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Revisão da Vida Toda: análise do julgamento do STF no tema 1102

O STF conclui o julgamento do Tema 1102, consagrando a tese da revisão da vida toda.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Atualizado às 08:27

Reconhecimento da repercussão geral no Tema 1102

O primeiro marco processual significativo reside no reconhecimento da configuração da repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo do Tema 1102 (conforme arts. 102, § 3º, da Constituição Federal e 1.035 do CPC/2015).

O Supremo Tribunal Federal debateu esse tópico em Plenário Virtual, e na ocasião tivemos a oportunidade de defender que esse tema, em sua natureza, não é dotado de repercussão geral, porque sequer se trataria de matéria com respaldo constitucional direto.

Conforme defendemos em agosto de 2020, a disciplina do cálculo do valor dos benefícios previdenciários é, desde as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional 20/98, matéria de cunho essencialmente infraconstitucional.

A forma de cálculo dos benefícios previdenciários era contemplada na redação original do art. 202, do Texto Constitucional, adiante transcrito:

Art. 202. É assegurada aposentadoria, nos termos da lei, calculando-se o benefício sobre a média dos trinta e seis últimos salários de contribuição, corrigidos monetariamente mês a mês, e comprovada a regularidade dos reajustes dos salários de contribuição de modo a preservar seus valores reais e obedecidas as seguintes condições:

Esse dispositivo, contudo, foi alterado pela Emenda Constitucional 20/98, que o dedicou à Previdência Complementar. Desde então, a questão do cálculo do valor dos benefícios previdenciários restou a cargo do art. 201, § 3º, que apenas sinaliza a atualização dos salários de contribuição e remete a forma de cálculo à norma infraconstitucional:

§ 3º Todos os salários de contribuição considerados para o cálculo de benefício serão devidamente atualizados, na forma da lei.

Vale dizer que a metodologia de cálculos do valor dos benefícios previdenciários somente retorno ao bojo do Texto Constitucional com o art. 26 da Emenda Constitucional 103/19. Antes dessa recente alteração normativa, porém, prevalece a compreensão já mencionada acima, no sentido de que se trata de matéria evidentemente infraconstitucional.

Assim, defendemos naquele momento, a tese da revisão da vida toda só alcançaria a Constituição Federal indireta ou reflexamente, configurando a barreira de admissibilidade dos recursos extraordinários que é bastante conhecida como ofensa indireta ou ofensa reflexa à Constituição. Nas palavras do Mestre Araken de Assis:

"Entende-se por ofensa reflexa, oblíqua ou indireta a necessidade de interpretar norma infraconstitucional ou tratado para chegar à conclusão que sua aplicação violou norma constitucional. (...) Em tais casos, inexistirá repercussão geral."

(ASSIS, Araken. Manual dos Recursos, 9ª ed., S. Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 896)

É importante registrar que haviam inúmeros precedentes do próprio STF em que se decidiu que a apreciação desse tema incidiria na análise de legislação infraconstitucional, o que inviabiliza a própria admissão do recurso extraordinário: ARE 1.216.156, Relator Ministro Gilmar Mendes, publicacao em DJe-101 de 27/4/2020; RE 1.258.980, Relator Ministro Luiz Fux, publicacao em DJe-058 de 16/3/2020; ARE 1.193.778, Relator Ministro Alexandre de Moraes, publicacao em DJe-055 de 21/3/2019; ARE 1.173.002, Relator Ministro Celso de Mello, publicacao em DJe-262 de 6/12/2018; ARE 1.130.537, Relator Ministro Edson Fachin, publicacao em DJe-110 de 5/6/2018.

No mesmo rumo, sublinhe-se também que os dois primeiros votos apresentados em Plenário Virtual quanto ao Tema 1102 indicaram que a tese da revisão da vida toda não configuraria reafirmação de jurisprudência.

Em linhas gerais, deve-se resgatar que desde a própria implementação da sistemática do fator previdenciário, com a lei 9.786/99, que regulamentou as alterações trazidas pela Emenda Constitucional 20/98, a metodologia de cálculo dos benefícios previdenciários foi reconhecida como matéria infraconstitucional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, a ADIn 2.111/DF, ao decidir pela constitucionalidade do fator previdenciário, então recém implementado, fundamentou-se no sentido de que se tratava de simples e necessária regulamentação legal de dispositivo constitucional.

Por todos estes argumentos, defendemos que o Excelso Pretório não reconhecesse a repercussão geral da matéria, tendo sido surpreendente esse primeiro desfecho do caso, em sentido contrário a esse apontamento.

Apesar de esse tópico configurar matéria processual superada, vale como importante registro desse uso aleatório da ofensa reflexa pelo Supremo Tribunal Federal, com grande probabilidade de afetar futuros novos julgamentos em matéria previdenciária, fazendo oscilar jurisprudência já assentada nos Tribunais nacionais, inclusive no STJ.

Enfrentamento da abordagem econômica do julgamento da Revisão da Vida Toda

Como ocorre em quase todos os julgamentos de matéria previdenciária nas Cortes Superiores, houve a apresentação, por parte do Ministério da Economia, dos alegados efeitos financeiros dessa decisão, neste caso mediante elaboração da Nota Técnica SEI 4921/20 do Ministério da Economia.

Os dados econômicos projetados pelo Ministério da Economia na Nota Técnica SEI 4921/20 apontaram para um montante de R$ 46,4 bilhões ao longo de 10 anos, em valores reais de 2020, caso aprovada pelo Excelso Pretório a tese da "revisão da vida toda", sendo que esse valor seria o resultado de gastos derivados de 3,6 bilhões no ano de 2020, acrescido de R$ 16,4 bilhões com os pagamentos de prestações passadas e mais R$ 26,4 bilhões com o pagamento de prestações futuras.

É importante pontuar que o alcance econômico da tese da "revisão da vida toda" não deve chegar a tanto.

Vale ressaltar que as ações revisionais contra o INSS se sujeitam a um prazo de decadência de 10 anos, isto é, perde-se o direito a ajuizá-las a partir de 10 anos do início do recebimento do benefício previdenciário que se pretende reajustar, nos termos do art. 103, da lei 8.213/91, observadas as ressalvas constantes da ADI 6.096:

Art. 103.  O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:

I - do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou 

II - do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.

A revisão da vida toda, como qualquer ação revisional previdenciária, submete-se ao prazo de decadência decenal, ou seja, se o primeiro recebimento de benefício já possui 10 anos o aposentado não poderá mais ajuizar a ação.

Além disso, deve-se levar em conta o prazo prescricional de 5 anos em relação às prestações em atraso, conforme art. 103, parágrafo único, da lei 8.213/91:

Parágrafo único. Prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes, na forma do Código Civil.

 Estes dois elementos que constam do art. 103 da lei 8.213/91 muito provavelmente devem reduzir o impacto estimado da consagração da tese da revisão da vida toda, por impossibilidade de ajuizamento de novas ações em certos casos, bem como pela prescrição de parcelas em atraso.

Além dos aspectos puramente normativos apontados, há outros, de cunho prático, que também devem desestimular a procura judicial por novas ações revisionais da vida toda.

O tema da "revisão da vida toda" consiste em uma tese previdenciária bastante excepcional: não se trata de uma ação previdenciária corriqueira, pois será vantajosa apenas e tão somente para o segurado que ganhava mais no início do seu período contributivo anterior a julho de 1994 e menos nos períodos mais recentes, sendo que, em regra, ocorre o contrário, os salários costumam começar menores e vão aumentando ao longo da a vida laboral.

Outrossim, vale lembrar que se está a tratar de tese revisional que leva em consideração valores recolhidos aos cofres do INSS anteriormente a julho de 1994, isto é, um horizonte temporal superior a 28 anos.

Por outro ângulo, é importante sublinhar que a Advocacia Previdenciária, em sua maioria composta por profissionais sérios e pautados pelos critérios de Ética Profissional contidos na lei 8.906/94, costuma trabalhar a partir da elaboração de cálculos previdenciários prévios ao ajuizamento das ações, onde se pode verificar o efetivo reajuste que poderá ser obtido em eventuais ações revisionais, as quais não configuram "aventuras jurídicas", mas exercício regular de direito.

Neste ponto, é muito provável que não sejam ajuizadas ações revisionais por parte de aposentados em relação aos quais o benefício poderá ser reajustado minimamente, ou mesmo apresente resultado negativo. Na prática, não haverá interesse econômico no processo, ou este não será viável do ponto de vista econômico.

Esse ponto do julgamento da revisão da vida toda ilustra uma nota que tem sido típica da análise de temas previdenciários pelas Cortes Superiores: a utilização inadequada de dados econômicos como argumento extrajurídico para impedir a criação de teses favoráveis aos segurados. Não somente na revisão da vida toda, diversos outros julgamentos de temas previdenciários têm observado essa prática inadequada.

Polêmicas no rito processual do julgamento da revisão da vida toda

Após o julgamento do tema da revisão da vida toda já se ter encerrado no Plenário Virtual, com o resultado proclamado (no âmbito eletrônico) de 6 x 5 votos favoráveis à tese, deu-se em 8/3/2022, poucos minutos antes do prazo para trânsito em julgado deste processo, uma situação processual inusitada.

O Ministro Nunes Marques apresentou pedido de destaque, ato processual que tem o condão de levar o julgamento do processo para o plenário físico - ao invés de ser julgado no Plenário Virtual - e, diante da aposentadoria do Ministro Marco Aurélio, a retomada do julgamento implicaria na possível substituição de seu voto (favorável à tese dos segurados) pelo voto de seu sucessor, Ministro André Mendonça (eventualmente contrário à tese dos aposentados).

Examinaremos esta questão do ponto de vista estritamente processual.

É importante, de início, a leitura do art. 941, § 1º, do Código de Processo Civil:

Art. 941. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor.

§ 1º O voto poderá ser alterado até o momento da proclamação do resultado pelo presidente, salvo aquele já proferido por juiz afastado ou substituído. (...)

 No caso concreto do Tema 1102 da repercussão geral, apesar de o julgamento ter ocorrido no ambiente eletrônico do Plenário Virtual, o resultado já havia sido proclamado (eletronicamente) em 6 votos favoráveis à tese dos aposentados e 5 votos contrários à tese dos aposentados. O processo, nessa fase, encontrava-se apenas aguardando a efetivação de alguns atos procedimentais internos, de apresentação de recursos ou mera certificação do trânsito em julgado.

De sorte que não mais poderia acontecer, sponte propria, a alteração dos votos já lançados aos autos, visto que já proclamado o julgamento, ainda pela que em formato eletrônico atualmente permitido pelo Código de Processo Civil e amplamente praticado pelos Tribunais, inclusive o STF.

Outro aspecto que deve ser levantado é o fato de que o pedido de destaque - o qual, ressalte-se, compreendemos extemporâneo - ter se apoiado somente no Regimento Interno do STF.

Na solução desta questão processual preliminar observou-se o julgamento da ADI 5.399 (em Questão de Ordem), onde o STF deu importante interpretação ao art.. 941, § 1º, do CPC, a qual é a mais adequada à preservação da segurança jurídica.

O Regimento Interno do STF estabelece, para os julgamentos realizados em Plenário Virtual, que havendo pedido de destaque de algum dos Ministros o processo será deslocado para o plenário físico, onde prosseguirá presencialmente o julgamento.

Na referida ADIn 5.399 o Pleno do STF decidiu que esse retorno do processo ao plenário físico poderia ocorrer, inclusive com a possibilidade de alteração dos votos dos Ministros, desde que anterior à conclusão do julgamento, mas deverão ser preservados os votos dos Ministros aposentados.

É inafastável o relevante papel desempenhado pelo Regimento Interno dos Tribunais; porém, essa adaptação procedimental, especialmente quando relativa aos atos praticados por meios eletrônicos, mas estes devem se conjugar com as disposições do CPC, nunca podendo sobrepujar as disposições legais, a exemplo do mencionado art. 941, § 1º, do estatuto processual.

No caso concreto do Tema 1102 (revisão da vida toda), a utilização desse entendimento resultou na manutenção do voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, já aposentado, cujo teor foi favorável à tese dos aposentados.

Conclusão do julgamento e consagração da tese da revisão da vida toda

Superada a questão processual mencionada acima, retomado o julgamento para a data de 23.11.2022, este foi concluído pelo Plenário do STF em 1.12.2022, com a manutenção de todos os votos proferidos anteriormente e a fixação da seguinte tese:

O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da lei 9.876, de 26.11.1999, e antes da vigência das novas regras constitucionais, introduzidas pela EC 103/2019, tem o direito de optar pela regra definitiva, caso esta lhe seja mais favorável

Esse precedente consolida uma importante vitória aos segurados, firmando uma tese bastante consistente desenvolvida a partir de meados dos anos 2000, a qual corrige uma grande incongruência da forma de cálculo da RMI que se instalou a partir da lei 9.876/99, qual seja o descarte das contribuições previdenciárias recolhidas anteriormente ao Plano Real (julho de 1994).

De fato, em um sistema previdenciário que é eminentemente contributivo (art. 201, caput, da Constituição Federal), e no qual todos os salários-de-contribuição devem refletir para o cálculo do benefício previdenciário (art. 201, § 3º, também do Texto Constitucional), nada justificava a exclusão das contribuições anteriores a julho de 1994 para o cômputo da RMI.

Praticava-se, pelo modelo de cálculo considerado inconstitucional pelo STF no Tema 1102, verdadeira ofensa ao princípio da razoabilidade e à própria ideia de sistema previdenciário contributivo.

Doravante, toda a vida contributiva do segurado será levada em consideração para aqueles que preencheram os requisitos para aposentadoria após a lei 9.876/99.

O STF fixou o dies ad quem para a aplicação da tese da revisão da vida toda, isto é, o marco temporal final, estabelecendo que a revisão da vida toda não se aplica a quem se aposentar posteriormente à vigência da Reforma Previdenciária (Emenda Constitucional 103/2019).

Além deste aspecto, deve ser ressaltado, conforme já explicitamos acima, que a revisão da vida toda é um tipo de ação judicial que se sujeita à decadência decenal, nos termos do art. 103 da lei 8.213/91, bem como deve observar a prescrição quinquenal - prevista no mesmo dispositivo legal.

Por outro lado, conforme já indicamos acima, deve ser efetuada uma projeção da revisão do cálculo da RMI em cada caso concreto, com utilização dos salários-de-contribuição anteriores a julho/1994 e constatação segura sobre existir vantagem na aplicação dessa tese ao cliente, pois há risco destas remunerações serem mais baixas que as efetivamente utilizadas para a concessão do benefício e, assim, ocorrer a redução do valor da RMI.

Feitas essas ponderações técnicas, o momento é de comemorar essa (rara e) relevante conquista para os segurados do RGPS.

Marco Aurélio Serau Junior

Marco Aurélio Serau Junior

Diretor Científico do IEPREV - Instituto de Estudos Previdenciários.

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