada por normas de mercado, como aquelas determinadas por institutos de normalização técnica, como ABNT, ASTM e ISO. Além disso, a forma vulgar representa o oposto do que a forma deve possuir - novidade e originalidade1.
Quanto à exclusão à registrabilidade de desenhos industriais baseados em características essencialmente técnicas ou funcionais, a limitação teria ocorrido para diferenciar a proteção ornamental do desenho industrial de conjuntos de características inteiramente técnicos ou funcionais protegíveis sob a forma de outros ativos de propriedade industrial. Particularmente, apenas a matéria essencialmente determinada por características técnicas ou funcionais deve ser excluída da proteção como desenho industrial, pois esta, por sua vez, seria protegida como patente (de invenção ou modelo de utilidade).
Mais notadamente, o estabelecimento de uma essencialidade quanto aos aspectos técnicos ou funcionais de um desenho industrial implica que tais exclusões de registrabilidade não decorrem de sua mera presença no desenho industrial. Em vez disso, o art. 100 (II) da LPI indica a exigência de considerar tais aspectos técnicos ou funcionais em vista da configuração como um todo. Em última análise, se as características ornamentais conferem ao desenho industrial um aspecto global distintivo, ainda que possua características técnico-funcionais, tal desenho não deve se enquadrar no disposto no art. 100 (II) da LPI.
A importância desse tópico é ainda aumentada na medida em que diversos objetos partilham uma funcionalidade técnica sem necessariamente se afastarem da proteção de desenho industrial, sendo que uma forma contendo características técnicas ou funcionais pode ser registrável como desenho industrial sempre que apresente uma ornamentabilidade distintiva. De fato, muitos desenhos industriais correspondem a produtos comerciais que comumente exigem ergonomia, aderência, conforto, entre outros recursos que possuem efeito substancial no sucesso ou fracasso de mercado de um produto. Além disso, dependendo do tipo de desenho industrial para o qual se pretende a proteção, os elementos ornamentais podem se limitar a determinadas partes do objeto, devendo o desenho industrial ser registável sempre que os referidos elementos ornamentais confiram ao objeto um aspecto global distinto, independentemente da sua proporção volumétrica. Certamente, esse aspecto diferenciador varia de acordo com o segmento de mercado ao qual o desenho industrial se destina.
A exclusão à proteção de desenhos industriais baseados principalmente/exclusivamente em características técnicas/funcionais está presente em várias jurisdições, incluindo Canadá, Europa, Japão, Estados Unidos e, como mencionado anteriormente, Brasil. Enquanto alguns exigem conjuntos de regras para avaliar a funcionalidade de um desenho industrial ou, alternativamente, se este é principalmente ornamental (o que é o caso dos Estados Unidos2), outros têm diretrizes mais genéricas. A questão no Brasil trata da aplicação indevida do art. 100 (II) pelos examinadores, inadvertidamente limitando a proteção de um produto/objeto como desenho industrial.
Portanto, o INPI geralmente aplica um entendimento restrito sobre a aplicabilidade das limitações técnicas/funcionais em relação aos desenhos industriais. Particularmente, o Manual de Desenhos Industriais determina que:
"5.4.2 Forma essencialmente técnica ou funcional
Muitos objetos possuem, em maior ou menor grau, tanto características técnicas quanto ornamentais. No entanto, por vezes a forma plástica resulta mais da necessidade de funcionamento do produto que de preocupações relacionadas à aparência ou ao aspecto visual.
Nessas situações, por mais que haja certo aspecto ornamental nas formas do objeto, se essas características não preponderam sobre o que se observa como técnico ou funcional, o objeto não pode ser registrado como desenho industrial.
O pedido de registro que contiver objeto cuja forma plástica seja determinada essencialmente por considerações técnicas ou funcionais será indeferido com base no § 4º do art. 106 da LPI, ainda que a configuração em tela seja nova e original."
Nesse Manual, o INPI indica ainda a prevalência de características técnicas ou funcionais como fundamento para o indeferimento de um desenho industrial, embora não haja procedimento específico para tal avaliação. Assim, decisões baseadas em funcionalidade inadmissível de desenhos industriais podem variar de acordo com o examinador responsável pelo caso. Em algumas decisões, os examinadores podem realizar uma busca de patentes para indicar características que seriam consideradas essencialmente técnicas/funcionais, em consonância com procedimentos de exame no exterior, mas esse não é sempre o caso em pedidos de desenho industrial brasileiros que enfrentam um indeferimento baseada em funcionalidade.
Infelizmente, a proporção de pedidos de desenho industrial indeferidos com base no art.100 (II) não é publicado pelo INPI nem o número correspondente de recursos. De qualquer forma, a porcentagem de decisões de rejeição reformadas com base em todos os pedidos de desenho industrial com recursos variou de 25,5% (2018), 45,2% (2019), 39,3% (2020), 8,5% (2021) e 40,4% (2022), ou seja, menos da metade das decisões de indeferimento proferidas pelo INPI foram revogadas na fase recursal no período de 2018-2022.
Uma nova versão do Manual de Desenhos Industriais está em consulta pública até 07 de dezembro de 2022. Espera-se que aspectos como a presença de características técnicas e seu peso na registrabilidade dos desenhos sejam abordados no texto final, de modo que o INPI aplique adequadamente a redação do art. 100 (II) em consonância com as necessidades dos usuários e as melhores práticas adotadas no exterior, como na Europa e nos Estados Unidos, estimulando ainda mais a harmonização da interpretação da LPI pelos examinadores e fomentando a criação e sua proteção.
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1 Lei de Propriedade Industrial, artigo 97 "O desenho industrial é considerado original quando dele resulte uma configuração visual distintiva, em relação a outros objetos anteriores."
2 "A base probatória adequada para uma rejeição sob 35 USC 171 de que uma reivindicação carece de ornamentalidade é uma avaliação da aparência do próprio design. O conhecimento da técnica pelo examinador, uma resposta a uma carta de consulta, um encarte enfatizando as características funcionais/mecânicas do design, o relatório descritivo de uma patente de utilidade análoga (do requerente ou de outro inventor) ou informações fornecidas no relatório descritivo podem ser usados para complementar a análise do design. Se um design está incorporado em um artigo mecânico específico, a análise de que o design carece de ornamentalidade porque sua aparência é ditada por requisitos funcionais deve ser apoiada por referência a patentes de utilidade ou alguma outra fonte de informação sobre a função do design." (Traduzido, ênfase adicionada) USPTO, Manual de Procedimento de Exame de Patentes, Capítulo 1500 - Patentes de Design, 1504.01(c) - Falta de Ornamentalidade.
Ana Cristina Müller
Sócia da área de Propriedade Intelectual do BMA Advogados
André de Moura Reis
Especialista em Patentes da área de Propriedade Intelectual do BMA Advogados